seg, 4 maio 2020 11:15
Entrevista Nota 10: Ailton Krenak
Principal nome da luta indígena no Brasil, o escritor e ambientalista Ailton Krenak se diz um otimista, mas diante do comportamento humano em relação à Terra, duvida que a pandemia de covid-19 possa trazer mudanças de atitudes
Há quatro anos, índios da etnia Krenak viram seu avô entrar em coma. Era a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, que se rompia em Mariana (MG) e inundava de metais pesados a bacia do rio Doce, considerado o avô dos Krenak. Desde então, não há vida ao longo dos 600 km de rio.
Ao ser perguntado por engenheiros sobre a solução para recuperar a bacia, o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak sugeriu acabar com todas as atividades de mineração, pecuária e agricultura intensivas praticadas à beira do rio Doce por pelo menos 10 anos. Disseram ser impossível. Até que veio a pandemia da Covid-19 e parou o mundo todo, mostrando que não apenas era possível, como era preciso.
Mas Ailton não comemora. Parar apenas pelo período da quarentena não será suficiente para recuperar o estrago feito ao seu avô, também chamado pelos Krenak de Uatu, muito menos reaver os danos causados pelo homem ao planeta Terra ao longo de anos. “Tudo o que a gente fizer daqui para frente vai chegar depois da hora. Nós não vamos restaurar nenhuma situação de harmonia com o planeta, nós já danamos o planeta de tal maneira que agora vamos pagar o preço disso”, afirmou ao Entrevista Nota 10.
Apesar de se considerar um otimista – “Senão eu não estava dedicando minha rotina diária a esses assuntos”, disse ele – Ailton é cético quanto à possibilidade de mudança do comportamento humano após a pandemia de Covid-19, em especial na relação do homem com a Terra. “Se nós saímos da Segunda Guerra e conseguimos viralizar as guerras, seria muita ingenuidade nossa achar que depois da pandemia nós vamos mudar a ponto de cooperar uns com os outros para que o clima do planeta melhore”, pontuou.
Considerado uma das principais lideranças indígenas do Brasil, Ailton Krenak protagonizou uma das cenas emblemáticas da luta indígena em 1987, durante a Assembleia Nacional Constituinte. No plenário da Câmara dos Deputados, ele proferiu um discurso em defesa dos direitos dos povos indígenas enquanto se pintava com tinta preta do jenipapo. A luta de Krenak e outras lideranças da época resultou em avanços e conquistas de direitos. Mas, segundo ele, desde então vem havendo um retrocesso que torna a luta e a sobrevivência indígena cada dia mais árdua.
Ailton Krenak participou do projeto "Lives do Conhecimento", exibida nos perfis da Unifor no Facebook (Unifor Oficial), no Instagram (@uniforcomunica) e na TV Unifor (canal 181 da NET). Se você perdeu, confira aqui a live na íntegra:
A conversa completa você confere nesta Entrevista Nota 10.
Ailton, onde você está nesse momento?
Estou na aldeia Krenak, no médio rio Doce (Minas Gerais), aquele que a lama da mineração invadiu quatro anos atrás [refere-se ao rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em novembro de 2015]. Ele passa no quintal daqui de casa. Eu estou de quarentena aqui junto com mais 130 famílias da nossa aldeia. É uma reserva pequena, a gente teve que fechar os acessos para o mundo de fora para a gente fazer uma quarentena coletiva.
Como está a situação da Covid-19 da sua aldeia?
Felizmente nós estamos fora daquele mapa de contágio. Ao redor da nossa reserva Krenak tem uns municípios que são Resplendor, Aymorés, Conselheiro Pena... E nenhum deles teve nenhuma situação de contágio. Nenhuma pessoa foi diagnosticada com Covid. A cidade mais próxima de nós, onde já foi diagnosticada inclusive óbitos, fica a 120 km, que é Governador Valadares. Mas ao nosso redor não tem nenhuma ocorrência. Isso deixa a gente um pouco mais seguro com relação aos procedimentos que a gente está adotando, que é o de ficar na aldeia, não ficar indo lá para fora nem receber visita desnecessária aqui dentro. Como nós estamos numa área que foi gravemente afetada pelo desastre da mineração, temos umas atividades que são prioritárias e continuam acontecendo, que é o caminhão pipa vindo de fora trazer água, tanto para consumo doméstico como para animais.
O rio Doce segue completamente contaminado e sem condições de uso?
Não tem vida no rio. Tem quatro anos que uma lama desce na bacia do rio. As amostras que são retiradas desse material líquido que provavelmente não é H2O, ele tem lítio, mercúrio, metais pesados, muita coisa que não é recomendável. Eles adoecem a vegetação do rio e não deixam surgir nenhuma espécie aquática, nem girino consegue proliferar. Nós estamos com uma situação de suspenção por muito tempo, deve durar décadas. Eu falei em algumas entrevistas públicas minhas que a tecnologia que é mobilizada hoje para recuperar bacias hidrográficas não é suficiente para recuperar 600 km de um rio contaminado pela mineração.
Existe alguma saída para a recuperação do Rio Doce?
Quando os engenheiros me perguntaram sobre o que eu achava que tinha que ser feito, eu disse que tinham que suspender as atividades de mineração ao longo da bacia do rio – ele tem 600km de extensão. Em alguns trechos está mais agravado e em outros, a pressão é menor porque não tem indústria, mas tem atividade, por exemplo, de pecuária ou de plantação de eucalipto ou qualquer outra atividade agrícola mais intensiva de pecuária e agricultura, além de um cordão de pequenas cidades que jogam o esgoto delas no rio. Eu disse que tinha que suspender todas essas atividades pelo menos por uns 10 anos para que o rio pudesse respirar. Os engenheiros me disseram: “Impossível, não dá para parar essas atividades econômicas essenciais”. Aí quando veio essa pandemia, todo mundo teve que parar. Então, se você está me perguntando qual é a saída, a saída é parar de violentar o corpo do rio. No mapa ele tem o nome de rio Doce, para os Krenak, ele tem o nome de Uatu. Ele é o nosso avô, é uma entidade, não é um corpo d’água anônimo. Quando alguém pergunta sobre a abordagem ambiental do rio, nós achamos que é uma redução do sentido da nossa existência e da nossa convivência de tudo que está ao nosso redor. O rio não é só um recurso natural, uma montanha ou uma floresta não são só uma paisagem que você enxerga temporariamente. Elas têm uma existência anterior à nossa vida, então a gente tem que respeitar e reverenciar esses lugares porque são lugares que fazem com que integre o grande organismo do planeta Terra.
Como líder indígena e ambientalista, como você enxerga a pandemia de covid-19? Existe uma relação direta entre a pandemia e o modo como a humanidade vem se relacionando com o meio ambiente?
Tem uma relação direta com esse nosso início de conversa. Eu te falei de onde estou, você me falou do lugar onde você está, nós estamos falando dos rios que existem aí, então nós estamos fazendo uma aproximação do que seria a ideia de natureza para mim e para você. Essa ideia de natureza ficou tão abstraída para todo mundo que teve que vir uma pandemia para parar todo mundo e fazer as pessoas olharem ao seu redor para verem onde estão, a gente se localizar no planeta, ver onde cada um está. Tem uma relação direta com o que estamos conversando agora o evento de uma pandemia matando milhares de pessoas em todos os continentes.
Você acha que isso é uma resposta da natureza à ação do homem?
O único ser que habita o planeta Terra e que depreda o planeta é exatamente esse tal de homem. Não tem outro ser que sai por aí transformando os rios em esgotos, enchendo o fundo dos oceanos de garrafas pets e outros lixos, jogando lixos para todo lado. Nós somos uma fábrica de lixo. Mesmo quando falam que estão reciclando, estão colocando aquele item no consumo novamente, nessa voracidade de consumir a Terra toda na forma de garrafa, na forma de alimento, de roupa, de carros. Nós vivemos um consumo de mercadorias sem prestar atenção que todas essas mercadorias que passam por nós tiveram origem na terra, ou na água, ou no subsolo. Nós consumimos isso de maneira inconsciente como se a gente tivesse um saco sem fundo para ficar retirando dele indefinidamente tudo o que a gente quer consumir. E ainda forjamos desculpas como reciclagem, desenvolvimento sustentável, equilíbrio. Isso são todas desculpas insustentáveis da nossa presença no planeta Terra. De certo que a Covid é uma resposta do organismo vivo na Terra ao incômodo que é a nossa presença aqui. Os humanos são perturbadores ao organismo da Terra.
Muito se fala que ninguém será mais o mesmo depois dessa pandemia, que será um novo mundo. Você acredita nessa mudança radical nas formas de viver e de se relacionar da humanidade pós-covid-19?
Não acredito que vá haver mudança significativa, muito menos radical. A única mudança radical possível é se desaparecesse a espécie humana do planeta.
De que forma os modos de vida indígenas de se relacionar com a natureza, de se relacionar em coletividade, podem inspirar e ensinar os demais povos a reconstruírem esses novos modos de vida que serão necessários após a pandemia? Querendo ou não, todo mundo vai ter que se reinventar para aprender a viver nesse novo mundo que vai se abrir...
Você formulou uma questão muito complexa porque, para responder como o povo indígena pode inspirar para uma reorganização da presença humana na Terra, do consumo, da relação com a natureza, eu teria que concordar com você que nós vamos ter uma mudança e eu estou duvidando da mudança. A inspiração que a o povo indígena poderia ter dado sempre esteve disponível durante muito tempo. Há centenas de anos os índios estão sacrificando a sua própria existência para inspirar outros modos de vida. Você acha que é moleza viver como índio? A Rita Lee tem aquela música linda “se Deus quiser um dia quero ser índio...”. É uma poesia linda de uma menina urbana que imagina que ser índio é viver pelado na floresta como se fosse um elfo, uma borboleta, um duende... Mas não é. Nos nossos territórios, na Amazônia, no Nordeste, no Sudeste, nós somos o tempo inteiro flagelados por garimpeiros, madeireiros, pelo agro que é pop. O agronegócio devasta os territórios, joga veneno na cabeceira dos nossos riachos, envenena as nossas águas, depreda, acaba com a nossa fauna. Como é que nós vamos viver dentro de um território indígena caçando se os nossos vizinhos matam até abelha? Então, nós vivemos refugiados em alguns pequenos territórios indígenas, reservas, aldeias. Em algumas regiões como o Nordeste, por exemplo, a maior parte da população indígena foi exterminada. E onde conseguiram sobreviver foi a duras custas, com uma perda cultural enorme, tendo que sobreviver como retirantes, como fugitivos no seu próprio território. O Brasil não honra a relação dele com os seus povos originários. Os índios não são respeitados, então, nós vamos inspirar quem não nos respeita?
Este seria um momento para refletir?
Seria uma oportunidade maravilhosa de fazer uma aproximação entre o que nós pensamos que estamos fazendo aqui na Terra e isso que nós chamamos de natureza. Eu não uso o mesmo referencial para falar da Terra e dos outros seres vivos, separando o que é humano do que não é humano. Para mim, tudo é natureza, nós inclusive. Só que nós somos uma parte a que se atribui uma inteligência e uma particular qualidade de dominar os outros seres vivos e isso está, de certa maneira, na mitologia dos civilizados. Quando os portugueses vieram para o continente americano, eles vieram para colonizar a gente porque achavam que a gente era um povo muito selvagem, muito primitivo, e eles precisavam atualizar a nossa existência. Isso é colonizar. Eles mataram a maior parte das pessoas que eles encontraram aqui. Os que sobreviveram a eles estão sobrevivendo com dificuldade até hoje, não têm respeito nenhum. A gente tem que entender isso: se tiver aproximação entre esses mundos, o primeiro vai ser entre esse mundo colonial e os povos originários com suas formas de vida e pensamento. Depois dessa aproximação, talvez a gente possa inspirar uns aos outros, mas começar da ideia simplória de que os índios vão agora dar um remédio para curar a loucura dos brancos é uma hipótese totalmente furada. Furada porque os brancos não querem essa cura e também porque os índios não estão aí com um balaio de remédios para os brancos que só ficam detonando com a vida na Terra.
Daquele momento histórico do seu pronunciamento em 1987 para hoje, o que mudou em relação aos direitos dos indígenas e em relação às lutas que esses povos travavam antes e travam hoje? Mudou alguma coisa?
Mudou tudo. Naquele tempo tinha uma sociedade brasileira marcadamente buscando direitos, apelando pelos direitos civis, apelando pela ampliação dos direitos humanos, lutando pela igualdade entre os povos. Nós fizemos uma campanha pelas Diretas Já para findar um ciclo de ditatura e começar uma experiência de uma sociedade mais participativa e mais plural. De lá para cá, a gente começou a andar para trás de novo e começou mudar para esse cenário de ditadura que nós estamos vivendo hoje. Nós pioramos muito. As lutas indígenas pioraram muito, os índios passaram a enfrentar uma situação muito mais adversa do que há 40 anos. A qualidade da nossa relação com a sociedade brasileira piorou.
Isso foi de quanto tempo para cá? Faz parte de uma história mais recente, do governo atual, ou já vem de antes?
Onde você estava quando o governo decidiu construir uma hidrelétrica gigantesca no Xingu [refere-se à Usina de Belo Monte - no Pará - que teve seus estudos de implantação iniciados em 1975 e após muita resistência de ambientalistas e indígenas da região, começou a ser construída em 2011] ? Você viu a tropa de choque dando soco na cara de mulheres indígenas com criança no colo? Faz tempo que Brasil soca a cara de mulheres indígenas em qualquer manifestação pública. Em 2012, 2013 os índios ocuparam Brasília e enterraram 40 caixões, botaram ao lado da Praça dos Três Poderes. Aqueles caixões representavam o número de Kaiowá-guaranis que tinham sido assassinados pelo agronegócio do Mato Grosso do Sul com o governo fazendo de conta que aquilo era normal. Nós viramos uma espécie de farra do boi. Nós tivemos há muito tempo uma inversão da prioridade da política pública voltada para o interesse comum e uma maquinaria do estado dominada por uma corja que só quer roubar a riqueza do país. Infelizmente isso não começou com Bolsonaro, a desgraça só proliferou num ambiente muito propício.
No seu livro “ideias para adiar o fim do mundo” (2019) você fala sobre a necessidade de conexão e respeito à natureza e sobre como os índios resistem há anos e lutam pelo direito de viver. Diante do contexto atual, as ideias para adiar o fim do mundo mudaram de alguma forma? O que podemos fazer para que o fim do mundo não esteja tão próximo?
Nós vivemos uma situação no planeta que é o aquecimento global, nós estamos mudando o clima, a temperatura do planeta. A mudança climática é uma coisa que está sendo alertada desde o final da década de 1970. Quando foi produzido um relatório sobre a situação climática do planeta. Esse relatório tinha o nome de “Nosso futuro comum” e ele foi a base das conferências do clima que aconteceram depois, inclusive a que aconteceu no Rio de Janeiro, a Eco 92. Na Eco 92 foi disparado um alerta de que se a gente não mudasse a velocidade com que nós estávamos indo para o fim do mundo, em 30 anos, a gente ia chegar a um ponto de aquecimento do planeta em que não ia mais conseguir parar. Alguns cientistas, na década de 1990 virando para 2000, diziam que nós estávamos saindo da faixa de controle das emissões de carbono, das devastações das florestas que são reguladores de clima, da destruição das fontes de renovação da vida do planeta e os oceanos fazem parte delas. Dizem que a maior parte da captura de carbono que tem na atmosfera é feita pelos oceanos. Até uns 20 anos atrás todos os cientistas eram unânimes em dizer que quem fazia isso eram as florestas, diziam que eram o pulmão do mundo. Depois, viram que um organismo não tem só um pulmão, precisa de outros órgãos. Então, começaram a entender que a Terra tem vários reguladores. As geleiras estão degelando, os oceanos virando fossa de lixo, as florestas estão sendo destruídas. A velocidade desse trem está tamanha que a gente não consegue pará-lo. Então, se a sua pergunta não for apenas retórica, se ela quer alcançar alguma resposta de fato, a resposta é: nós não temos mais nada para fazer a tempo. Tudo o que a gente fizer daqui para frente vai chegar depois da hora. Nós não vamos restaurar nenhuma situação de harmonia com o planeta, nós já danamos o planeta de tal maneira que agora vamos pagar o preço disso morrendo. Se vai morrer todo mundo ou uma parte do planeta, nós não temos como prever, mas as próximas décadas a gente só vai sofrer o dano ambiental que causou ao planeta. Doença respiratória agora vai virar uma constante em qualquer lugar do mundo porque nós estragamos o ar do planeta e ele não vai se restaurar com um ano de quarentena.
Como equilibrar a necessidade de ter uma renda econômica para satisfazer as necessidades básicas, como comprar alimento, por exemplo, e o cuidado com o planeta?
Existe um programa na televisão chamado “Cidades Sustentáveis”, que o jornalista André Trigueiro faz. Ele é meu amigo, gosto muito dele, mas não concordo quando ele diz que as cidades podem ser sustentáveis. As cidades hoje estão ocupadas por 70% da população do planeta. Só 30% da população não estão na área urbana. Essas pessoas não consomem o mesmo que uma cidade consome, não têm a mesma demanda de energia e nem todos esses consumos que uma vida urbana exige. Esse repertório todo de quem vive em cidade grande, usando elevador para subir e descer, escada rolante, carro, combustível, posto de gasolina, isso tudo é inviável! Não dá para você pensar num reequilíbrio do planeta mantendo esses verdadeiros sumidouros que são as grandes cidades, com todo mundo sugando a energia do planeta, com milhões de pessoas consumindo, comendo, parecendo umas pragas dentro dessas cidades e que não têm consciência de que estão comendo a terra. As grandes cidades tinham que se desmanchar, esse amontoado de gente tinha que se espalhar. Há 10 anos quando me convidaram para falar em um painel sobre cidades sustentáveis, eu disse que as grandes cidades eram um sumidouro de energia, que eram uma arapuca e que, quem estivesse nas grandes cidades quando viesse uma tragédia ambiental em escala monumental, iam ser os primeiros a morrer. E está aí.