null O “eu” que me rodeia

Sex, 23 Abril 2021 18:29

O “eu” que me rodeia

Você conhece a Psicologia Ambiental? Entenda como esse campo de estudo investiga o comportamento humano e sua relação com o meio ambiente 


Para a Psicologia Ambiental, o espaço físico é reflexo de quem somos (Foto: Ares Soares)
Para a Psicologia Ambiental, o espaço físico é reflexo de quem somos (Foto: Ares Soares)

O que os lugares construídos ou naturais dizem sobre nós mesmos? Como interferimos no ambiente externo e de que forma o entorno interfere na constituição de nossa própria subjetividade? Eis o jogo de espelhos entre o dentro e fora proposto pela Psicologia Ambiental, linha de pesquisa vinculada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade de Fortaleza, que tem no Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) um celeiro de pesquisas interdisciplinares dedicadas a compreender problemas psicossocioambientais em fina sintonia com os mais diversos contextos onde estão inseridos.

“Para a Psicologia Ambiental, o espaço físico é reflexo direto do que somos, portanto, esse espaço também é social - e não mero cenário. Daí porque é impossível pensar o ser humano destacado do mundo exterior”, sustenta a coordenadora do LERHA e professora do PPGP da Unifor, Karla Patrícia Ferreira. Ela acrescenta: “essa inter-relação humano-ambiental começa desde o ventre materno, ali no primeiro ambiente intra-uterino, que sofre as influências do ambiente externo: se a mãe é vítima de violência, se tem acesso a um pré-natal ou não, se as leis locais protegem ou não a criança, tudo isso já é influência externa, ao passo em que a própria gravidez impacta na sociedade quando as pessoas agem de modo diferente com a gestante, seja porque respeitam seus direitos adquiridos ou sua particular condição cultural”.

E vale atentar para conceitos que fogem ao senso-comum: para a Psicologia Ambiental, espaço é diferente de lugar.  “Uma sala de aula vazia é um espaço. Mas se eu passo a estudar ali, escolho sentar perto do ar-condicionado ou guardo a cadeira ao lado para o colega aquilo se torna um lugar com significado afetivo para mim. Eu passo a me relacionar com a mobília, a luminosidade, a ventilação e principalmente sou afetado pelo papel político daquela instituição, ao mesmo tempo em que as pessoas ali dentro se tornam parte do ambiente e podem desenvolver uma relação de apego ou repulsa com o lugar, se apropriando dele de forma harmoniosa ou não”, explica Karla Patrícia.

O verbete “ambiente”, diga-se de passagem, também não se refere unicamente às áreas verdes ou arborizadas. A cidade, a escola, o hospital, o presídio e mesmo a casa são lócus que abraçam toda a interdisciplinaridade fundante da Psicologia Ambiental. “O estudo das relações humano-ambientais não pertence unicamente ao campo da psicologia. Ao contrário. A colaboração entre áreas disciplinares aparentemente distantes tem se mostrado imprescindível à compreensão dos mais complexos problemas socioambientais. No LERHA, graduandos e pós-graduandos têm vindo da psicologia, da arquitetura, da saúde, da comunicação, do direito e das artes, entre outras áreas de conhecimento, pensar temas diversos que vão desde a mobilidade ou violência urbana até a percepção ambiental de espaços institucionalizados que são adoecedores ou comprometem a qualidade de vida das pessoas”, detalha.

A arte urbana como estratégia de fortalecimento identitário em Fortaleza. O luto não elaborado por moradores da antiga Jaguaribara, cidade submersa para a passagem do açude Castanhão, no interior do estado. Um estudo da relação pessoa-ambiente no Poço da Draga, comunidade da Praia de Iracema. Os parques urbanos como ambientes restauradores na construção de cidades saudáveis. Ou até a jardinagem como estratégia de enfrentamento à pandemia da Covid-19. Os projetos que nascem e crescem no LERHA são tão díspares entre si quanto propositivos: a ordem é impactar positivamente no entorno mobilizando relações socioafetivas e observando interações não só vividas como possíveis. “A Psicologia Ambiental busca o bem-estar individual e social dentro de uma sociedade múltipla e mutante, contribuindo para a promoção de lugares que proporcionem maior equilíbrio psicossocial”, conclui Karla.

Abrindo portas

A criadora do Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) na Universidade de Fortaleza, Sylvia Cavalcante, lecionou por 31 anos na instituição até se aposentar. Foi ela quem trouxe a Psicologia Ambiental para o Ceará e ainda organizou dois livros referenciais publicados em língua portuguesa pela Editora Vozes sobre uma linha de pesquisa que, graças a seu poder de articulação acadêmica, também encontrou guarida e lugar de honra no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor. Esforço acadêmico monumental diante do ainda pouco conhecido caminho que leva à pesquisa em Psicologia Ambiental em âmbito local ou mesmo nacional. 

Trajetória exemplar: insatisfeita com a graduação local em Jornalismo que não lhe dava asas para pensar nada além das próprias mídias, Sylvia pegaria o avião para a França no final da década de 1970, tudo para enfim ter acesso a uma pós-graduação capaz de unir Comunicação à Psicologia Social, abrindo veredas para o estudo da percepção do espaço, campo teórico que somente anos depois, na Europa, seria sistematizado e renomeado como Psicologia Ambiental. 

Tão inovador quanto simbólico, foi sob a orientação do teórico francês Abraham Moles que encontrou um tema de pesquisa inovador: “fui estudar a porta, esse velho e bom artefato divisor de espaços, que ao mesmo tempo simboliza dinâmicas sociais. E assim, intuitivamente, caí de paraquedas na Psicologia Ambiental que, no princípio, olhava mais detidamente para ambientes construídos para só depois incluir os espaços abertos, ao passo em que o mundo também começava a perceber o meio-ambiente como um problema”, recorda. 

De volta ao Ceará, Sylvia trouxe consigo uma bagagem e um legado novos, ainda desconhecido e sem lugar definido em âmbito local. “Na Unifor, ingressei como professora-doutora para orientação de trabalhos científicos e assim atuei orientando pesquisas diversas por anos a fio, até que, a partir de 1998, com a criação do curso de Arquitetura, criou-se uma disciplina afinada com a relação pessoa-ambiente. Na sequência, o curso de Mestrado em Psicologia acolheu a Psicologia Ambiental e, diante da receptividade cada vez maior dos estudantes, me dediquei a criar o LERHA, em 2002, contando posteriormente com a parceria da professora Terezinha Elias, do curso de Psicologia da Unifor, também aposentada recentemente. No LERHA, docentes e discentes passaram a desenvolver pesquisas e escrever artigos científicos, produzindo bibliografia especializada no Ceará em diálogo efetivo com o que, ainda timidamente, vinha sendo produzido em âmbito acadêmico no Brasil, sobretudo ao longo da década de 1990”, recorda a autora de “Temas Básicos em Psicologia Ambiental” e “Psicologia Ambiental: Conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente”, ambos com selo da Editora Vozes.

Ao final de 2017, ao passar o bastão do LERHA para a professora Karla Patrícia Ferreira, Sylvia Cavalcante, a pioneira nos estudos dos processos psicossocioambientais na Unifor, não deixa de ser referência e inspiração. Quando o assunto é Psicologia Ambiental, seu lugar nas bancas de defesa de dissertações e teses permanece cativo. E assim é que ela ainda festeja, como o entusiasmo de uma orientadora apaixonada pelo tema, o êxito de pesquisas que vão desde o significado do acolhimento para adolescentes institucionalizados até as percepções ambientais em uma penitenciária, passando pelas crenças ambientais e comportamentos ecológicos dos usuários de uma praia no litoral cearense, entre outros tantos trabalhos científicos interdisciplinares.   

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Foi como funcionária pública locada no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS-Adulto) da Prefeitura Municipal de Maracanaú que a terapeuta ocupacional e psicopedagoga Rochelle Arruda se viu instigada a pensar na ambiência que cerca o atendimento de pessoas com sofrimento psíquico. Seu incômodo com o espaço físico pouco funcional e hermeticamente fechado, incapaz, a seus olhos, de favorecer a reabilitação dos usuários, primeiro a levou ao mestrado e depois ao Doutorado na Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza. 

A busca era pela humanização do trabalho. Mas ela encontrou mais: “descobri a linha de pesquisa Psicologia Ambiental através de uma disciplina do mestrado e me encantei porque era justamente a estrutura do CAPS que me parecia problemática e até adoecedora. Quando passei a constatar a percepção também negativa que os funcionários tinham, entendi o quanto a ambiência prejudicava de fato a atuação de cada um. E foi a partir das problemáticas apontadas por eles que vislumbramos as possibilidades de transformação daquele complexo”. Precisa e eficiente, a identificação de erros e limitações internas, no entanto, não foi bem recebida por gestores imediatos. “Sofri pressão por conta dos resultados da pesquisa e acabei pedindo transferência para a equipe de Estratégia de Saúde da Família. Ou seja, aspectos políticos também afetam e constituem o espaço, potencializando ou sufocando afetividades”, sublinha.

No doutorado, já às voltas com o novo local de trabalho, Rochelle viu o CAPS acabar sendo fechado e reaberto em outro prédio capaz de dar melhores condições de tratamento aos usuários. Ainda quer voltar lá para saber se as mudanças também se refletem juntos aos trabalhadores mas, virada a página, o tema estudado já era outro: para pensar Maracanaú como Cidade Sustentável ela passou a questionar a eficiência de toda uma política de promoção da saúde. “Percebi que não bastava fazermos mídia social para impulsionar campanhas como o Outubro Rosa se de fato não estávamos conseguindo chegar à comunidade para criar estratégias de melhoria da qualidade de vida. Assim, a partir dos dados finais da tese, que mobiliza conceitos da Psicologia Ambiental e traz à tona resultados de um diagnóstico territorial, estamos criando tecnologias educativas que prometem contribuir com a apropriação afetiva do lugar”, adianta Rochelle, entusiasmada com o que virá na medida em que a pandemia da Covid-19 permita sua volta ao trabalho.

O que projetar no lugar de prisões? Eis a pergunta que até hoje não quer calar desde que a arquiteta e professora do curso de Arquitetura da Universidade de Fortaleza, Nathalie Guerra, concluiu o mestrado no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor, escolhendo como linha de pesquisa justamente a Psicologia Ambiental. Ao longo da dissertação, quando se propôs a aprofundar o estudo sobre violência urbana iniciado na graduação e que resultou em um TCC premiado pelo Ministério da Justiça, a ideia foi investigar qual a percepção que não só os apenados, mas também os agentes penitenciários têm do ambiente penal. 

Intitulada “O que é uma prisão? Percepções ambientais em uma penitenciária”, a pesquisa orientada pela professora Sylvia Cavalcante põe em xeque o próprio sentido da arquitetura voltada ao encarceramento e pensada com o intuito de provocar uma sensação de segurança em quem está livre. “Fui ouvir pessoas privadas de liberdade na tentativa de apreender suas percepções ambientais naquele lugar, e acabei sendo envolvida em histórias de vida e narrativas sobre como foram parar ali. Tudo porque a Psicologia Ambiental nos faz ir além do espaço físico, mobilizando os fatores históricos, sociais e relacionais que também constituem o lugar. Conceitos como aglomeração, privacidade, territorialidade, estresse ambiental vieram à tona para refletir sobre o sistema penitenciário e analisar o impacto de um ambiente que força as pessoas estarem ali por dias, meses e anos”, detalha Nathalie.

Rica e complexa, a experiência lhe trouxe conclusões nada confortáveis. No mestrado, a arquiteta entendeu que não precisava haver mais prisões do que já há. “O que precisamos é reconfigurar as penas ou não ter o encarceramento como principal opção, recorrendo às alternativas penais. A própria sociedade não se sente suficientemente segura com o encarceramento, já que está provado que não resolve o problema da violência urbana. É alto o investimento público para manutenção das prisões e o resultado não é nada bom: hoje, no Brasil, temos 70% de reincidência criminal. E isso é contrário ao pretendido processo de reinserção social do público aprisionado”, aponta. 

Nathalie admite: “para mim, como arquiteta, não foi fácil acolher essa constatação de que a arquitetura penal não pode ser melhorada. Não se trata de projetar uma “boa” prisão – ou de melhorar os presídios. Nesse caso, a arquitetura está sendo usada inadequadamente para um fim que não condiz inclusive com os princípios dela própria, que é de projetar visando o bem-estar das pessoas. Na prisão não há conforto ambiental, térmico, lumínico, não há bem-estar, justamente porque o presídio não é projetado para as pessoas e sim para garantir segurança aos que estão do lado de fora. O ato de aprisionar é, em si, desumado, algo antagônico, um mal que vem para um falacioso bem”.

Para além do mestrado, o efeito desumanizador do sistema penitenciário persiste. É coordenando um grupo de pesquisa vinculado ao LERHA e que conta com a parceria da Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso da Secretaria da Administração Penitenciária  - CISPE, que Nathalie e outros pesquisadores e estudantes desenvolvem oficinas junto a quem cumpre pena em regime aberto e semi-aberto. “O objetivo é reflexivo, terapêutico e propositivo. Queremos saber o que projetar no lugar das prisões e ninguém melhor para nos responder do que os próprios usuários desses espaços. Já saíram ideias interessantes: bibliotecas comunitárias gerenciadas por apenados, indústrias de pré-fabricados para construção de casas populares, centros de empreendedorismo e marketing onde pudessem trabalhar, já que ninguém quer dar emprego ex-presidiários, escolas, centros de acolhimentos... esses seriam os lugares projetados para fazer valer a justiça restaurativa e termos um resultado melhor da ressocialização”, enumera a arquiteta que hoje projeta esperança e possibilidades de transformações futuras. 

Renata Bessa trabalha na rede hospitalar privada de Fortaleza desde os 17 anos. Começou como atendente e hoje, aos 40, é supervisora da área de atendimento de um hospital local. Quando ingressou no curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, portanto, já sabia que o tema de seu TCC nasceria fatalmente no ambiente de trabalho. O que ela não sabia é que na graduação conheceria a disciplina que iria lhe dar suporte teórico e método para pesquisar dentro de hospitais e na privacidade dos lares. “Quando descobri a Psicologia Ambiental através da professora Karla Patrícia, coordenadora do LERHA, foi que entendi ser possível pesquisar sobre finitude ouvindo pacientes idosos internos em UTIs ou em sistemas de homecare. E assim passei a investigar como interferir nesses ambientes para minimizar os processos de adoecimento e iatrogenia”, sustenta. 

Em curso, o mestrado em Psicologia na Unifor inaugura um novo capítulo para a pesquisa que segue fiel à Psicologia Ambiental: é junto aos idosos com Covid-19 que Renata pretende levar à frente uma investigação científica em torno dos processos de envelhecimento e de como o ambiente hospitalar interfere no agravamento ou abrandamento de uma doença com agravos físicos e psíquicos complexos. “O que é possível fazer dentro dos hospitais, nesse momento caótico de pandemia, para minimizar o sofrimento de quem está em total isolamento e já vinha perdendo autonomia e capacidade física ao longo dos anos? Entrevistando não só os idosos internados, como também seus familiares, quero passar a vislumbrar estratégias para transformar um ambiente estressor em um ambiente restaurador, para usar desde já uma terminologia própria da Psicologia Ambiental”, explana. 

O mesmo abrangente campo de pesquisa na área da Saúde é trilhado pela arquiteta Mariana Ribeiro de Castro, outra mestranda em Psicologia integrante do LERHA e que vem pesquisando sobre autismo e ambiente construído, à luz da Psicologia Ambiental. “Meu foco recai sobre crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e as casas onde vivem. Tudo porque estudos recentes reconhecem que muitas das dificuldades comportamentais manifestadas por autistas provêm de alterações nos mecanismos de percepção sensorial deles. É comum apresentarem hipersensibilidade aos estímulos ambientais e isso compromete sensivelmente a capacidade de compreensão das situações contextuais cotidianas”, revela. 

A ordem, portanto, é conceber estratégias de controle dos estímulos ambientais para que o ambiente doméstico possa ser tornar amigável para essas crianças. Para tanto, Mariana vem mobilizando conceitos da Psicologia Ambiental como arranjo espacial e cognição ambiental, além de espaço pessoal e privacidade. Ela explica: “é importante pensar em espaços de escape que sejam reclusos ou separados do restante do ambiente da casa, onde as crianças podem se isolar em caso de sobrecarga sensorial. A palavra-chave da pesquisa me parece ser “flexibilidade” no controle de estímulos sensoriais e isso remete diretamente à PA e às características físicas do ambiente doméstico, que pode sim se tornar inclusivo e auxiliar na redução das crises comportamentais, melhorando o desenvolvimento cognitivo e comportamental das crianças”, defende a mestranda. 
 


1. O coronavírus no brasil e suas repercussões na vida da população brasileira
 Parceria entre os Laboratórios LEPP-saúde (coord. Profa. Cynthia Melo); LERHA (coord. Karla Patrícia Ferreira) e o OTIUM (coord. Clerton Martins) – Financiado pela DPDI – UNIFOR

2. Projeto Provoz – Voz de todos 
Parceria entre o LERHA, a Universidade do Arizona, a Universidade da Geórgia) e a Prefeitura de Fortaleza

3. O que projetar no lugar de prisões? Compreensão, questionamentos e projeções sobre ambientes penais
(Parceria entre o LERHA, Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso da Secretaria da Administração Penitenciária - CISPE)