seg, 24 setembro 2018 15:17
Entrevista Nota 10: Carlos Velázquez e o mito como conhecimento
Demasiado humana, a capacidade de imaginar e fabular senta lado a lado com o rigor da ciência na sala de aula do músico e professor mexicano Carlos Velázquez Rueda, cujas pesquisas acadêmicas e atividade docentes vibram na frequência da Estética, da Mitologia e da História da Arte, investigando as sensibilidades através das imagens, símbolos e narrativas.
Para ele, que chegou à Unifor em 2001 para ingressar no curso de Jornalismo, os mitos, antigos e contemporâneos, têm relação direta com a invenção de si e as diversas formas criativas de reinvenção da vida coletiva.
Graduado em Educação Musical pela Universidad de Guadalajara, Velázquez fez Especialização em Música Espanhola em Santiago de Compostela, na Espanha, e foi tocando violão pelas ruas de Madri que conseguiu dinheiro para voar até a França, onde fez Mestrado e Doutorado em Música Antiga pelo Concervatoire National de Musique du Raincy, enfrentando a posteriori dois pós-doutorados, um em Filosofia da Educação pela Universidade do Minho e outro em Estudos Culturais pela Universidade de Aveiro, ambas em Portugal.
Na Unifor, ministra as disciplinas Imagens, Mitos e Discurso (Jornalismo); Arte, Cultura e Comunicação (Publicidade); Arte-educação, Cultura e Subjetividade (Psicologia); Imagens e Narrativas Míticas e Estética da Arte (Cinema), além de coordenar o Movimento Investigativo Transdisciplinar do Homem – MITHO.
No Brasil e, mais precisamente em Fortaleza, além de viver o grande amor, a psicóloga e doutora em educação Alessandra Alcântara, assessora da Vice-Reitoria de Graduação da Unifor, Velázquez se viu levado a deixar a prática musical em segundo plano para encarar o desafio de repensar epistemologicamente o lugar da arte e articular o pensamento abstrato com a dimensão do sensível. Trabalho heroico, que tem como forte aliada justamente a ideia de mito como forma de pensamento criativo e dispositivo para a produção de sentido e afirmação de uma vida bela.
Professor, como tem sido aplicar na prática e no âmbito institucional as pesquisas em torno da educação sensível?
CARLOS VELÁZQUEZ: O principal desafio de todos é o contexto geral um tanto pragmático que pensa a educação. Geralmente não se pensa a educação como a formação integral do ser humano, puxar o humano pra fora, pro seu contato com mundo. A tendência é reduzir isso a uma relação de produtividade e emprego. Hoje, mais que nunca, uma referência falha, porque sabemos que é difícil conseguir emprego ou se manter nele, que as vagas estão desaparecendo e que as tendências são outras. Então, isso cria uma indefinição no nosso meio educacional, que permeia o administrativo e às vezes dificulta uma tomada de postura. Eu vou montar um programa sobre sensibilidades. Pra que? Como isso pode ser rentável no mercado de trabalho? E a resposta é sim, pode ser rentável, porque justamente é o suporte de qualquer conhecimento bem construído. A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) financiou um estudo internacional sobre as competências socioemocionais, justamente porque começaram a perceber que nem a produtividade nem os ganhos eram o que esperavam, devido aos gastos que estão tendo com depressão, suicídio, falta de cooperatividade, deficiência na resiliência das pessoas, etc, ou seja, com aspectos da educação que não são quantificáveis ou monitoráveis estatisticamente e que se traduzem em deficiências reais e funcionais na perspectiva do mercado de trabalho. Trago isso à tona porque é uma fonte palpável e verificável da falta desse espaço para ver a educação a partir de uma perspectiva mais articulada e menos imediata. Mas tenho tido sorte aqui na Unifor e encontrado espaço para manter o lugar da estética e impulsionar a área do imaginário com a disciplina da mitologia.
Como o mito ajuda a pensar?
CARLOS VELÁZQUEZ: Vou citar Freud: a uma certa altura, ele diz que a humanidade passou por três maneiras de conhecimento de si e do mundo. A primeira foi a mitológica, que ele chama de animista, as questões da alma. A segunda foi a religiosa e a terceira foi a científica. E ele conclui dizendo: certamente a que melhor funcionou das três foi a primeira. Por que? Porque mitologia não é apenas um acervo literário transmitido oralmente. É uma maneira ativa de pensar. Uma maneira de pensar que procura articular o sensível, o estar aqui e recolher as informações sensíveis do ambiente através dos meus sentidos e articulá-las com as minhas representações mentais para que isso vire um verdadeiro intelecto. São as duas coisas conjugadas, interlidas, por isso intelecto. E tem uma vantagem muito grande já no primeiro contato: é fascinante. É fascinante porque são histórias, fantasia, tocam fundo e a gente não sabe precisamente explicar por que, mas depois vai entendendo. A questão é que nossa ciência contemporânea não é a única maneira de conhecer sobre a vida, antes da era moderna as pessoas conheciam muito sobre o mundo através da mitologia.
E como fica o conhecimento de si na contemporaneidade quando pensamos em mitologia?
CARLOS VELÁZQUEZ: Você sabe que nessa disciplina do Cinema, de mitologia, a gente acabou escrevendo contos e vamos publicar um livro, que já está no prelo? E na apresentação eu disse que fizemos um pacto: reconhecer que a mitologia é uma atitude. Porque, etimologicamente, significa calar a própria voz para ouvir a voz dos deuses. Então, é uma disciplina epifânica, que nos revela o divino, mas, além de ser um monte de histórias mirabolantes é, acima de tudo, uma forma de conhecimento que procura integrar pensamento abstrato com dados sensoriais. E, se para fazer mitos basta fantasiar, convocar a imaginação, então continuamos fazendo mitos. E os mitos de hoje, os que estamos produzindo agora, através dos seriados de televisão, da telenovela, do cinema ou da revista de fofocas, isso tudo pode sim revelar muito sobre nós, nossa posição social. Até quando você conta um chiste, dá uma desculpa esfarrapada ou produz uma fakenews isso é material mítico. Justamente porque, sem saber, procurou recursos naquilo que ficou de fora da linguagem formal. Acho interessante perguntar aos nossos mitos atuais sobre quem somos e como vamos levando nossa própria existência.
Apesar de fabuloso e incitador da imaginação, o mito também aponta incompletudes e faltas inerentes à condição humana?
CARLOS VELÁZQUEZ: No mito, o herói, para resolver um problema, passa por um processo peculiar e impactante: ele precisa morrer e se recompor, para voltar melhor preparado e vencer as dificuldades que tem pela frente. Em termos psíquicos, esse é o processo típico da criatividade. Ir buscar no inconsciente o que está faltando para resolver o que não se consegue na dimensão da consciência. O herói tem a missão de articulação dos infernos, da terra e do céu. Ou seja, claro que metaforicamente, isso implica articular a nossa existência mais baixa e profunda, com a nossa superfície visível, que é a Terra, e com as utopias que estão nos guiando e podem nos servir de referência, que é o céu. O herói, portanto, é a representação da atitude individual que procura essa articulação e busca a beleza estética. Na mitologia, a saga heroica se devota justamente a essa questão: quais os desafios para o indivíduo, que é o herói, buscar no inconsciente uma resposta criativa capaz de dirimir problemas e faltas. Os sujeitos podem reencontrar seu próprio caminho heroico, sua própria direção e, portanto, seu próprio sentido. Passar a ser criativo para buscar soluções é uma atitude cada vez mais necessária. Esse capital inventivo é o que é mais solicitado hoje, mas o que está sustentando tanto a apreensão quanto a continuidade dessa empreitada criativa, além das tecnologias de ponta? Falta justamente o fundamento desse sentido, recolher dados sensoriais do meio-ambiente e processá-los imaginariamente, no intelecto verdadeiro.
E qual o herói do momento em suas pesquisas, professor?
CARLOS VELÁZQUEZ: Colaboro mais recentemente com o grupo internacional de pesquisas em sensibilidades. E apresentei um trabalho sobre O Chapolin Colorado. O tema do colóquio foi América Latina e, até por conta de minha nacionalidade e dos novos rumos que estão se tomando por lá, estou atento à questão do crime organizado e mais propriamente do narcotráfico. O presidente eleito do México, como promessa de campanha, declarou que vai negociar acordos ao invés de declarar a guerra ao narcotráfico. E inclusive já começou a negociar com a ONU. Basicamente a minha proposta foi fazer uma metáfora do continente americano com as faculdades conscientes centradas na ideologia ou nas simbologias da cultura norte-americana, contrapondo isso à aparente desorganização, mas também à riqueza de elementos e movimentos que é a América Latina. A América Latina seria uma espécie de inconsciente das ideologias da cultura norte-americana que, de certa maneira, lideram essa composição. O herói, portanto, para aquelas ideologias seria o Capitão América. Mas o Capitão América é perfeito, não precisa modificar nada, está trabalhando para manter as coisas como estão. O herói da América Latina seria o Chapolin Colorado, que é estupido, completamente imperfeito e por isso mesmo tem todo um caminho pela frente para se reformular, para crescer, amadurecer, formular respostas criativas às suas dificuldades. E parte desse movimento heroico que começa com Chapolin Colorado seria o desenvolvimento do crime organizado, que está tomando feições de grandes empresas transnacionais, está cada vez mais misturado com as instituições governamentais e gera articulações fundamentais para a economia do Primeiro Mundo. Tem havido legalizações parciais dos produtos do narcotráfico, e tem havido uma série de medidas que flexibilizam as atividades desse crime organizado. Isso aponta sobretudo para uma assimilação mais do que um confronto. Então, essa assimilação, a meu ver, pode trazer mudanças insuspeitas, transformações sociais e econômicas para as quais não estamos atentos porque não queremos ver esse processo. Psiquicamente, são somatizações, o pouco que aparece são sintomas de desregulações que estão procurando seu lugar, se articulando de alguma maneira. Se não dermos atenção a isso, o inconsciente pode invadir a consciência e provocar um surto psicótico, o que não é desejável. Então, é uma chamada a ver o que está acontecendo e a tratar mais aberta e heroicamente o momento.