null Pequenos gestos para um novo mundo

Qui, 28 Maio 2020 10:36

Pequenos gestos para um novo mundo

Apontado como um dos principais pensadores do Brasil, o psicanalista italiano Contardo Calligaris, que esteve no Mundo Unifor em 2019, vê nas pequenas atitudes a esperança de mudanças positivas trazidas pela pandemia de Covid-19.


Psicanalista e escritor Contardo Calligaris. (Foto: Ares Soares)
Psicanalista e escritor Contardo Calligaris. (Foto: Ares Soares)

Quebra de confiança no outro, mudanças de hábitos do dia a dia, a certeza de que a velhice não é valorizada, negacionismo de parte da sociedade e a esperança de surgir um mundo mais solidário pós-covid-19 são algumas das impressões que o psicanalista e escritor Contardo Calligaris tem sobre o atual momento de pandemia. 

Italiano radicado no Brasil, Contardo é hoje um dos mais influentes pensadores do Brasil. Algumas de suas ideias são publicadas semanalmente na Folha de São Paulo, onde mantém uma coluna. Ali, não poupa críticas à forma como tem sido conduzida a gestão da crise sanitária pelo governo brasileiro. A pandemia, aliás, tem sido assunto recorrente nos seus escritos mais recentes e temas de diversas entrevistas.

Vivendo em São Paulo, epicentro da Covid-19 no Brasil, ele se declara um pessimista “como todo freudiano”, mas nutre esperanças de que a pandemia cause pequenas e significativas transformações. “Espero um mundo em que a gente seja capaz de viver uma vida mais simples, espero um mundo mais solidário”, diz. 

No meio da sua própria quarentena, ele viu aflorar a solidariedade entre vizinhos do seu prédio, que passaram a dar atenção aos idosos confinados sozinhos em casa. Um lampejo de esperança para quem viu também crescerem os anseios de pacientes durante o isolamento social. A entrevista completa você confere a seguir.

Você já escreveu na sua coluna da Folha de S. Paulo que não param de lhe fazer esta pergunta, mas ela é inevitável neste momento: quais serão (ou já estão sendo) os efeitos da Covid-19 na saúde mental das pessoas? Já é possível detectar esses efeitos nos atendimentos aos seus pacientes?

Eu acho que é muito cedo para dizer realmente quais serão [os efeitos] porque têm consequências na relação de todos nós com os outros. Não estou falando de consequências especificamente patológicas, mas que vão produzir algum tipo de patologia. Isso talvez deixe marcas ou, pelo menos, vai levar um certo tempo para que a gente volte ao tipo de “confiança espontânea” no outro, com a qual parecíamos viver.

A gente sempre acha que é praticamente natural acreditar que o mundo nos quer bem. A gente pode chegar a dizer que isso é uma das funções essenciais de uma mãe, de certa forma, convencer o filho ou a filha de que ele ou ela é bem-vindo no mundo, ou seja, que o mundo é mais amistoso do que hostil. Essa crença - que é tão importante, afinal, é bem enraizada na maioria da gente - pode, efetivamente, sofrer um pouco, senão muito, por causa da pandemia. Isso é uma primeira observação de ordem muito geral.

Existe também uma tremenda negação do que está acontecendo. Isso é um fato que não é completamente inédito, mas existe uma maneira de negar que é surpreendente porque essa negação é muito forte. Não estou pensando só nas declarações do nosso presidente ou nas do presidente americano e que, certamente, prepararam a catástrofe que está sendo a gestão da Covid-19 nos Estados Unidos. Têm pessoas que vivem realmente isso na negação. Provavelmente, por pensarem que o mundo não seja necessariamente um lugar amistoso.

A negação é uma reação natural do ser humano independente das influências externas que ele tenha, de líderes políticos, por exemplo?

Sem dúvida essa reação existe. Como existe essa reação em caso de luto. A primeira coisa que você pensa quando uma pessoa querida acaba de se acidentar e de morrer é “não é verdade”.  Coincidentemente, são, em grande parte, as mesmas pessoas que negam a ideia de que seja necessário ter preocupações ecológicas na nossa terra, por exemplo. Negam que tenham queimado a Amazônia. Aí, contra esse tipo de negação é sempre um pouco desconcertante porque, no fundo, essa negação não é baseada em provas contrárias ou em pensamentos racionais. A necessidade de crer que não tem a pandemia ou então de construir uma teoria estapafúrdia qualquer do tipo “essa é uma invenção de um laboratório chinês porque queria comprar a metade do Brasil a preço reduzido”. Não têm argumentos contra teorias conspiratórias, não tem muito o que a gente possa dizer. Tem o que a gente possa, eventualmente, fazer num quadro terapêutico.

A outra coisa que é interessante é pensar nas patologias individuais nesse momento. É muito comovedor ver como a vida das pessoas, de alguma forma, realmente continua. Há pessoas que continuam trabalhando em serviços essenciais ou até menos que essenciais, mas, mesmo assim, continuam trabalhando porque precisam.

Tem outro registro de continuação da vida que é tocante que são as pessoas que lá no meio da quarentena, isolados em casa, decidem se separar. Não é por causa da quarentena, mas porque era uma situação que estava no ar e só que, de repente, se torna tudo extremamente complicado.

Outro problema, que acontece em quase a metade das famílias brasileiras, e que são famílias reconstituídas com filhos em guarda compartilhada, são os meninos e as meninas que transitam de uma casa para outra. O próprio trânsito de uma casa para outra não é ideal do ponto de vista do confinamento. Portanto, fica difícil acreditar que os outros estão realmente tomando as medidas necessárias para proteger a saúde da criança e, claro, da outra família para a qual a criança vai. Tudo isso é muito complicado. Existe uma complicação amorosa-afetiva muito grande. 

O posicionamento de alguns líderes mundiais sobre a Covid-19 argumentando que a doença só acometia idosos e, por isso, não era tão grave, mesmo depois de milhares de idosos terem ido a óbito, parece ter reforçado a ideia de que há perda de valor com o envelhecer e o passar dos anos tornam as pessoas descartáveis.  Isso tudo que estamos vivendo pode gerar ainda mais dificuldade de as pessoas vivenciarem o envelhecimento? Pode ser uma das consequências emocionais depois que tudo passar? 

Sim, sem dúvida. Eu posso falar enquanto idoso [risos]: não é muito agradável escutar um vídeo antigo do nosso ministro da saúde falando que na hora de decidir onde investir dinheiro, se a escolha for entre um adolescente doente e um idoso que vai morrer “logo”,  precisaria investir o dinheiro no adolescente. É muito bizarro. Por outro lado, é engraçado ter uma espécie de aposta maluca na ideia de que “o adolescente tem a vida pela frente”. A pergunta é: que vida? Porque na mesma ótica sobre a ideia de que “podemos dispensar os idosos porque, de qualquer jeito, eles estão em fim de linha”, alguém poderia responder que o problema dos jovens é que a gente não sabe no que darão. Tem uma segunda coisa que é um pouco apavorante: essa apologia abstrata à juventude, como se só ela fosse a promessa do futuro, e esse ódio, no fundo, pelos velhos porque eles configurariam um gasto social.

Isso tudo vai impactar no medo das pessoas de envelhecerem? Porque já existia muito o medo de envelhecer por perder a beleza e agora existe o medo de envelhecer por ter certeza de que vai ser uma coisa descartável...

Sem dúvida, mas como disse uma vez Fernanda Montenegro, com toda a inteligência que lhe é própria, “envelhecer tudo bem, podemos discutir se é bom ou se é ruim, mas a outra alternativa é péssima”, né? [risos]. Porque as alternativas são envelhecer ou morrer e a dimensão do envelhecimento está na vida de todos. Acho que já fomos uma cultura muito mais capaz de inviabilizar a beleza, muito mais talvez do que agora. Não sei se essa é a sua impressão também, mas isso, para mim, tem uma impressão de cidadão. Eu não escuto no meu consultório raiva de apologia da beleza. Ao contrário, eu acho que muitas coisas desse ponto de vista estão mudando.

Tenho duas pacientes que estão dizendo que, como entraram em quarentena, confinadas, e durante esse tempo elas não vão no cabelereiro, decidiram aproveitar a quarentena para parar de tingir o cabelo de vez, assumir o cabelo cinza ou branco. Eventualmente, quando a quarentena terminar vão cortar o cabelo de tal forma que só sobre a parte branca ou cinza. É tipo dizendo a todo mundo: “pronto, vamos parar de tingir o cabelo, pelo amor de Deus”. De fato, estaria na hora de marido, namorado, amantes que encontram no Tinder entenderem que o cabelo cinza pode ser perfeitamente sexy numa mulher e que não precisa, necessariamente, que ela cubra a cabeça de amoníaco a cada 15 dias.

Em momentos de crise, a solidariedade do povo brasileiro se aflora e ganha visibilidade em capas de jornais. Nesta pandemia, muito se fala em repensar a convivência com o outro cotidianamente. O senhor acredita que haverá uma mudança de valores na sociedade após a pandemia? Quais valores você imagina que passarão a fazer parte do dia a dia do brasileiro e quais sairão de cena ou pelo menos perderão força?

Eu acho que a gente tem que ser muito cuidadoso e fazer uma diferença entre o que a gente imagina que será e o que a gente espera que seja. São dois animais de espécies muito distintas. Então, se você quer saber o que eu espero, não tem dificuldade nenhuma. Espero um mundo em que a gente seja capaz de viver uma vida mais simples, espero um mundo mais solidário. Não preciso de um mundo igualitário, mas, mais solidário sim. Espero que a gente seja levado a reformular políticas sociais ou reformular para torná-las cada vez mais solidárias, justas. Agora isso é no campo da esperança. Eu posso falar horas, mas são minhas esperanças, não são interessantes.

E o que você acha que vai acontecer?

Eu acredito em algumas mudanças de hábitos se a quarentena durar um tempo relativamente importante. Imaginemos que dure quatro, cinco, seis meses, mesmo assim eu acho que, sim, vai produzir algumas mudanças de hábito. Eu decidi outro dia que vou mudar, por exemplo, a minha relação com os motoboys da cidade de São Paulo. Em São Paulo, a sensação é que a cidade não funcionaria sem os motoboys. Escritórios de advocacia não funcionam sem motoboys, nada funciona sem motoboys em São Paulo porque o trânsito é massacrante e imprevisível. Então, tradicionalmente, todas as pessoas que dirigem em São Paulo têm pavor dos motoboys, que, claro, vão como malucos em cima de suas motocicletas, até porque são pagos por entrega e não por tempo trabalhado. Nenhuma quarentena em São Paulo funcionaria sem os motoboys. Eles fazem parte dos serviços essenciais. A minha promessa é que nunca mais vou olhar com desconfiança ou agressividade para os motoboys que batem no meu retrovisor quando passam entre meu carro. Eu vou achar “tudo bem, não tem importância, eles realmente foram corajosos, bravos e essenciais nessa época”. É um exemplo.

Há solidariedade de outro tipo. O meu prédio, por exemplo, se mostrou solidário, as pessoas se preocupam. Não era só eu, todo mundo estava se preocupando com as pessoas idosas e sozinhas, se era necessário ir e levar alguma coisa, deixar na frente da porta... Existe um cuidado um pouco maior com que são os nossos vizinhos. Eu espero que isso se mantenha. Espero também que se mantenham hábitos de consumo um pouco mais razoáveis. Nós somos uma civilização um pouco estranha, como já disse outras vezes. Uma das civilizações em que ir para o shopping e ir às compras é considerado, em si, uma diversão. Acho que poderia realmente mudar. Tenho uma tremenda simpatia pelo ideário da vida simples, sobretudo, dinamarquês ou norueguês. Não sei mais dizer se é a esperança ou não, mas acho que a gente descobriu que, na verdade, uma grande parte do nosso consumo é realmente inútil.

Um dos relatos de quem trabalha com saúde mental é o aumento dos quadros de ansiedade, impulsionado principalmente pela questão do isolamento. Como esses profissionais podem trabalhar a ansiedade com os pacientes? Como passar segurança aos pacientes diante de tantas incertezas?

A situação de confinamento é perfeitamente ansiógena por conta própria, mas, em cima disso, para muitas pessoas, o confinamento repete de maneira mais aguda coisas que já fazem parte dos sintomas do sujeito. Vou dar um exemplo. Você há muito tempo quer se lançar nas redes sociais para encontrar uma transa, um namorado ou mais, se for o caso, ou muito menos, o que seja, mas não tem coragem de entrar no Tinder. Acha que “ah meu Deus, quem são esses caras?”. Claro, são iguais a você, mas você não pensa nisso. Aí, de repente, chega o confinamento. Tem duas reações possíveis: tem uma parte que vai se sentir completamente aliviada porque, de repente, não precisa mais entrar no Tinder porque, de qualquer jeito, não dá para encontrar ninguém, então pode ficar sem essa “obrigação” que ela mesma se dá. E tem uma outra parte que fica completamente péssima porque pensa: “Era uma minha impotência, eu não conseguia, mas eu sabia que eu queria e caramba! Agora eu realmente não posso mais”. Isso pode ser tremendamente ansiógeno. Um exemplo, apenas para dizer que, para algumas pessoas, algumas características do confinamento batem, e coincidem, e vêm a virar as impotências delas. Então, isso é poderosamente ansiógeno.

O que a gente pode fazer fora continuar o trabalho terapêutico? Instituir uma coisa que eu nunca fazia antes: a possibilidade para os pacientes que estão ansiosos de contatar por Whatsapp durante qualquer horário. Claro que eu não posso atendê-los em qualquer horário porque têm outros atendimentos, mas, imediatamente, eu respondo. É sempre uma troca de duas ou três palavras, mas isso tem o poder sedativo. Saber que tem alguém, potencialmente, sempre na escuta. Isso eu acho muito importante, inclusive, nas relações entre as pessoas que se institua essa possibilidade de poder dizer “tô mal para cacete” e de receberem retorno: “Sim, eu escutei, te ouvi, pense um pouco nisso...” E a coisa mais importante ainda é: “Volte a me dizer como está daqui a uma hora”. Isso é, talvez, uma palavra mágica, porque quer dizer: eu estou mesmo querendo saber, de fato.

Outra coisa que eu acho importante é que existe uma espécie de resistência das pessoas à medicação. Acho que, realmente, é o momento de abandonar esse tipo de reservas. Quando a quarentena terminar a gente vai fazer o necessário para retirar o ansiolítico, mas, nós temos um arsenal de medicamentoso que, se bem administrado, funciona. Então, eu realmente acho que se tem um momento em que a gente tem que usar esses remédios, certamente é esse. E usá-lo sem culpa. Com ansiedade e angústia a gente não ganha nada.

Esse procedimento também vale para pessoas com quadros de depressão? Uma das principais estratégias para tratar pacientes com depressão é o incentivo ao contato social e nesse quadro de isolamento social, qual seria a melhor medida pra diminuir esse quadro de ansiedade em quem já tem depressão?

Escuta, quem já é medicado continua se medicando, isso é óbvio. Não tem porque parar uma medicação antidepressiva. Todos os psiquiatras, psicólogos e psicanalistas trabalham com telemedicina nesse momento. Marcar uma consulta com o psiquiatra e decidir se algo na medicação deve ou pode ser corrigida. De novo, em grande parte, a coisa é resolvida pelo próprio fato de marcar uma consulta, descobrir que o psiquiatra está à disposição e é muito importante que um profissional seja capaz e disposto a manter um diálogo de resposta rápida, que não signifique multiplicar as consultas.

Só a presença, mesmo que virtual já ajuda o paciente...

Exatamente. Certamente é mais importante e necessária ainda do que podia ser fora do confinamento. Um fato importante do ponto de vista da saúde mental e que acaba sendo também ansiógeno é que é muito frequente que as pessoas, por exemplo, alcoólatras, voltem a beber. Isso está acontecendo. Pessoas que faziam uso lúdico, nada dramático de cannabis, por exemplo, chegaram a começar a fumar muito mais do que fumavam, com problemas sérios. Quando a gente exagera no uso da maconha, é muito fácil cair em verdadeiros delírios paranoicos, de perseguição, então, isso certamente torna a vida no confinamento não só complicada, mas perigosa.