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Sex, 17 Fevereiro 2023 14:42

Entrevista Nota 10: Pier Luigi Petrillo e o patrimônio cultural imaterial

Doutor em Direito Comparado pela Universidade de Siena, o professor e pesquisador fala sobre sua passagem pelo Corpo de Experts da Unesco para o Patrimônio Cultural Imaterial


Ele foi o primeiro italiano a compor e a presidir o Comitê de Experts, responsável por emitir pareceres para que a Unesco decida se um dado bem imaterial merece a titulação de patrimônio cultural da humanidade (Foto: Divulgação)
Ele foi o primeiro italiano a compor e a presidir o Comitê de Experts, responsável por emitir pareceres para que a Unesco decida se um dado bem imaterial merece a titulação de patrimônio cultural da humanidade (Foto: Divulgação)

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o patrimônio imaterial são as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. 

É papel da Unesco promover a identificação, a proteção e a preservação do patrimônio cultural e natural de todo o mundo, considerado especialmente valioso para a humanidade. O órgão considera o frevo e o sambo de roda do Recôncavo Baiano, por exemplo, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 

Enquanto presidente do Corpo de Experts da Unesco para o Patrimônio Cultural Imaterial, o professor Pier Luigi Petrillo e sua equipe emitem pareceres para que a Unesco decida se um dado bem imaterial merece a titulação de patrimônio cultural da humanidade. Em entrevista ao professor Humberto Filho, do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, Pier Luigi Petrillo falou sobre sua trajetória acadêmica e profissional, destacando a carreira em políticas internacionais nas áreas de Patrimônio Cultural Imaterial e lobbying

Em 24 de fevereiro deste ano, ele estará na Unifor para ministrar uma Aula Magna de abertura do ano acadêmico do PPGD sobre o tema “Teorias e Técnicas do Lobbying”, nome do livro de autoria do palestrante que está em fase de lançamento nos países de língua portuguesa. 

Confira na íntegra a seguir. 

Entrevista Nota 10 — Professor, fale-nos da sua formação acadêmica.

Pier Luigi Petrillo — Me formei entre Roma e Siena, na Itália, depois em Edimburgo, na Escócia, na Columbia University, em Nova York, e na McGill, em Montreal, no Canadá. Eu também me formei em Direito em Roma pela Luiss Guido Carli — avaliada como a universidade mais importante da Itália —, e depois adquiri o título de Mestre em Direito Parlamentar de Nível II, pela Universidade Sapienza. Em seguida, fiz a pesquisa de doutorado (Phd) em Direito Comparado na Universidade de Siena. Mais tarde, fui para o exterior, para a Escócia, Estados Unidos e Canadá para completar meus estudos.

Entrevista Nota 10 — E sobre a sua atividade enquanto professor universitário, como poderia sintetizá-la?

Pier Luigi Petrillo — É o trabalho mais bonito do mundo porque combina minhas grandes paixões: a investigação, que é sempre uma descoberta; e o diálogo com os mais novos, os alunos, que cuido como se fossem meus próprios filhos e com quem procuro sempre estabelecer uma relação com diálogo não “acadêmico”, não “formal”.

Entrevista Nota 10 — Como, na sua experiência, ocorreu a aproximação do direito com a salvaguarda do patrimônio cultural, sobretudo o imaterial?

Pier Luigi Petrillo — Quando era estudante de doutorado, a Convenção da Unesco sobre Patrimônio Cultural Imaterial de 2003 foi aprovada e me pediram para escrever um ensaio de comentários sobre ela. Para mim, era um assunto completamente novo e, a princípio, não me impressionou. Depois, em 2004, fui admitido como assessor jurídico pelo então Presidente da República e ele designou-me para o estudo do patrimônio cultural. Foi então que compreendi a importância do tema, porque se se quer proteger uma comunidade, deve-se, antes de tudo, proteger o seu patrimônio cultural imaterial. Aquilo a que os britânicos chamam “living heritage” porque não é um patrimônio congelado no tempo ou do passado, mas um patrimônio vivo, em constante evolução. 

Entrevista Nota 10 — Você foi o primeiro italiano a compor e a presidir o Comitê de Experts que emitem pareceres para que a Unesco decida se um dado bem imaterial merece a titulação de patrimônio cultural da humanidade. Relate um pouco sobre seu ingresso e sobre a experiência vivida no referido órgão.

Pier Luigi Petrillo — Foi a melhor experiência da minha vida. Após 15 anos dedicados ao estudo do patrimônio cultural, em 2018, o governo italiano decidiu me nomear para o corpo de especialistas da Unesco. Parecia um desafio impossível porque, até então, todos os membros do órgão eram antropólogos e nunca havia sido eleito um jurista. A despeito destes precedentes, obtive 92% dos votos, o maior resultado da história. Assim que entrei no órgão, percebi ter muito a aprender e por isso decidi estudar Antropologia Cultural, inscrevendo-me em um curso na Universidade de Nápoles Suor Orsola Benincasa, sob a direção de dois antropólogos mundialmente famosos, Marino Niola e Elizabetta Moro. 

Nos quatro anos em que fiz parte do grupo, de 2018 a 2022, compreendi a importância da Convenção da Unesco de 2003 e a dinâmica internacional por trás dela. Em 2021, fui eleito vice-presidente do órgão e, em 2022, presidente, o primeiro italiano desde a criação do órgão. Em dezembro de 2022, com meus colegas, presidi o Comitê do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco realizado no Marrocos, em Rabat, e foi uma experiência extraordinária: 2.000 mil pessoas ouvindo você, vindas de 183 países.

Entrevista Nota 10 — Para que um país tenha um bem reconhecido como patrimônio cultural, ele deve apresentar uma candidatura. Quais são os erros mais comuns em tais postulações?

Pier Luigi Petrillo — Muitos estados confundem a Unesco com uma marca registrada. Eles acham que a candidatura pode ser útil para aumentar o turismo ou o comércio de determinado produto. Infelizmente, este é o erro mais comum e também o mais perigoso, porque se, por razões políticas, o Comitê decidir inscrever esse tipo de dossiê na lista da Unesco, o espírito da Convenção estará completamente deturpado.

Entrevista Nota 10 — Recentemente a Unesco retirou da sua lista de bens representativos do patrimônio cultural imaterial uma manifestação cultural da Bélgica, chamada “A Ducasse”. Por que isso aconteceu?

Pier Luigi Petrillo — Foi uma decisão muito dolorosa, mas fundamental. Um grupo de cidadãos escreveu para a Unesco protestando porque um personagem (dessa manifestação de carnaval) interpreta um escravo negro, lembrando quando a Bélgica tinha colônias na África. Os cidadãos acharam esse personagem ofensivo e pediram para removê-lo. Mas a comunidade (originariamente responsável por dar suporte à inscrição) recusou, porque esse personagem representava uma parte da história belga e a história não podia ser apagada, mesmo que fosse feia; de fato, para a referida comunidade, esse personagem servia para lembrar e manter vivas as atrocidades da história belga. A Unesco, no entanto, interpretou essa resposta de maneira diferente e considerou o personagem ofensivo e não condizente com a Convenção de 2003 porque incitava (no momento presente) o ódio racial, e decidiu excluí-lo da lista.

Entrevista Nota 10 — Na Unitelma Sapienza de Roma você lidera uma Cátedra Unesco. Qual o âmbito de atuação da Cátedra e sua importância para a vida da universidade?

Pier Luigi Petrillo — A Cátedra que dirijo na Unitelma Sapienza é a primeira na Itália reconhecida pela Unesco dedicada ao patrimônio cultural imaterial. A primeira do mundo em uma universidade online. Lidamos, em particular, com perfis jurídicos, e portanto, com o entendimento de como salvaguardar o patrimônio imaterial: fazemos isso comparativamente, ou seja, estudando diferentes países ao redor do mundo.

Entrevista Nota 10 — Outro tema do seu especial interesse, com grande aproximação com a ciência política e o direito parlamentar, é a regulamentação do lobby ou lobbying. Como você despertou para esse assunto?

Pier Luigi Petrillo — O lobbying é a essência da democracia. Em todos os estados democráticos e pluralistas existem grupos de pressão que influenciam o processo de tomada de decisão. Desde que eu era estudante de direito, essa relação entre lobista e agente público com capacidade decisória me fascinou. Na Itália, de fato, essa relação é obscura e sem regras, representando a principal causa de corrupção em meu país. Como estudante, porém, examinei outros sistemas jurídicos e percebi existirem regras em muitos outros países. A partir daqui, comecei a me perguntar, por ocasião do meu doutorado, como traduzir essas regras para a Itália. 

Em 2011, publiquei meu primeiro livro sobre o assunto e me lembro de quantos professores mais antigos não ficaram contentes porque, numa visão exclusivamente italiana, achavam que falar de lobby era como falar de corrupção. Em vez disso, tentei explicar, por meio de um estudo comparativo, o quão importante era o lobby para a democracia de um país, e o quão importante era regular essa atividade para evitar fenômenos degenerativos.

Entrevista Nota 10 — Neste tema, recentemente (2022) um livro seu foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela editora Contracorrente, sob o título de “Teorias e Técnicas do Lobbying”. Como você sintetizaria essa obra?

Pier Luigi Petrillo — O livro da editora Contracorrente é um verdadeiro manual de lobbying. Quem quiser saber como fazer lobby, porquê fazer lobby, com quais ferramentas e para quais objetivos, pode ler o livro e entender essas coisas. O livro é muito prático, com muitos exemplos concretos que explicam passo a passo como fazer lobby. Escrevi visando fazer as pessoas entenderem no que consiste essa profissão e ajudar o decisor público em seu relacionamento com o lobista.

Entrevista Nota 10 — Nos últimos anos você esteve presente em várias atividades da Universidade de Fortaleza, como edições do Encontro Internacional de Direitos Culturais, Seminários, participação em livro coletivo sobre patrimônio cultural imaterial, entre outros. Que conceito você tem da Unifor?

Pier Luigi Petrillo — Conheci a Unifor graças às conferências anuais organizadas pelo professor Humberto Cunha sobre direitos culturais (Encontro Internacional de Direitos Culturais) e entendi que, graças aos estudos do docente e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais, a Unifor tornou-se a referência mundial nessa questão. Quando tive a oportunidade de visitar a Universidade em 2018, fiquei impressionado com a sua beleza e a sua vastidão. Pude também admirar o acervo, cheio de obras de arte, e conversei com inúmeros alunos que imediatamente me impressionaram pela criatividade e empenho. Fiquei realmente impressionado com a Unifor.

Entrevista Nota 10 — Sua obra toda tem grande vinculação com os direitos culturais. Que importância, desafios e perspectivas você vislumbra para os referidos direitos na atualidade?

Pier Luigi Petrillo — No Brasil, assim como na Itália, faz algum tempo que assistimos a fenômenos populistas que mostram a diversidade como um perigo para a classe dominante. É necessário contrariar com força esta tendência e esta visão: as diversidades culturais, religiosas, sociais, políticas e linguísticas são a maior riqueza dos nossos territórios. E na base desta diversidade estão os patrimônios imateriais, as heranças que recebemos de presente dos nossos pais e que queremos transmitir aos nossos filhos. Devemos preservar estes bens e reivindicar com orgulho tanta diversidade, porque só uma sociedade pluralista, que saiba valorizar a sua diversidade e que saiba proteger os seus bens, terá futuro.