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Sex, 5 Junho 2020 11:04

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Psicoterapeuta Aline Lira fala sobre como as relações românticas estão sendo afetadas pela pandemia de Covid-19


Aline Lira, supervisora clínica da Universidade de Fortaleza, é especialista na área de famílias (Foto: Arquivo pessoal)
Aline Lira, supervisora clínica da Universidade de Fortaleza, é especialista na área de famílias (Foto: Arquivo pessoal)

Alento ou refúgio? Em tempos de pandemia e isolamento social, como os relacionamentos amorosos vêm se amparando e se deixando impactar pela mediação incontornável das tecnologias digitais? Para a psicoterapeuta Aline Lira, supervisora clínica da Universidade de Fortaleza, há bem pouco tempo os sites de relacionamento ajudavam especialmente os “internautas” inseguros e/ou com problemas de socialização. Hoje, é cada vez mais comum que o contato afetivo seja facilitado pela internet, abrindo novas perspectivas de relacionamentos e interação junto a diferentes tribos digitais. E diante do confinamento obrigatório para conter a transmissão da Covid-19 tudo o que há de paradoxal naquele que já foi cantado em versos como um “contentamento descontente” vem à tona. 

“É bem comum, por exemplo, que pessoas LGBT iniciem os seus relacionamentos de forma virtual, protegidos pela tela do computador, sustentados por uma sensação de segurança, privacidade e anonimato. A tecnologia também tem sido uma grande aliada para uma juventude cercada de “crushes” e “matches”, assim como diferentes redes sociais e aplicativos têm sido criados para atender ao mercado dos relacionamentos digitais, favorecendo espaços de experimentação. Por outro lado, as tecnologias podem comprometer os laços sociais e o fortalecimento de relações íntimas, já que no mundo virtual, muitas vezes, o imediatismo ocupa um lugar de destaque, seja para fazer conexões ou desconexões, bastando um clique para bloquear pessoas ou deletar relacionamentos. Tudo para deixar a fila andar”, observa Aline.

O alerta da professora-doutora especialista na área de famílias se resume ao fato de que, em tempos ávidos por prazeres e novidades, onde somos reféns da urgência do aqui e agora, os relacionamentos notadamente mediados pelas tecnologias podem ser experimentados como “um excelente refúgio para os amantes que se encontram indispostos para lidarem com as situações difíceis da relação, uma vez que facilmente podem se desvencilhar do outro e da possibilidade de formar vínculos duradouros que comprometam a sua autonomia”. Assim é que, em sua prática clínica, percebe claramente: “com frequência, recebo no consultório pessoas/casais com a seguinte fala: ‘Ninguém quer ter relacionamento sério…’. A impressão é que parece haver escassez, mesmo diante de muita abundância. Ou muita espera diante da velocidade e do imediatismo”.

Para ela, há um traço da pós-modernidade que está no centro desse caso de amor e ódio entre os relacionamentos íntimos e a web: a ética individualista, na qual o indivíduo tem valor central na busca por realizações íntimas, prazerosas e com ênfase na liberdade de escolha e possibilidade de viver sem depender do outro. “É interessante perceber que, apesar do individualismo, sentimos uma grande necessidade de termos relacionamentos amorosos e de que eles sejam eternos, mesmo sabendo que podem durar menos do que imaginamos. Por vezes, nos vemos construindo expectativas inalcançáveis, procurando controlar os relacionamentos como se controlam investimentos realizados no mercado. E aí vêm as frustrações, os desencontros, a certeza de que não podemos controlar o incontrolável”, sublinha.

Voltada à psique dos que vivem juntos, ela vê o quanto a internet também traz impactos comportamentais para casais enlaçados que optam deliberadamente por um cotidiano de recolhimento, mesmo antes da pandemia. “Quantos casais vão cedendo aos espaços de socialização face a face, por exemplo, com amigos, ida às festas, justificados pelo receio da violência ou mesmo pela praticidade que o mundo digital pode nos oferecer? Dessa forma, ao invés de irmos aos restaurantes, pedimos pelo aplicativo. As idas aos cinemas foram em grande parte substituídas pela Netflix. E quais são os impactos desses recolhimentos, facilitados pelo acesso à internet, nas relações amorosas? Essa maneira de viver o relacionamento, ao mesmo tempo em que pode fortalecer a intimidade e a troca, também pode ceder espaço a perda dos processos de individuação, tornando o relacionamento cansativo e monótono”, sublinha.

Entre casais marcadamente atravessados pelo mundo online, as questões que lhes chegam são outras: infidelidade online, violência digital, ciúmes, solidão, internet-dependência, uso dos jogos. Tudo isso, junto e misturado, gera uma pergunta que a psicóloga toma para si como provocação: será que estamos preparados para todas as possiblidades de conexão trazidas pelas redes sociais e aplicativos de relacionamento? “Nesse período de isolamento social, a internet, sem dúvida, tem sido uma grande aliada aos relacionamentos amorosos. A pandemia da Covid-19 acelerou e ampliou os processos digitais que já estavam em curso. E viver em confinamento tem exigido criatividade e investimento na relação amorosa. Muitos casais inclusive têm relatado o valor da distância como um tempero importante para o relacionamento. Ademais, casais têm se reinventado sexualmente, buscando outras fontes de gratificação sexual, através do sexo virtual, através da masturbação compartilhada, ou mesmo sexting (envio de mensagens, vídeos e fotos eróticas), por exemplo”, ilustra Aline. 

Para ela, o isolamento social também tem sido útil para “dissolver” alguns tabus ligados às sexualidades, como justamente o que ainda envolve a masturbação. “Jovens e profissionais do sexo têm sido incentivados a praticarem sexo de forma virtual, basta ver os sites argentinos e a cartilha criada pelo governo brasileiro. Dessa forma, muitas pessoas/casais que anteriormente não eram adepta/os ao relacionamento amoroso virtual têm encarado diferentes possibilidades de viver fantasias, inclusive como uma forma segura de sexo. Seja para os adolescentes que podem ensaiar os primeiros contatos sexuais e para os adultos que podem viver muitas fantasias sexuais de forma criativa e sem culpa, isso desponta, mais ainda agora, como uma tendência”, aferra.

E qual o limite necessário ao uso das redes sociais nos relacionamentos amorosos? Ou o que a pandemia tem nos dito sobre isso? “De fato, o relacionamento amoroso virtual é desterritorializado (as pessoas se conectam em qualquer lugar do mundo, dissolvendo fronteiras geográficas). Também é temporalmente diferente do relacionamento presencial (podem começar e terminar a relação instantaneamente). Dessa forma, apesar de fascinante e muito convidativa, o que estamos vivendo na pandemia é um chamado à presença física, ao toque, ao estabelecimento claro de regras conjugais e sociais, ao conhecimento do outro, ao investimento emocional na relação, ao diálogo honesto e aberto nas relações amorosas e negociações das diferenças. São tarefas indispensáveis para a manutenção do vínculo conjugal. Ou seja, a comunicação virtual não substitui as relações presenciais, uma vez que existem aspectos da relação só favorecidos no face a face”, destaca.

Para a psicóloga, as redes sociais podem ainda trazer ruídos desafiadores aos casais, como, por exemplo, falta de intimidade, superficialidade, fugacidade nas relações, baixa tolerância às frustrações. Outra preocupação de Aline é com a possibilidade de controle cerrado sobre o outro, culminando em relações abusivas digitais ou mesmo golpes nas redes. “O virtual e o real não se opõem, podem até se complementar, de forma a potencializar as formas de criar laços afetivos, mas insisto que o virtual não substitui o presencial. Independente do caminho que encontrarmos para viver o amor precisamos nos dar conta de que o amor não é algo mítico, estável, com uma só face. Amar é uma construção diária, de passo a passo, que exige coragem, leveza, comprometimento com o outro, e, sobretudo, comprometimento com o seu próprio desejo”, conclui.