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Ter, 21 Julho 2020 15:12

Entrevista Nota 10: Lilia Schwarcz e a construção de uma História plural

Autora de importantes obras como “Brasil: Uma biografia” e “O espetáculo das raças”, a antropóloga e historiadora defende a inclusão social na produção histórica


Lilia Schwarcz em palestra realizada na Universidade de Fortaleza no ano de 2018 (Foto: Ares Soares)
Lilia Schwarcz em palestra realizada na Universidade de Fortaleza no ano de 2018 (Foto: Ares Soares)

“Eu acredito piamente que a diversidade só nos fará melhores”. Historiadora, antropóloga e professora universitária, Lilia Moritz Schwarcz, uma das mais importantes pensadoras brasileiras da atualidade, fala sobre preservação da memória e destaca a importância da luta antirracista, com exclusividade ao Entrevista Nota 10. 

Autora de obras como “O espetáculo das raças” (1993), “As barbas do imperador” (1998, prêmio Jabuti de Livro do Ano), “Brasil: Uma biografia” (com Heloisa Murgel Starling, 2015) e “Lima Barreto: Triste visionário” (2017, prêmio Jabuti de Biografia), atualmente, Lilia Schwarcz é também curadora adjunta do Masp e colunista do Nexo Jornal. Em seu último livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro” (2019), ela examina as raízes do autoritarismo nacional, por meio da ampla reunião de dados estatísticos. 

Lilia já esteve na Universidade de Fortaleza no ano de 2018 para o lançamento de “Dicionário da Escravidão e Liberdade” e em 2016, para uma palestra sobre o livro “Brasil: Uma biografia”.  

Confira a seguir: 

Entrevista Nota 10: Seu artigo “História não é bula de remédio nem vem com receita”, publicado recentemente no Nexo Jornal, defende uma história plural. De que forma compreender a amplitude da realidade nacional desde seus primórdios é necessário para refletirmos acerca de pautas profundas como o racismo, por exemplo?  

Lilia Schwarcz: Eu quis dizer que História não tem receita para dar, uma História crítica está sempre se refazendo a partir das novas perguntas que nós elaboramos para os mesmos documentos. Eu defendo sim uma História mais plural e inclusiva. Nós, por exemplos, somos um país composto por cinquenta e seis por cento de pessoas descendentes de povos africanos e a nossa História continua a ser eminentemente branca e ocidental, cujos heróis são todos homens e vinculados a uma historiografia muito colonial. Então, é preciso que a gente revisite a História, entenda que a História não é bula, ou seja, que durante muito tempo nós não perguntamos sobre questões como o papel das mulheres enquanto protagonistas da História, o papel dos negros como protagonistas, e acho que é chegado o momento de a gente incluir questões da nossa sociedade e a partir delas escrutinar a nossa História e aí sim produzir uma História mais plural. A questão do racismo é fundamental, sempre escrevi sobre a questão racial. No último livro, ela aparece no início e ao final, e na minha opinião temos um passado e um presente muito fortes, muito perversos. Não se passa impunemente por ter sido o último país a abolir a escravidão mercantil, não se passa impunemente pelo fato de termos recebidos metade de africanos e africanas que saíram compulsoriamente de seu país. Essas são marcas pesadas porque elas têm sido reinscritas no nosso racismo estrutural e institucional, que praticamos hoje em dia. 

Entrevista Nota 10: Vidas negras são dizimadas cotidianamente nas periferias do Brasil. Qual a relação entre o autoritarismo abusivo que tira essas vidas e o regime escravocrata? 

Lilia Schwarcz: Quer me parecer que o Brasil foi criado a partir de um regime muito autoritário e eu me refiro ao regime escravocrata, mas também aos mandonismos, aos fatos de termos criado os novos coronéis da república, e nessa perspectiva nós tentamos, assim como fizemos com relação à escravidão, tornar invisíveis essas populações. A História faz isso, como nós conversamos, mas nós também fazemos isso no nosso dia a dia quando não percebemos que as nossas universidades são muito brancas ainda, quando não notamos que no ambiente empresarial quase não há negros, quando não percebemos que nos postos de direção não existem negros e quando permitimos essa política genocida. O genocídio não é só de vidas. É muito de vidas, porque nós estamos matando uma geração de jovens meninos e meninas negros e negras nas nossas periferias do Brasil inteiro, mas é também uma política genocida no que se refere à memória, porque nós matamos biologicamente, fisicamente, e matamos também não dando direito à memória, então, eu acho que é preciso rever essa perspectiva. É preciso finalmente prestar atenção para como vidas negras importam, e importam muito, sobretudo, num país que tem quase cinquenta e seis por cento da sua população, segundo categorias do IBGE, preta ou parda, e também como um país que é considerado a segunda maior população de origem africana, só perdendo para a Nigéria. 

Entrevista Nota 10: Muitas pessoas se isentam de diálogos por acreditarem que não são detentoras de um lugar de fala ou que não têm propriedade para tal. Vemos nas redes sociais alguma hashtag de apoio, como #blacklivesmatter, por exemplo, e logo em seguida alguém comenta: “TODAS as vidas importam”. Há uma dificuldade em compreender o que é mais urgente? De que forma é importante que nós, brancos, debatamos e sejamos aliados na luta contra o racismo, até por nos beneficiarmos dele, historicamente? 

Lilia Schwarcz: Nós vivemos num momento, como diz Angela Davis, e também aqui no Brasil a Djamila Ribeiro, que não basta dizer que nós não somos racistas, é preciso ser antirracista, o que implica em pensar que essa não é só uma questão moral, mas é uma questão de responsabilidade e essa responsabilidade vai ser medida por atos. É preciso que nós pratiquemos o antirracismo. De que maneira? Dividindo o privilégio. O racismo foi uma construção histórica da branquitude, foram os povos europeus que escravizaram os africanos e africanas, existia sim escravidão na África, mas era um modelo totalmente diferente, não era uma escravidão que transforma numa mercadoria, numa propriedade, era totalmente distinta, e também fomos nós, os brancos, a história colonial, que criamos as teorias do darwinismo racial no final do século XIX, as teorias do branqueamento, no início do século XX, e somos sim a população branca quem desfruta de situações de privilégio. Então, é preciso ser propositivo porque precisamos restituir esse que é um legado perverso da nossa História. Eu tenho lido várias matérias de empresários, até escrevi uma junto com um colega, chamando atenção também porque se nós pensarmos estritamente em termos práticos, estamos tirando do mercado uma força produtiva, criativa, que pode mudar e melhorar muito a nossa economia. Por que não incluir essa população? Mais ainda, eu acredito piamente que diversidade só nos fará melhores, ou seja, a diversidade significa troca de experiências, acúmulo de histórias, diálogo com a diversidade, e ela é absolutamente boa para nós, mesmo assim, muita gente ainda usa esse tipo de argumento, fala de meritocracia. Ou seja, como pensar em meritocracia num país cujo ponto de partida é tão distinto? Como falar em igualdade entre um jovem que trabalha o dia inteiro, faz escola à noite, e nem sempre pode fazer, não viaja, não aprende línguas, e um outro jovem que é educado por uma família que pode viajar, que pode ter outro tipo de experiência, que além da escola, faz um cursinho, cursos de línguas. A meritocracia é um conceito vago e que não se aplica ao Brasil, mesmo o conceito de democracia tem que ser revisto em função da situação dos brasileiros, como falar em democracia com racismo? Isso não existe. Mais ainda, como falar em democracia e igualdade se esse foi um país em que durante quase quatro séculos não existia igualdade de direitos, escravizadas e escravizados não tinham o direito de se educar, por exemplo, de adquirir escolaridade e o que significa adquirir letramento e escolaridade para essas populações? Ou, de outro lado, o que significa não ter acesso a isso durante tantos séculos? Mesmo assim, essa populações se educaram, entenderam que a única liberdade possível vinha da educação, ou seja, não existe só o vitimismo, essas foram populações que sempre resistiram, mas é preciso que a gente discuta não só racismo em relação aos negros, mas que a gente discuta branquitude como lugar social. Quando nós pudermos discutir branquitude ao lado da questão racial, aí sim nós vamos atacar o nó da questão e vamos ser antirracistas. 

Entrevista Nota 10: A pandemia do novo coronavírus “escancarou” ainda mais as disparidades políticas e econômicas da população brasileira?

Lilia Schwarcz: A pandemia de fato escancarou porque nós estamos vendo que ela entrou pelas elites, chegou de avião por pessoas que estavam no exterior trabalhando ou em férias, então, no começo a pandemia parecia uma doença, uma peste, como se diz desde os tempos antigos, das elites, mas rapidamente ela chegou nas nossas periferias e encontrou essas populações de baixa renda e mais vulneráveis porque não têm acesso a equipamentos urbanos necessários, como água, esgoto e tudo mais. Quando chegou nesse local também encontrou populações que não têm condições de ficar isoladas em suas casas. Trinta por cento dos brasileiros moram em casas de um cômodo onde ficam pelo menos seis pessoas. Portanto, nesses locais, nas nossas periferias, o espaço da sociabilidade não é dentro do lar, o espaço da sociabilidade é nas ruas. O que aconteceu na prática? A pandemia escancarou as nossas desigualdades na área social, na área econômica e no que se refere à educação também, ou seja, uma coisa são pessoas, estudantes, que sofrem sim com a pandemia, mas que têm acesso ao seu computador, têm uma casa com alguns cômodos, de maneira que podem estudar isoladamente, outra coisa são pessoas que não têm nem a internet. Nós sabemos agora que a cada quatro brasileiros, um não tem acesso à internet. 

Entrevista Nota 10: Para finalizar, como você acredita que a comunidade acadêmica pode contribuir para disseminar posições antirracistas, tendo uma vista que essa é uma discussão que muitas vezes fica dentro dos muros das universidades?

Lilia Schwarcz: É muito difícil falar em nome de todos, eu posso falar um pouco acerca do que eu tenho feito. Na medida do possível, eu tenho tentado socializar o meu conhecimento. Eu sou uma pessoa que vem da universidade pública, venho de escola pública, tenho, portanto, muito orgulho de ser formada numa escola pública e numa universidade pública de qualidade, mas eu particularmente acho que como eu me formei dessa maneira, é que eu devo ir para além dos muros fechados da universidade. Eu devo tudo à universidade, eu me formei na universidade, tudo o que eu escrevo é para a universidade, mas eu aprendi a usar as redes, ou seja, as redes podem ser lugares muito antidemocráticos, lugares de produção de ódio, como nós sabemos, mas as redes podem ser também locais de disseminação de informação. Nós vivemos em um momento em que é preciso dizer “eu não tenho argumento, eu tenho informação”, e é um pouco na base da informação que eu tenho me comunicado pelo Instagram, começando agora no Twitter, mas também nas lives que tenho feito. Eu acho que todos nós temos um pouco a obrigação de sair da nossa bolha e alcançar um grupo maior, nessas discussões que eu tenho feito, eu tenho falado, me manifestado abertamente a favor das políticas de cotas, das políticas de ação afirmativa e acho que isso ajuda muito a mostrar que nós, brancos, não vamos ter protagonismo nessa luta, porque o protagonismo é das populações negras, é das populações que sofrem, que têm traumas, cada uma com as suas histórias para contar acerca do racismo brasileiro, mas cabe a sociedade branca atuar como aliados, aliados na luta contra o racismo que com certeza não é uma luta exclusivamente dos negros. Lutar contra o racismo é uma questão brasileira e como eu já disse, nós não seremos de fato republicanos e democratas, no sentido de comungarmos de valores democráticos se não formos ao mesmo tempo, antirracistas.