null A reinvenção do Carnaval

Qui, 4 Fevereiro 2021 18:19

A reinvenção do Carnaval

Como dar um novo sentido ao espírito carnavalesco mesmo diante da pandemia? Depoimentos de quem inventou uma maneira para curtir a data em casa


Carnaval em meio à pandemia: sem aglomerações, é possível criar novas formas para aproveitar a data (Foto: Getty Images)
Carnaval em meio à pandemia: sem aglomerações, é possível criar novas formas para aproveitar a data (Foto: Getty Images)

Confete e serpentina no centro de um espelho trincado. Em 2021, o Carnaval não será igual aquele que passou. Nada de aglomerações, festas nas ruas e nos bares, viagens às praias ou sertões brincantes. Devido à pandemia da Covid-19, o evento mais popular e trepidante do nosso calendário festivo chega pedindo pausa, cuidado, recato. E depois de tanto forjar a personalidade brasileira e dizer sobre nossa identidade pelo mundo o que ele parece exigir de nós agora é imaginação para reinventá-lo alegre, apesar de tudo.

Um pouco de razão também cai bem. O mais novo decreto estadual contra a disseminação e agravamento da pandemia recomenda inclusive que as instituições de ensino funcionem normalmente entre os carnavalescos dias 15 e 17 de fevereiro. Também está suspenso o ponto facultativo em todas as esferas de Governo. E há ainda a proposição aos órgãos representativos competentes para a abertura do comércio, serviços e indústria no período. Trocando em miúdos: sem feriado prolongado, como é de praxe, a ordem é ficar em casa, aderir ao bloco do “eu sozinho” ou seguir as regras de biossegurança em encontros privês de frequência bem reduzida.

Com tanto “não pode” e “não deve” como ainda dizer sim ao Carnaval? Para Ricardo Bessa, professor do curso de Design de Moda da Universidade de Fortaleza, instituição ligada à Fundação Edson Queiroz, é preciso revirar ao avesso o espírito carnavalesco, encontrando justamente na sua essência a força criativa que o move por dentro. “Sobretudo no Brasil, o Carnaval não me parece ser um mero evento de massa, mas sim um estado de espírito que deveria nos guiar o ano todo justamente porque nos torna mais capazes de driblar os obstáculos e as frustrações cotidianas”, sublinha.

Para Ricardo, quando dizemos que “brincamos o Carnaval” isso não deveria soar como força de expressão. “Porque é preciso brincar com a vida assiduamente, como também fazer do corpo um brinquedo. Daí vem o prazer de encher-se de brilho, com o glitter e a purpurina, fazer a maquiagem, adotar um figurino extravagante até em dias aparentemente comuns, como, aliás, costumo fazer, sobretudo por trabalhar com moda, atuar como figurinista e dar aulas sobre história da indumentária”, sustenta o também ator, dramaturgo e escritor. 


 

Como docente, ele já é conhecido e festejado entre os discentes por suas camisas estampadas e florais, como também por compartilhar acessórios inusitados em atividades práticas ou performáticas, além de propor aulas temáticas de apelo lúdico. “Na minha turma, já criamos um dia em que todos e todas vestem rosa e não é incomum eu mesmo usar uma peruca ou uma maquiagem inusitada para chamar a atenção dos alunos para algum tema abordado nas disciplinas. E como também sou professor de História da Arte isso se torna ferramenta lúdica e criativa para aproximar a moda dos movimentos artísticos e processos criativos. Quer dizer, o Carnaval quando vivido como criação e movimento o ano todo, acaba incorporado à vida”, reflete o professor que esse ano já planeja propor aos seus alunos e alunas a confecção e uso de fantasias improvisadas nos dias de aula síncrona mominos.  

Tudo para não desistir de ver o Carnaval brotar de dentro para fora, dispensando maiores audiências e ajuntamentos. “Minha infância e até adolescência foram muito carnavalescas na região Norte, onde nasci. Minha mãe e meu pai eram do tipo que se fantasiavam, faziam festas de carnaval em casa e iam a bailes à fantasia em clubes. E eu sempre participei disso tudo com muito entusiasmo. Foi depois que me tornei professor que passei a usar o feriadão para viajar e conhecer outras culturas. De qualquer forma, para mim é sempre vibrante e vale manter o ritual. Por isso, mesmo sozinho, em um ambiente familiar restrito ou com poucos amigos em casa, sugiro acompanhar as lives carnavalescas, fazer uma supermaquiagem, improvisar fantasias, criar os próprios acessórios, fazer um penteado diferente e dançar na sala de casa nem que seja à frente do computador ou da TV”, diverte-se.

Com mestrado em Moda, Cultura e Arte (Senac-SP) e doutorado em curso pela USP, onde pesquisa trajes de quadrilhas juninas no Ceará, Ricardo integra o corpo docente da Unifor há 05 anos, sem contar que foi na mesma universidade o primeiro emprego no final da década de 1990, como coordenador de teatro. “Toda a minha trajetória de profissional das artes, incluindo aí concepção e direção de espetáculos teatrais, me convida a ficcionar e, assim, reinventar a vida. Não para fugir da realidade, falo sempre isso em sala de aula. Mas para criar diferentes formas de vivê-la. Vivo a docência da mesma forma: então, justo nesse período carnavalesco, a gente só aumenta nosso exercício de criatividade. E aí vale desde caras e bocas nas selfies e videoconferências até o uso de disfarces em performances surpresas ali nos bancos do campus. Tudo para quebrar um pouco a sisudez e tristeza do momento. Nós, professores, temos sido levado a encarar esse papel também: de terapeutas. E no meu caso, para animá-los, busco a alegria e o prazer, o mesmo combustível do Carnaval”, vibra o professor.

A folia por outro ângulo      

Instantâneos antimonotonia. É isso que o professor e fotógrafo Jari Vieira, dos cursos de Jornalismo e Publicidade da Universidade de Fortaleza, irá propor aos alunos e alunas de suas disciplinas voltadas à fotografia como exercício prático de documentação do período carnavalesco atípico de 2021, o ano em que cancelaram a folia e a mistura das gentes por conta da pandemia da Covid-19. “Quero fazer os alunos enxergarem através da fotografia que, embora não possamos festejar e se aglomerar nas ruas, há um momento histórico aí a ser registrado. E é essa geração que melhor poderá fazer esse registro para a posteridade, deixando esse documento visual cotidiano da pandemia. E nada mais inédito a ser registrado do que esse baile de máscaras às avessas que viveremos entre quatro paredes, junto à família. Eles têm que lembrar que outros carnavais de multidão virão, mas esse é único e pode ser visto com interesse e curiosidade justo por conta disso”, enfatiza.

Folião de ocasião, o professor que vê o Carnaval como documento de valor histórico e cultural já foi bom nisso: quando adolescente e estudante universitário curtiu com turmas de amigos as folias praieiras de Morro Branco, Aracati e Taíba. Mas depois de tornar-se professor, aos 22 anos, o que era agito passou a ensejar descanso e horas dedicadas a planejamento de aulas, além, é claro, de espontâneos e pontuais ensaios autorais em dias mominos. 

Acontece que para toda regra há uma exceção carnavalesca. “Sou de Juazeiro do Norte, mas tem um Carnaval fora de época, em Limoeiro do Norte, o Limofolia, que não perco. Todo janeiro, nos últimos dez anos, sempre fui para lá, não perdi nenhum, porque são amigos que promovem. E, em 2017, até foto com a cantora Cláudia Leitte, que foi atração nesse pré-Carnaval, eu fiz questão de ter. Esse ano não haverá Limofolia. Mas outros virão”, conforma-se Jari, certo de que a tarefa delegada aos alunos de fotografar um evento doméstico longe das aglomerações pode surtir um efeito positivo e emocionalmente compensatório, além de mudar ou diversificar o foco de visão sobre o tema Carnaval, a partir das imagens geradas.


 

O professor lembra: o Carnaval sempre fez parte das tradições e ritos familiares. “Acho que a pandemia teve o lado bom de nos fazer ficar mais em casa e fortalecer os laços familiares. E isso pode ser de alguma forma celebrado agora fazendo alguma brincadeira entre familiares mesmo. Festejar com os seus, tomando ali uma caipirinha, ouvindo boa música e fotografando ou até revendo fotografias de carnavais passados que estão nos álbuns de família, porque a fotografia tem essa dimensão lúdica e nos transporta para outros lugares e épocas. A imagem como gatilho de boas memórias pode sim trazer animação e sentido para esses dias de Carnaval mais íntimos”, pontua Jari.

E vai rolar a festa virtual

A família é da Bahia. Portanto, Carnaval está no DNA da professora Milena Auip, do Centro de Ciências da Comunicação e Gestão da Universidade de Fortaleza. “Desde criança as festas carnavalescas fazem parte da minha vida. Adoro e sempre encarei os grandes, como o de Salvador e o do Rio de Janeiro. Mas agora vamos ter que ficar sim com as lives carnavalescas. Carnaval pela internet. Não deixa de ser uma experiência nova e digo aos alunos e alunas que é bom começar a fazer a sua programação porque os artistas já estão se organizando para promover shows imperdíveis: o de Bel Marques, por exemplo, já foi anunciado e não vou perder”, garante a carnavalesca que não vai deixar de fantasiar a filha Sofia de 3 anos para “brincar” em casa.

Trabalhar em pleno Carnaval nunca esteve nos planos. Mas a professora que já coordenou o Curso de Eventos entende criticamente inclusive o momento econômico atual e quer fazer da medida de biossegurança algo proveitoso e leve. “Vou levar para sala de aula o debate sobre o impacto de não haver Carnaval na economia do país, como também na vida do brasileiro. Esse cancelamento com certeza vai gerar pesquisas e reflexões no âmbito acadêmico e será preciso dimensionar as perdas para tentarmos pensar juntos nas possíveis compensações futuras. Mas tudo isso pode e deve ser pensado com assertividade, a partir dos muitos recursos que hoje dispomos para empreender com criatividade e superar os tempos de crise”, opina. 

Números revelam: em Fortaleza, o ciclo carnavalesco de 2020 registrou um alcance expressivo. Só no ano passado, 12 polos movimentaram a Capital com a participação de 265 atrações, 37 agremiações e 56 blocos de rua apoiados por um edital de R$ 1,5 milhão viabilizado pelo poder público municipal. A pesquisa realizada pelo Observatório do Turismo revelou também que o gasto per capita do turista no Carnaval foi de R$ 2.588,95. “A formação de excelência vai fazer toda a diferença para uma virada econômica capaz de reaquecer o mais breve possível o ramo dos eventos, do qual faz parte o Carnaval. Portanto, os estudantes precisam estar cientes desse privilégio e desafio a um só tempo, entendendo que devemos nos unir agora é em torno do 'Bloco da Vacina Já', que esse é que vai levar à retomada econômica e gerar oportunidades, como também as muitas festas que virão”, encoraja.

Um Carnaval chamado desejo

Jung explica, junto com Freud. Para a estudante do 9º semestre de Psicologia da Universidade de Fortaleza, Ludimila Pinheiro, o cancelamento do Carnaval no Brasil e no mundo aumenta o trauma já gerado por todas as perdas reais e simbólicas vindas com a pandemia da Covid-19. “O período carnavalesco é justamente aquele em que tudo é permitido, em que nos liberamos um pouco das nossas couraças e podemos inclusive assumir outros papeis, nos transformando em outros personagens. Então é um momento de extravaso e de quebra na rotina muito saudável e importante para a saúde emocional”, reflete a estudante que se especializa na abordagem analítica Junguiana.


 

E como preencher o vazio? Para Ludmila, não deixando de se voltar e falar sobre ele. “É preciso entender que o que o Carnaval nos traz é da ordem do sensível, ele mexe com as emoções e provoca prazer. Portanto, precisamos encontrar outras fontes disso no momento em que não pode haver Carnaval ou outra aglomeração qualquer. Por isso têm surgido tantos grupos de escuta no âmbito do curso de Psicologia da Unifor nesse período da pandemia em que as pessoas estão se voltando mais para si e tendo que encontrar sentido no que fazem ou projetam. É tempo de reinvenção de si, o que gera dor e prazer ao mesmo tempo”, observa.

Ela mesma se viu desafiada a encarar os atendimentos psicológicos on line, algo que jamais teria imaginado fazer não fossem as contingências de uma pandemia. “Mais do que nunca é preciso criar alternativas e estratégias para continuar bem emocionalmente, buscando e fazendo o que se gosta. E esse Carnaval pode ser um bom momento de exercício para isso: reinventar o Carnaval de outra forma, sem a possibilidade de abraçar os amigos mais próximos mas com a possibilidade de chegar virtualmente aonde você não chegaria, por exemplo, inclusive conhecendo outros carnavais e outras pessoas, mesmo que a distância. Somos muito imediatistas e é preciso ampliar a ótica sobre os acontecimentos para descortinar novos desejos”, sublinha.

Um dentista vampiro

Não vai doer tanto ficar sem Carnaval para o estudante do curso de Odontologia da Unifor, Carlos Augusto de Oliveira. Quando adolescente, ele até era de mela-mela, de encher a casa de praia do Icaraí de amigos e fazer a festa com tudo o que tinha direito. Mas ao ingressar na universidade os gostos foram mudando e a própria rotina de estudos o fez mais caseiro. Hoje, está plenamente satisfeito e conformado com a ideia de curtir um Carnaval em casa aconchegado à família e à namorada, no máximo. Mas pelo menos rola uma fantasia? “Olha, nunca fui de me fantasiar, até nas festas que exigem fantasia vou vestido de dentista vampiro, já que serei o único com aquele pijamão e uma presa nos dentes. Mas me interesso por Cosplay, então posso um dia, quem sabe, me vestir de O Predador ”, ri-se.  

Para ele, a graça tem sido outra. “Nos últimos anos, o período carnavalesco pra mim foi para botar os trabalhos acadêmicos em dia e descansar. Nesse sentido, minha mãe é muito mais carnavalesca que eu. Com certeza ela vai preparar uma caipirinha pra nós e vamos ouvir boa música, já que ela adora marchinhas de Carnaval, samba e forró. Mas eu sou fã de heavy metal, então nossos carnavais tem que contemplar todas as gerações e por isso a playlist sempre foi e será diversificada. Iron Maiden e Scorpions com certeza, mas também Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Ivete Sangalo, Araketu e todos os baianos”, diverte-se, antecipando os muitos sons e fantasias que o Carnaval pode vestir, mesmo quando silenciado.