sex, 22 novembro 2019 14:09
Entrevista Nota 10: Domingos Linheiro "preservar para se (re)conhecer"
Baiano de nascimento, há mais de 42 anos o arquiteto e professor Domingos Linheiro chegou ao Ceará “por força de casamento”. Por aqui tornou-se um dos principais guardiões dos prédios históricos cearenses. Ainda muito jovem, porém já com uma vasta bagagem preservação de prédios históricos, na década 1980, ajudou a montar a superintendência regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do qual esteve à frente durante sete anos.
Com 50 anos de arquitetura na bagagem, o professor Domingos Linheiro diz ainda aprender muito com os alunos em sala de aula. As trocas acontecem nas aulas de “Desenho” e “Conservação Integrada”, que há 18 anos ministra no curso de Arquitetura da Universidade de Fortaleza. Nesta conversa, o arquiteto fala das suas experiências na arquitetura, do necessário cuidado com a preservação do patrimônio histórico do Brasil, de como é possível conciliar desenvolvimento urbano e conservação e da formação que dá aos seus alunos dentro de sala de aula e, principalmente, fora dela.
Unifor – Como a arquitetura entrou na sua vida?
Domingos Linheiro – Tenho outro irmão – são dois - que resolveu fazer arquitetura. Ele é três anos menos novo do que eu e então pensei: ‘poxa, dois filhos arquitetos, vou fazer engenharia’. Mas aí, no meio do caminho, eu vi que não dava, eu gostava muito de desenho. Aí resolvi fazer arquitetura. Ele se formou em 1966 e eu, em 1969. Neste ano, estou fazendo 50 anos de formado.
Unifor – E essa relação com o patrimônio histórico como começa?
DL- Essa relação começa ainda quando estudante. Eu fui escolhido para chefiar equipes de levantamento do Pelourinho [em Salvador – BA], que na época não tinha nada, estava em ruínas. Então, junto com outros colegas de anos inferiores, eu chefiei essa equipe para fazer o levantamento de 100 prédios. Quando eu fui para São Luiz, o prefeito disse: ‘você tem experiência com patrimônio?’ E eu disse: ‘Tenho não’. Mas ele disse: ‘Você tem, você vai montar o departamento de patrimônio daqui’. E por conta do meu trabalho lá, eu fui escolhido pelo Iphan para ser uma espécie de representante sem receber nada, né? Isso com 26, 27 anos de idade. Eu informava as coisas, tinha um tombamento muito pequeno ainda, depois é que foi ampliado. Foi uma coisa que apareceu. Mas na minha vida profissional eu tenho outros tipos de trabalhos, mas mais ligados a isso.
Unifor - Em 1982 o senhor montou a superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ceará. Quais foram as maiores dificuldades que o senhor encontrou à frente do órgão?
DL – Foi um desafio muito grande. A questão de patrimônio histórico era quase um palavrão. Você tinha uns contatos com órgãos públicos, prefeituras, mas era muito difícil o entendimento. Era a primeira diretoria. O Iphan nacional hoje tem 82 anos, a nossa regional tem 37 anos, é relativamente recente. Há 37 anos eu encontrei dificuldade de gente, de material, de recurso. Não tinha sede, não tinha nada. Mas a gente foi aos poucos indo e ampliando um pouco esses tombamentos, inclusive de áreas, de cidades. Não se deu o tombamento na minha gestão, mas na minha gestão eu comecei a fazer os estudos iniciais para o tombamento do núcleo histórico do Icó, por exemplo.
Unifor- Nesta época, foi iniciado um inventário do patrimônio histórico do Ceará...
DL – Sim, o Iphan participou de um inventário para conhecer além daquilo que estava tombado – que era muito pouco. Nós tínhamos que ampliar estes tombamentos. Os tombamentos iniciais, proteção inicial era mais voltada para o período colonial e nós não tivemos esse período aqui. Então, com o tempo, muito se perdeu. É uma ótima oportunidade para se dizer aqui: Fortaleza era uma cidade belíssima. O que se tem hoje no Centro? Uma destruição enorme porque não teve intervenção oficial na época em que poderia ter tido. O Iphan não se incomodava, não estava preparado com o material humano deste patrimônio do século XIX e mesmo do século XX. Os poucos tombamentos que tinham aqui precisavam ser ampliados. A criação da regional possibilitou estudos posteriores para o tombamento da cidade do Icó, um núcleo grande; o tombamento numa área grande da cidade do Aracati; veio o tombamento de Sobral; e depois de Viçosa. Para quem não tinha nada, já era uma grande área tombada.
Unifor - De lá para cá, qual balanço o senhor faz do nosso patrimônio histórico? Ganhamos ou perdemos prédios históricos?
DL - O que se perdeu não tem volta. Esses 30 e tantos anos desta jovem regional fez com que estas cidades que têm patrimônio começassem a perceber e ter interesse na preservação. A constituição diz que o município tem que estar ao lado do órgão federal na preservação do patrimônio. Não acontece isso porque a proteção do patrimônio cria uma certa antipatia para alguns setores da comunidade. Ninguém aceita ter seu imóvel protegido por lei ou tombado. Eles acham que perdem, não têm o prazer de terem aquele imóvel tombado, não entendem que é importante para a memória, para a história do país. É uma coisa que impede a sua alteração, sua demolição e, com isso, é uma ação, às vezes, antipática e os prefeitos, normalmente, não assumem. Algumas prefeituras demonstram maior interesse em projetos desse tipo. Posso salientar a prefeitura de Sobral, que tem um interesse enorme naquele tombamento de Sobral e tem sempre obras, vários projetos e tem uma possibilidade grande de arquitetos trabalharem lá nessa área. Outros municípios nem tanto.
Unifor – O Brasil é um país com memória?
DL – Acho que agora está começando a ficar sem, não temos muita perspectiva nesta área. Até o próprio Ministério [da Cultura] foi extinto e fica aí esse jogo da cultura jogada para o Ministério da Cidadania e depois pro Turismo. A gente não vê tanta perspectiva de como retomar isso.
Unifor – Mas ao logo dos anos, pelo que temos de acervo, podemos considerar que cuidamos bem do nosso patrimônio ou deixamos muito a desejar?
DL - Poderíamos ter cuidado mais, falta sempre. É um país muito grande, é um acervo imenso, o custo é altíssimo. Esse custo não pode ficar só na responsabilidade federal. Já houve uma certa ajuda, a partir da década de 70, quando também os estados começaram a criar leis de proteção porque antes era só o governo federal. Agora você tem os tombamentos e proteção a bens de interesse da nação, vamos dizer assim, e bens de interesse local, onde entra aí a ação das prefeituras. Já ajuda muito nisso e na disseminação dessa ação de preservação da memória, que é algo importante para todos os países do mundo.
Unifor - E quando se fala de Ceará e mais especificamente Fortaleza, podemos dizer que cuidamos bem do nosso patrimônio?
DL – Como falei antes, tínhamos uma cidade muito bonita no século XIX, mas o Iphan não se fazia presente. À medida que foram saindo os símbolos do poder - saiu o palácio, a assembleia, o fórum - esses símbolos do poder que ainda davam uma certa dignidade àquilo ali, isso foi saindo e houve um fortalecimento enorme da área chamada Aldeota, Beira Mar e o Centro foi se tornando uma área degradada. Não há investimento, não há interesse em preservar. Muita coisa foi destruída. Ai sobra ali um elemento como Theatro José de Alencar, a Prefeitura de Fortaleza, alguns elementos estaduais, o Museu da Indústria, o Passeio Público... Temos que ver o que temos ainda e assumir. Alguns projetos foram feitos aqui mesmo na Unifor, no ano de 2005 ou 2006. Nós tivemos a responsabilidade de coordenar dois trabalhos de recuperação de dois patrimônios: um estadual, que é antiga sede da Coelce e hoje Museu da Indústria; e o outro federal, que é a antiga sede do Dnocs, que seria lá o Centro de Referência do Semiárido. Era uma contribuição que a Unifor estava dando nesse projeto e que, se fosse levado a efeito, nós teríamos dois prédios recuperados um ao lado do outro. Isso pode criar ao lado uma influência, um prédio recuperado e outro... mas isso não acontece, é uma coisa rara.
Unifor - Como os governos podem atuar no sentido de educar e conscientizar a população sobre a importância da preservação?
DL - Agora está mais difícil, agora está deseducando. Com esse processo de esvaziamento das atividades no Ministério da Cultura, que está jogado para um lado, jogado para o outro e o Iphan no meio disso, sem saber direito as coisas, com substituição de superintendente do Iphan com formação profissional por indivíduos metidos na área política ou políticos fracassados que arranjam empregos lá. Não vejo perspectiva. Na área da prefeitura foi criado um departamento de patrimônio. Foi entregue a arquitetos, mas não têm meios para fazer nada. A gente não vê iniciativa quase nenhuma. Há assim, eventualmente, um certo destaque em um evento, um prêmio para alunos que se destacam em trabalhos de conclusão de curso ligado ao patrimônio. Mas cadê a obra? Cadê o exemplo prático de se restaurar um edifício ou se reutilizar parte daquele Centro enorme para outras atividades, inclusive para habitação? Eu não vejo isso.
Unifor - O senhor está há 18 anos na Universidade de Fortaleza...
DL – Estou há 42 anos em Fortaleza e há 18 anos me chamaram para ensinar uma disciplina nova que nós chamávamos naquela época de “Técnica Retrospectiva”. Era uma disciplina com poucos créditos, tendo em vista a realidade de Fortaleza. Mas nós chegamos à conclusão de que estamos formando pessoas aqui é para o mundo, é para o Brasil, para o exterior. Então, aumentou-se os créditos de dois e passou para seis. O nome passou para “Patrimônio e Restauro”. Com uma nova reforma curricular, deu-se o nome de “Conservação Integrada”, que é uma disciplina que informa para eles terem consciência do que é patrimônio, da importância de preservar, de ter um pouco de responsabilidade e capacidade de atuar nisso. Nós temos uma disciplina prática, fazemos projetos. Exploramos bastante a teoria do restauro, desde a sua origem até os dias atuais, mas temos uma coisa importante que é a viagem para fora do Estado. São as visitas técnicas que fazemos a quatro destinos: Salvador, Recife-Olinda, São Luís de Alcântara e, por último, mais recente, Belém. A gente viaja com 60, 70 alunos da disciplina mostrando na prática obras em execução, obras concluídas. Esse é um diferencial que este curso aqui da Unifor tem.
Unifor - O senhor percebe o interesse desses novos arquitetos pela área de preservação?
DL - Muito. Acho que é muito por essa disciplina ter essa dinâmica de você ver um pouco a prática, visitar a obra, viajar para essas cidades. Além da curtição da viagem, eles terminam se interessando porque veem nesses outros lugares um patrimônio bem mais valorizado do que eles veem aqui.
Unifor - Depois de 50 anos de arquitetura, como é ainda estar dentro de sala de aula discutindo com alunos que não têm de idade o tempo que o senhor tem de profissão? Como é essa troca de conhecimento?
DL – São anos muito bons. A gente aprende também com os alunos. Às vezes têm turmas mais interessadas, outras menos. Tem outra disciplina que eu ensino também, “Desenho”, que é a minha paixão, aquilo que eu gosto de fazer e que insisto muito com eles porque não posso aceitar que um arquiteto não saiba representar aquilo que ele pensa. Qualquer ideia, ela pode não ser maravilhosamente bem representada, mas tem que ser razoavelmente representada para a própria pessoa entender o que está querendo.
Unifor - Isso só vale para o desenho à mão?
DL – O desenho à mão é fundamental para criação, para o momento de projetar porque quem comanda é o cérebro, é à mão, e você pode fazer três, quatros soluções rapidamente num papelzinho em cima do outro. No computador, é só um determinado comando. No processo criativo, o desenho à mão é imbatível. Então, a gente está aqui esse tempo todo e a verdade é que cada ano a mais é um desafio. O fato dessas viagens faz com que haja uma interação muito maior entre aluno e professor. A gente se torna amigo, além de professor.
Unifor - Como conciliar preservação arquitetônica e desenvolvimento urbano?
DL - Só a gente ter como espelho a grande parte das cidades europeias. Não há nada porque uma determinada cidade, em que as ruas são estreitinhas, que não pode passar carro... por que essa área tem que ser alagada? Por que não pode se transformar em área de pedestre? Na Europa é assim. Onde não tem movimento, nas cidades medievais, vira uma cidade universitária, é cheia de estudante andando na rua. A questão do patrimônio não atrapalha o desenvolvimento, ele tem que estar integrado ao desenvolvimento. As pessoas não moram no centro aqui porque de lá foram expulsas por diversas razoes. Na Europa as pessoas moram no Centro. E quando a gente sai daqui, vai ver o que na Europa? E aqui a gente destrói. Não tem esse negócio de lá ser mais importante. É mais antigo, é. O nosso é mais recente, mas é nosso, temos que cuidar.