Crônica: A Casa, por Hermínia Lima

qua, 17 junho 2020 10:32

Crônica: A Casa, por Hermínia Lima

Que casa habita em você nesta quarentena? Leia a crônica inédita da professora Hermínia Lima


Doutora em linguística, Hermínia Lima leciona nos cursos do Centro de Ciências de Comunicação e Gestão da Unifor (Foto: Thais Mesquita)
Doutora em linguística, Hermínia Lima leciona nos cursos do Centro de Ciências de Comunicação e Gestão da Unifor (Foto: Thais Mesquita)

Autora: Hermínia Lima, professora das disciplinas de História da Arte e Produção de Texto da Universidade de Fortaleza e coordenadora do projeto Educação e Saúde na Descoberta do Aprender

Descobri que sou uma casa! E, entre outros aspectos dessa similaridade, descobri minhas partes e como devo cuidar delas. Tenho teto, tenho cômodos, tenho assoalho e jardim também! Aprendi que posso cuidar do teto, meditando. Aprendi que posso cuidar dos cômodos, exercitando-me, nem que seja na sala de casa, em tempos de pandemia! Aprendi também que posso cuidar do meu assoalho, praticando ações que consolidam as minhas bases de sustentação e que mantêm o equilíbrio dos meus pés “plantados” em solo bom. Aprendi a fazer florescer meu jardim, nos meus braços-galhos que se abrem para abraços vindos da janela, porque a porta da sala está fechada pela pandemia.

A casa que sou, além dos cuidados com o teto, os cômodos, o assoalho e o jardim, necessita de alimentos físico e psicológico. Entendi que ambos vêm, principalmente, do convívio humano que me cerca e das ideias que partilhamos. Contudo, entendi que esses alimentos também me chegam por meio de animais não humanos: nas patas dos meus gatos, que rastejam felinos no rés do chão; ou nas asas dos meus beija-flores, que flanam livres sobre as plantas que cultivo e que também alimentam a mim e a eles. 

Avancei na compreensão e entendi mais! Entendi que minhas paredes são nutridas ainda por outros seres como, meus livros, minhas canções de estimação, meus filmes e séries que me transportam para além do sofá da sala e fazem-me descobrir novos mundos e falar novas línguas. Entendi que minha nutrição também me chega pelos sabores e odores que surgem na minha cozinha, sólidos e líquidos, que mastigo e sorvo. Enquanto casa, sou paredes, sou abrigo, sou afago, recebo e protejo. Mas necessito de reboco, de pintura, de trocas de telhas, para que se cumpra sempre a função do acolher em mim. Minha alvenaria é sólida, mas a argamassa se desgasta com o tempo e requer retoques. Minha arquitetura já bem definida em seu estilo eclético, depende do traçado que recebo de cada mão-arquiteta que partilhou ou partilha do meu projeto de casa-vida. E sigo sempre em construção, ad infinitum

Sinto que, nesses tempos difíceis, a minha casa está em processo de organização, de limpeza, de renovação, de superação e de crescimento. A minha casa se prepara para uma festa de inauguração de um novo tempo, num novo formato de vida! E eu devo isso a cada um que me construiu! Pessoas renovam-me, ressignificam-me, repaginam-me e inauguram-me a cada ciclo! Assim sendo, preparo-me para uma nova inauguração. Uma inauguração da casa renovada após a experiência da pandemia! Ou, uma renovação, como se diz, liturgicamente, em um dos ritos cristãos praticados pelos nossos ancestrais! Embora contida nos limites do meu ser-casa, neste tempo de pandemia, sou toda sentidos: abertos, aguçados, ávidos e agradecidos, para seguir viagem e continuar esse aprendizado com os meus amigos, arquitetos de um novo tempo! 

Nesse exercício de ser casa, assimilei, acima de tudo, o mais importante dos aprendizados! Aprendi que jamais conseguiria cuidar da minha casa sozinha! Percebo que para a solidez do assoalho, o conforto dos cômodos, a firmeza do teto, e a beleza do jardim, necessito dos abraços, das palavras e das presenças de pessoas que, cada uma do seu jeito, cada uma do seu modo, contribui para a manutenção da saúde, do conforto e da vitalidade dessa habitação que sou. Ainda que esses braços, abraços, palavras e presenças  venham a mim pela tela do computador ou do celular nesse tempo de isolamento social. Não há casa sem habitantes. Se vocês me habitam, eu torno-me moradia.

Nesse falar da casa que sou, chegam-me à memória, as páginas de um dos mais encantadores romances que eu já li: A Casa, da escritora cearense, Natércia Campos. Nele, há uma casa personificada. Uma casa tornada persona. Aqui, sou eu, persona, que me vejo casa. Talvez, a ideia de escrever essa crônica tenha a inconsciente motivação vinda do romance de Natércia! Sendo que, lá, no romance, a casa ganha corpo, e sente, e sofre, e ouve, e fala e vive e se eterniza. Aqui, eu me “casifico”, e sou espaços de partilha e tomo consciência da importância de manutenção das minhas partes, da minha permanente alvenaria, mas também da minha finitude. Enquanto a finitude não vem, vamos curtindo a vida e cuidando dessa casa que, em breve, se abrirá em portas e janelas para os abraços plenos de viço, de vida e de poesia.