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Seg, 22 Outubro 2018 09:59

Entrevista nota 10: ex-ministra alemã Herta Däubler-Gmelin

A ex-deputada e jurista aborda questões relacionadas à democracia e aos direitos fundamentais e humanos em entrevista exclusiva à Unifor


A jurista e professora alemã Herta Däubler-Gmelin participou de conferência em março de 2019 na Unifor (Foto: Divulgação).
A jurista e professora alemã Herta Däubler-Gmelin participou de conferência em março de 2019 na Unifor (Foto: Divulgação).

O Estado de direito, a dignidade e os direitos humanos como fiel da balança, a fim de evitar as tentações dos extremos e do autoritarismo. À primeira vista, parece uma fórmula simples e inatacável. Mas na Alemanha em que a jurista Herta Däubler-Gmelin cresceu, tal síntese só foi possível após décadas de mea culpa pelos crimes perpetrados por nazistas e colaboradores, num extermínio até então sem precedentes na História. Um tema longe de estar equalizado — ainda mais diante das manifestações de xenofobia reconfigurada e do neonazismo —, mas que reforça o dever de cada Estado em colaborar para o estabelecimento da democracia em nível global.

Por outro lado, a possibilidade de resguardar os que vivem à margem da economia por meio do Estado de direito foi a inspiração tanto para a carreira jurídica quanto política, resguardadas as peculiaridades de cada atuação. Ex-deputada e ex-ministra da Justiça alemã, a professora Däubler-Gmelin reconhece no fortalecimento das instituições e na independência dos tribunais os guardiões de uma ação estatal voltada para os direitos fundamentais e humanos.

Para aprofundar questões relacionadas à democracia, a Universidade de Fortaleza (Unifor) recebeu Herta Däubler-Gmelin em conferência realizada no mês de março de 2019. Confira a seguir a entrevista exclusiva com a jurista alemã que esteve de passagem no Brasil.

Entrevista Nota 10: A senhora nasceu na Eslováquia, dois anos antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Como foi sua vivência da infância e adolescência nesse período imediatamente pós-guerra, em meio a tantas perdas e incertezas, além dos traumas em relação ao regime nazista derrotado e a responsabilização dos alemães?

Herta Däubler-Gmelin: Demorou muito tempo para que os alemães estivessem prontos e aptos a lidar com o terror nazista, com o Shoa (palavra hebraica para holocausto, utilizada a partir de 1940) e com o envolvimento de tantos alemães, especialmente aqueles que até então se sentiam como “alemães decentes”. Atualmente, você pode falar abertamente sobre isso — mas, como você pode ver, até hoje temos problemas com os extremos e com os novos “culpados”. Por isso, é importante defender sempre a dignidade humana, o Estado de direito e os direitos humanos.

Entrevista Nota 10: O que a motivou a seguir a carreira jurídica? Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre o como é o processo para se tornar advogado na Alemanha, que vai além da formação acadêmica.

Herta Däubler-Gmelin: Na Alemanha, são necessários dois exames de Estado (Staatsexamen), com os melhores resultados possíveis, depois de concluir seus estudos universitários em Direito. Somente após esta fase, é possível tornar-se juiz, promotor, funcionário público, advogado ou advogado público. Eu escolhi trabalhar como advogada porque considero que o Estado de direito é importante para as pessoas que precisam de ajuda. Creio ter tido a capacidade de combinar isso com o meu trabalho político, claro que não com o de uma Ministra Federal da Justiça, ao tempo em que exerci este cargo.

Entrevista Nota 10: No filme alemão Ele está de volta (Er ist wieder da), de 2015, que mistura episódios documentais com uma trama satírica sobre o retorno de Adolf Hitler em pleno século XXI, causa espanto quando vemos depoimentos de alemães de hoje que se posicionam contra a imigração usando os mesmos argumentos que legitimaram a ascensão do nazismo e a perseguição aos judeus nos anos 1930. Como a senhora observa este crescimento da xenofobia na Europa e os possíveis riscos quanto à manutenção da democracia?

Herta Däubler-Gmelin: Claro que com grande preocupação. Em nossa Constituição, a dignidade, os direitos fundamentais e humanos estão no centro da ação estatal. Da mesma maneira, no mesmo centro da ação estatal, a proteção e a ação dos tribunais independentes, por meio da lei, devem permanecer. Eu trabalho para isso: como advogada e como política. 

Entrevista Nota 10: Nos últimos anos, temos visto movimentos no Brasil colocarem em questão o nazismo como um regime de extrema-direita e mesmo negando o Holocausto. O caso mais recente ocorreu quando vários internautas contestaram um vídeo publicado pela Embaixada da Alemanha no Brasil em suas redes sociais, que reconhece a importância para os alemães de refletir sobre o passado nazista. Como a senhora avalia essa movimentação num país como o Brasil, num cenário de crise política e atualmente passando por um complexo período eleitoral?

Herta Däubler-Gmelin: Receio que esse tipo de abordagem seja uma daquelas nuvens de fumaça que adoradores de ódio de direita e jogadores populistas de direita gostam de jogar para desestabilizar as pessoas e obscurecer seus cérebros. No Brasil, isso é tão hostil à democracia e ao Estado de direito como no meu país, na Alemanha, ou em qualquer outro país.

Entrevista Nota 10: A senhora defende que ministros de tribunais superiores deveriam ter mandatos com prazo determinado e não serem escolhidos por indicação do presidente, e sim em eleição pelas duas Casas parlamentares. Atualmente, no Brasil, juízes de instâncias inferiores ingressam na carreira por meio de concurso público e não têm limite de idade para exercer o cargo. Quais são as vantagens e problemas deste tipo de modelo, a seu ver?

Herta Däubler-Gmelin: Existem modelos diferentes. Nós, alemães, sentimo-nos muito bem com a regra de que os juízes do Tribunal Constitucional Federal, que é exclusivamente guardião de nossa constituição, sejam eleitos por 12 anos por uma maioria de 2/3 do parlamento, alternadamente o Bundestag (Parlamento Federal, composto pelos deputados federais eleitos por cada Estado da República Federal da Alemanha) e o
Bundesrat (Conselho Federal, composto por representantes de cada Estado integrante da Federação Alemã). Isso garante diversidade e também independência. Este Tribunal goza do mais alto grau de confiança entre muitos alemães. E isso é muito positivo. Muitas das afirmações a favor do extremismo e da xenofobia em todo o mundo costumam partir da alegação de que a democracia está em crise.

Entrevista Nota 10: Qual é o papel do Judiciário para evitar a tentação dos autoritarismos?

Herta Däubler-Gmelin: Claro, também leio muito sobre o apelo globalmente declinante das democracias ocidentais — e de fato há pontos suficientes de crítica, porque não apenas os Estados Unidos, mas também outros Estados não estão ajudando rápido o suficiente a resolver problemas globais. No entanto, aqueles que fazem uma comparação de sistemas não devem apenas olhar para a redução da pobreza, mas também para os direitos humanos, oportunidades de participação e solidariedade. Eu desejo os dois para uma sociedade em que quero viver, e para a sociedade de meus filhos e netos. Aliás, em muitas conversas com pessoas na China, ou outros países autoritários, por exemplo, aprendi que eles também querem isso, mas — ao contrário das pessoas na Alemanha — eles não podem dizer isso em voz alta.