null O inesgotável capital criativo

Seg, 14 Junho 2021 12:02

O inesgotável capital criativo

Saiba como a Economia Criativa estimula a geração de renda enquanto promove a diversidade cultural e o desenvolvimento humano.


A Economia Criativa tem como matéria-prima o capital intelectual (Imagem: Getty Images)
A Economia Criativa tem como matéria-prima o capital intelectual (Imagem: Getty Images)

Qual o potencial econômico da inventividade e originalidade de um povo? Como atrair investimentos para um conjunto de negócios baseados em processos criativos e tributários da diversidade cultural como valor em si? Inestimáveis, o capital intelectual e as trocas simbólicas são a matéria-prima intangível da chamada Economia Criativa, um campo de conhecimento e atuação profissional que na Universidade de Fortaleza, instituição ligada à Fundação Edson Queiroz, perpassa as grades curriculares dos mais diversos cursos de graduação e pós-graduação onde as relações entre cultura, criatividade, tecnologia, inovação, sustentabilidade e empreendedorismo ganham centralidade. 

Consultora em Economia Criativa e representante da Unifor na Câmara Setorial da Economia Criativa /ADECE, a professora dos cursos de Design de Moda, Eventos e Cinema e Audiovisual, Raquel Viana Gondim, pega fôlego para ilustrar: “cultura popular, gastronomia, nossas festas e celebrações, os museus, as paisagens naturais, os sítios arqueológicos, as mais diversas artes, ou seja, a pintura, a música, os espetáculos, a dança, as performances, as intervenções urbanas, assim como as mídias, que abraçam o mercado editorial e todo o segmento audiovisual, como cinema, rádio, TV, além das chamadas criações funcionais, vide o design em geral, os softwares e aplicativos, os games, a biotecnologia, a publicidade e propaganda, a arquitetura, tudo isso faz parte da economia criativa, ou melhor, são setores criativos em franca ascensão e dizem sobre a criatividade como força-motriz e capital ativo do trabalhador na contemporaneidade”.


Professora Rachel Viana Gondim, consultora em Economia Criativa e representante da Unifor na Câmara Setorial da Economia Criativa /ADECE (Foto: Arquivo pessoal)

Afirmação inconteste: a imaginação é cada vez mais rentável. E há números que confirmam não só a potência como o toque de Midas da cultura. De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da consultoria EY de 2015, cerca de 3% do PIB mundial (mais de US$ 2,25 trilhões em receita) está na economia criativa. E, segundo estudo da consultoria PwC, a estimativa é que seu crescimento seja acima da média mundial: 4,6% até 2021, mais que os 4,2% da média de todas economias. Ascendente, a curva de geração de trabalho e renda no setor tem história e razão de ser, mas também especificidades e senões que a professora e consultora na área ressalta diante das diferentes realidades em cada região do mundo.

“A valorização exacerbada à performance econômica da indústria em países ricos se contrapõe à capacidade e necessidade de se produzir inclusão social e produtiva entre os mais pobres, levando em consideração a diversidade cultural e o respeito às diferenças. No Brasil, sobretudo, não podemos esquecer o outro lado da moeda: estou falando dos pequenos produtores, artesãos, profissionais criativos que produzem, mas não se encontram incluídos produtivamente nas economias dos seus locais de trabalho. Os países ricos apostam nas indústrias criativas para vender mais e melhor aquilo que muitas vezes pode depredar o meio ambiente e ceifar a capacidade produtiva desses pequenos criadores, artistas independentes e artesãos”, enfatiza Raquel.

Para ela, o próprio conceito precisa ser melhor cercado: economia criativa é aquela resultante das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação/produção, distribuição/circulação/difusão, e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos. “Perceba que no conceito da economia criativa o foco sai do resultado em si e da dimensão econômica da indústria criativa para dar prevalência à dimensão simbólica, ou seja, a todo o processo criativo que envolve o território, a pessoa, a cultura do lugar, a relação das pessoas entre elas e com o ambiente, sendo isso que caracteriza o resultado final da produção de riqueza cultural, econômica e social”, observa. 

Não à toa, princípios ligados à emancipação social e qualidade de vida regem a economia criativa. Biodiversidade cultural é um deles, contemplando a valorização, proteção e a promoção dos biomas e territórios onde as pessoas vivem. “Por exemplo: o artista Antônio Rabelo, de Quixeramobim, que cria suas jóias a partir do espinho do mandacaru... ele usa os recursos do lugar e agrega valor ao produto quando mobiliza matéria-prima de sua terra, conferindo originalidade e força às suas produções”, ilustra Raquel. Foco ainda na inclusão social e produtiva. “A economia criativa, ao contrário da indústria criativa, que não olha para os que estão em situação de vulnerabilidade social, aposta na formação e qualificação profissional, gerando oportunidades de trabalho e renda para esses empreendimentos criativos”, acrescenta. 

Os quatro vetores da sustentabilidade - ambiental, social, cultural e econômica – representam outro braço de atuação da economia criativa, assim como o fomento a práticas de inovação, cujos produtos são frutos da integração das tecnologias e dos conteúdos culturais. “Aqui não falamos só de tecnologia de ponta, mas tecnologias sociais ou manuais, podendo se ampliar ainda mais para falarmos em tecno diversidade, conceito do filósofo chinês Yuk Hui, uma das figuras mais influentes no debate sobre tecnologia, inteligência artificial e aquilo que ele chama de "cosmotécnicas", tecnologias desenvolvidas em contextos locais, particulares, que conteriam as saídas para a atual crise ecológica, política e social mundial”, aponta a professora. 

Criatividade como recurso inesgotável, do tipo que quanto mais se usa mais se tem e se colhe. Lógica contrária, segundo ela, àquela que move a economia tradicional, centrada no agrobusiness, na indústria e no comércio. “O Brasil tem uma miopia trágica, hoje uma cegueira até, por não enxergar esses setores criativos como pujantes, fortes, potentes para a economia. A indústria criativa brasileira insiste em trabalhar com a economia de escala, aquela que faz uma e reproduz mil. Economia criativa não tem essa capacidade de produção de escala. Por isso que quando a indústria criativa entra tem o poder do colonizador, vem depredando, ceifando, tirando a originalidade e diminuindo a capacidade criativa, a ponto de muita coisa se perder. No Ceará, as rendas de bilro ou de labirinto estão numa situação de extermínio. As tecnologias da indústria têxtil são capazes de fazer bordados precisos e frios, desprovidos da beleza da mão e suas particularidades. Uma mão tecendo é que faz a diferença. Em menos de dez segundos a máquina importada faz três tipos de pontos diferentes no tecido. Ou seja, ela ceifa a originalidade dos nossos artesãos e desvaloriza a tal ponto o trabalho manual que a pessoa desiste”, critica a professora que, no entanto, prefere apostar na força da criatividade humana e comemorar o recente título conferido à Fortaleza pela Unesco de Cidade Criativa do Design.

O elogio da ética à estética 

Sim, há muitas chances de seu próximo emprego vir da economia criativa. Daí a importância de, ainda nos bancos universitários, refletir e encontrar caminhos viáveis para tornar possível aquela ideia ou projeto autoral que, além de ser rentável, quer fazer circular valores como colaboração, inclusão social e desenvolvimento humano. Cursando o 4º semestre do curso de Design de Moda na Unifor, Dayana Lima, 23, já se prepara, sob orientação da professora Raquel Viana Gondim, para tirar do papel e fazer acontecer a marca Humana., uma proposta que envolve a confecção de roupas com tecidos e materiais naturais mas também quer dialogar com tecnologia, música, cinema e gastronomia para se desdobrar em uma escola de formação artística.

“Não quero me fechar na marca de moda Humana, mas dialogar com outras artes e investir na colaboração entre profissionais criativos dos mais diversos setores. Por exemplo, a estampa de um artista gráfico vai ser usada pela marca e vamos ganhar uma remuneração juntos. Isso é o princípio cooperativo da collab, que move a economia criativa. Pretendo ainda valorizar a nossa subjetividade, a cultura do Ceará, pensando local para atingir global. E apostar em políticas trabalhistas mais justas, que possam remunerar melhor os profissionais envolvidos, mas também fazer circular conhecimento, ter uma escola atrelada para formação profissional, onde nossa equipe e moradores de regiões periféricas possam ter acesso à aulas e conhecimentos que fomentem outros negócios criativos”, planeja Dayana.


Dayana Lima, estudante do curso de Design de Moda da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Para ela, a economia criativa quer repensar as formas de consumo e a lógica da produção industrial hegemônica, além de chamar atenção para a responsabilidade ambiental. “Somos instigados a criar um ecossistema responsável, onde é importante saber os valores que estão por trás daquele processo produtivo. Há uma ética da estética. Não é só vender e vender. É pensar no que fazer com os resíduos que eu gero para que a minha produção não impacte negativamente no local ou no meio ambiente. E viver da minha capacidade criativa, mas fomentando formas de consumo mais conscientes e abrindo espaços para trabalhos colaborativos entre autônomos”, defende a graduanda que também já se prepara para um mestrado em Gestão de Indústrias Criativas em Portugal.

Criatividade e colaboração já!

Imagens em movimento correm por dentro da economia criativa. Estudante do 8º semestre do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor, Bruno Brasileiro, 23, já usou do princípio da colaboração para viabilizar a produção independente de um curta-metragem em desenvolvimento que vem se tornando possível graças à parceria, em paralelo, de colegas graduandos das mais diversas áreas de formação. “Do tanto de telha no mundo”, seu primeiro trabalho autoral, é um filme nascido do íntimo de um filho marcado pelo amor materno e que acabou gerando dentro de si outros “filhos” amorosos afinados aos princípios da criatividade geradora de inclusão social.

“Fizemos uma vakinha virtual para viabilizar a pré-produção do filme que começou a ser gravado em Juatama, município de Quixadá. E diante de uma inesperada adesão e rápida aceitação do projeto por parte dos colaboradores acabamos pensando não só na minha realização pessoal de cineasta em formação, mas na responsabilidade social que é marca da nova geração de profissionais criativos. Foi aí que criamos um coletivo e viabilizamos a criação de um cineclube, o @telhinha, que hoje exibe através da plataforma twitch outros curtas-metragens cearenses e produz lives de debates com os criadores semanalmente para arrecadar doações para o combate à fome causada pela pandemia”, conta Bruno, entusiasmado com a ideia de difundir a produção cinematográfica local ao mesmo tempo em que colabora com ONGs comprometidas com pessoas em situação de vulnerabilidade social.


Bruno Brasileiro, estudante de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Para Bruno, a experiência vem ensinando sobre como produzir renda e trabalho usando a criatividade, mas também em outros modos de interação com o público consumidor de audiovisual. “Venho constatando que é possível viabilizar o seu sonho ao mesmo tempo em que inventamos outras formas colaborativas de fazer cinema e financiar essas produções que cada vez mais tendem a contar com o uso livre e inteligente das tecnologias, as grandes aliadas da economia criativa e circular, que tende a horizontalizar as relações de trabalho e consumo, de forma que criadores e consumidores se aproximem cada vez mais e os produtos ou serviços gerados possam atender às reais necessidades de um determinado público-alvo, gerando uma cadeia produtiva mais consciente e empática mesmo”, afirma. 

Fato: no Brasil e no mundo é possível - e urgente – inflar a vibe da economia criativa e dar aos profissionais criativos as reais condições para se viver e sobreviver de arte e cultura, ou melhor, do poder da imaginação e seu modo próprio de fazer negócios. Egressa do mestrado em Ciências da Cidade da Unifor, a arquiteta, professora e artista visual Andréa Dall´Olio, 44, fez da própria dissertação um documento crítico de sua produção autoral e da pretendida capacidade de transformação social embutida nela. Assim, o projeto intitulado “A arte urbana como tática de reativação de espaços públicos” foi ter com os modos de uso e apropriação de pinturas e obras artísticas instaladas durante a realização de três diferentes eventos: Cumbucor, Festival Borda e Vila das Cores.


Andréa Dall´Olio, arquiteta, professora e artista visual (Foto: Ares Soares)

“Em um dos trabalhos, bordei o muro de uma casa na Vila Bachá, próxima à Igreja de Santa Luzia. Essa intervenção urbana foi feita de diferentes formas por seis artistas de um mesmo coletivo do qual faço parte: o In-grafika. Na época, a comunidade do entorno insistia com a prefeitura cobrando uma demanda antiga de iluminação pública e asfalto. Quando toda a área ganhou novas cores e foi atravessada pela arte, o poder público finalmente olhou para lá e atendeu às reivindicações dos moradores. E a vida ali mudou: as pessoas se apropriaram do lugar, começaram a ficar nas calçadas e interagir mais. Ou seja, a arte pode não ser a única solução possível para os inúmeros problemas percebidos por quem habita as grandes cidades, mas certamente a transformação e melhoria do convívio social passa por ela”, alerta Andréa.

Criatividade para também incitar responsabilidades sobre os lugares e as pessoas. “Para ter sucesso, a economia criativa e seus agentes criadores - os artistas, artesãos e profissionais criativos em geral - precisam contar com a sensibilidade e a adesão da sociedade civil, assim como dependem do investimento do poder público. É uma cadeia de fomento às artes e à cultura que só poderá dar respostas contundentes ao mundo e obter um alcance maior se essas três esferas unirem forças para varrer do senso comum a ideia de que a cultura gera gastos sem retorno e a arte é uma prática diletante. Cada vez mais é possível viver de arte e exercer uma autonomia no mundo do trabalho, respeitando a diversidade cultural e apostando no desenvolvimento humano ao mesmo tempo em que gera emprego e renda”, enfatiza a artista que se orgulha em ver na vila de pescadores do Cumbuco obras suas que deveriam ser efêmeras apropriadas e cuidadas por moradores nativos da praia.