null Entrevista Nota 10: Aline Veras e a luta dos setores de saúde contra a violência à mulher

Sex, 12 Março 2021 21:10

Entrevista Nota 10: Aline Veras e a luta dos setores de saúde contra a violência à mulher

“É preciso trabalhar os profissionais para identificação dos casos de violência intrafamiliar. Capacitar não apenas para identificar, mas também assegurar informações sobre a rede de assistência”, destaca a pesquisadora.


Aline Veras é Doutora em Saúde Coletiva e docente da Universidade de Fortaleza. (Foto: Acervo Pessoal)
Aline Veras é Doutora em Saúde Coletiva e docente da Universidade de Fortaleza. (Foto: Acervo Pessoal)

Se os índices de violência contra a mulher há muito despertavam assombro, em 2020 eles encontraram um agravante: a pandemia. No primeiro semestre do ano passado, o Brasil registrou 648 feminicídios, quase 2% a mais que em 2019, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em julho, a ONU advertiu que, caso o mundo vivesse mais seis meses de restrições sanitárias, uma hipótese já convertida em realidade, 31 milhões de casos adicionais de violência sexista poderiam acontecer. 

Forçadas a conviver em isolamento social com abusadores, mulheres em situação de violência encontraram dificuldade para conseguir assistência via canais de socorro tradicionais. Para trazer mais informações sobre o papel da saúde coletiva nesse contexto, o Entrevista Nota 10 conversou com Aline Veras Morais Brilhante, docente do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva e do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz. 

Experiente em Ginecologia e Obstetrícia, Aline possui Especialização em Sexualidade Humana e em Psicoterapia Psicanalítica; Mestrado em Saúde Coletiva pela Unifor; Doutorado em Saúde Coletiva pela associação ampla entre Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal do Ceará e Universidade de Fortaleza; e Pós-doutorado em Sociologia pela Universidad Rey Juan Carlos, em Madrid. 

Anteriormente, a professora desenvolveu e publicou diversas pesquisas sobre a presença de diferentes violências na sociedade, em especial aquelas enfrentadas por mulheres.  

Leia a entrevista abaixo.

Entrevista Nota 10 - Neste momento de pandemia, tem-se reportado o aumento de casos de violência domiciliar. Como a área da saúde vem lidando com essa situação?

Aline Veras - Os números da violência intrafamiliar já eram altos, mas eles aumentaram ainda mais com a pandemia. E esse aumento, na verdade, foi bastante previsível. Existem diversos estudos que já apontam que períodos de crise, incluindo crises sanitárias, aumentam as violências interpessoais. Particularmente contra mulheres, contra crianças, contra idosos e contra pessoas com deficiência. Ou seja, aquelas pessoas mais vulneráveis dentro do ambiente intrafamiliar.

O período de epidemia de Ebola na África, por exemplo, coincidiu com um aumento absurdo dos casos tanto de violência intradomiciliar contra a mulher como de estupro e outras formas de violência sexual, que foram largamente documentados. Então, a OMS já tinha lançado o alerta logo no começo de 2020 de que todas as formas de violência intrafamiliar, incluindo feminicídios, iriam aumentar. Ela lançou alerta para que os países e os sistemas de saúde se planejassem para esse ponto. 

Infelizmente, nossos sistemas de saúde não se expandiram para receber esse aumento. Muito pelo contrário; houve uma redução da rede no momento do primeiro decreto de isolamento social rígido no ano passado. Depois, com a regularização, tivemos uma manutenção da rede. Não houve um aumento suficiente da rede de assistência. Isso é um grande problema, pois se trata de um grave problema de saúde pública, que merecia mais atenção. 

Entrevista Nota 10 - E o que que deveria ter sido feito? 

Aline Veras - Em 2020, saiu uma publicação do BMC Public Health sugerindo medidas de contenção ou de controle desse aumento da violência. Essas sugestões foram feitas com base na literatura existente de casos semelhantes que já tinham acontecido em pandemias anteriores, mesmo que nunca tenhamos vivido uma pandemia com a dimensão da Covid-19 em tempos recentes.

O primeiro ponto é assegurar a questão econômica, porque a insegurança financeira é um dos grandes pontos atrelados ao aumento da violência intrafamiliar. Com a necessidade do isolamento, é importante prover, disponibilizar e estimular outras formas de socialização, porque o isolamento favorece o potencial agressor, e ele tira da da vítima a sua rede de apoio, a sua rede de proteção. Então, sendo mantido o isolamento social, é importantíssimo que esse isolamento venha acompanhado de um estímulo a outras formas de socialização.

Também é necessária a ampliação da oferta de assistência psicológica a distância. Quando há esse isolamento prolongado, o aumento da oferta desse tipo de serviço é bom de uma maneira geral, porque há um sofrimento psíquico atrelado ao isolamento prolongado, que atinge principalmente pessoas em contexto de violência. 

Recomenda-se não só manter integralmente o serviço de apoio às pessoas em situação de violência, mas também criar estratégias que facilitem a denúncia. Aqui no Brasil, o que foi mantido foi o disque 180, o disque 100 e o 190, contato da Polícia Civil. A denúncia por telefone, entretanto, é complicada, porque a vítima está em casa com o agressor. Então, existe uma dificuldade do uso do telefone. Seria importante, a criação e a ampla divulgação de outras formas de pedido de ajuda e outras formas de denúncia, bem como uma ampla campanha publicitária para reforçar essas estratégias. 

Em relação à saúde, é preciso trabalhar os profissionais para identificação dos casos de violência intrafamiliar. Capacitar não apenas para identificar, mas também assegurar informações sobre a rede de assistência. Esse era um ponto crucial que deveria ter sido mais reforçado. Infelizmente, não é um contexto fácil pela crise sanitária de Covid-19, pela amplitude e pelo ineditismo dela. Então, de fato, os diversos sistemas de saúde não conseguiram e acabaram não priorizando essa questão, infelizmente.

Entrevista Nota 10 - Em 2016, a senhora publicou a obra “A Violência Contra a Mulher e o Forró Nosso de Cada Dia”, fruto de seus estudos sobre etnomusicologia no campo da Saúde Coletiva. Poderia nos contar um pouco sobre esse livro?

Aline Veras - A violência contra a mulher por parceiro íntimo, a violência intrafamiliar contra a mulher e a violência sexual contra a mulher não podem ser compreendidas como fenômenos da história, fenômenos destituídos de subjetividade. Também é uma falácia e um equívoco muito grande comparar esse tipo de violência com a violência urbana. Os mecanismos de sustentação são outros, os mecanismos de estruturação são outros. E, tampouco, podemos dividir a sociedade entre agressoras e vítimas. É preciso realmente refletir como esses processos culturais perpassam a todos nós, de modo que algumas violências, oras são toleradas, oras passam a ser condenadas. 

Os artefatos culturais têm uma importância fundamental para que sejam determinados quais são aquelas violências “socialmente normatizadas” e quais não são. Existem diversas violências que, por mais que sejam reconhecidas como crime, têm uma certa chancela social. A violência intrafamiliar contra mulheres e crianças é um desses tipos de violência. 

Nesse ponto, os discursos das diferentes tecnologias sociais e culturais são muito importantes para a gente entender como se processa a formação das identidades culturais, como se processam performatividade de gênero e como essas construções vão fomentar uma estrutura social que perpetua a naturalização dessa violência intrafamiliar e da violência contra a mulher, de uma maneira geral. Percebe-se que a música opera como uma pontuação cultural de grande influência na construção das identidades, especialmente quando a gente pega um estilo musical que vai não apenas reproduzir, mas refletir as normas sociais vigentes.

O Brasil é o quinto país do mundo em números de feminicídios. A pesquisa que pretendíamos fazer se situava na região Nordeste, que é uma região com altos números de feminicídio. O Ceará, de forma isolada, tem números maiores do que o restante do país. Ao pegarmos um artefato cultural típico da nossa região, escolhemos estudar o forró. 

Um ponto importante também da escolha do forró é que ele permitia um estudo histórico social. Analisando o forró em suas diversas etapas, nós poderíamos compreender não apenas como esses artefatos refletem naturalização da violência contra a mulher, particularmente da violência por parceiro íntimo e da violência sexual, mas também como ajudaram a estruturar um determinado tipo de comportamento, de estrutura social. Por isso optamos por esse recorte, iniciando na década de 1940, quando começam as primeiras músicas letradas de forró.

Para esse livro, a gente se baseou nos princípios da etnomusicologia. Realizamos pesquisas em algumas áreas de Fortaleza com ampla incidência de violência contra a mulher, e trabalhamos através das músicas com adolescentes. Tentamos entender como se constrói essa subjetividade que naturaliza a violência, mas ao mesmo tempo exercendo um trabalho no sentido de remodelar essa percepção, contribuindo para que esses adolescentes entendessem essa questão sob uma outra perspectiva. 

Entrevista Nota 10 - Como a violência contra a mulher impacta o sistema de saúde? Essas mulheres vítimas de violência são devidamente acolhidas pelos sistemas de justiça e de saúde?

Aline Veras - A violência contra a mulher impacta o sistema de saúde de diversas maneiras. Além dos números absurdos, temos as morbidades associadas; a violência por parceiro íntimo, por exemplo, é uma violência crônica. A longo prazo, ela causa prejuízos físicos e adoecimentos psíquicos. Mulheres nessa situação têm duas vezes mais chances de desenvolver transtorno de ansiedade e três vezes mais chances de desenvolver depressão e outros transtornos mentais comuns. Isso torna a violência contra a mulher um grave problema de saúde pública.

Além disso, quando a violência se dá, ela não é só física. Temos também a violência moral, a violência psicológica e a violência patrimonial. Esse abuso crônico pode resultar em comportamentos compulsivos, obsessivos e autodestrutivos, como vício em álcool e outras drogas, automutilação, alterações de hábitos alimentares, transtornos como anorexia e bulimia, e até suicídio. De acordo com a Sociedade Americana de Psiquiatria (APS), 20% das mulheres sobreviventes de violência por parceiro íntimo vão apresentar algum transtorno psiquiátrico. Não é pouca coisa.

Temos que lembrar que, em alguns casos, a violência não vai adoecer só a mulher, mas todo o contexto familiar, incluindo crianças que por ventura nasçam dentro dessa relação violenta. Existe o risco dessas crianças se tornarem vítimas da violência, ou cresçam como pessoas que não apenas naturalizam, mas perpetuam a violência em seus próprios relacionamentos. 

Entrevista Nota 10 - O feminicídio geralmente é o resultado de um ciclo crescente de violência. Como avalia o apoio psicossocial que a rede de saúde presta às mulheres vítimas de violência?

Aline Veras - A Casa da Mulher Brasileira foi uma grande conquista para a assistência das mulheres em situação de violência intrafamiliar. Ela não é apenas um equipamento de saúde, mas um equipamento social que atua como uma importante rede de proteção e atendimento a essas mulheres vítimas de violência. O equipamento foi construído pelo Governo Federal e é gerido pelo Governo do Estado, e pela Secretaria de Proteção Social, Justiça e Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos. 

Essa casa congrega uma série de serviços: ela abriga delegacia de defesa da mulher, juizado de violência doméstica, Ministério Público, defensoria, assistência psicossocial, etc. Quando uma vítima chega, ela é acolhida e vai sendo encaminhada pros diversos órgãos e serviços disponíveis. É um órgão de suma importância e a sua estruturação é fundamental para melhoria da assistência da mulher em situação de violência.

Contudo, [a Casa da Mulher Brasileira] é insuficiente, no sentido de que não dá conta da demanda. A demanda é muito alta. Seria necessária uma expansão no interior do Estado. As mulheres do interior precisam de um maior acolhimento e de um maior suporte. Essas mulheres não têm esse mesmo acolhimento que elas teriam na capital e, mesmo aqui, faltam recursos. A Casa da Mulher Brasileira faz aquilo que ela consegue fazer, mas faltam recursos. Além disso, por existir uma violência culturalmente sustentada, se não trabalharmos seu enfrentamento desde a formação das pessoas, das crianças e dos adolescentes, a gente não vai conseguir reduzir esses números.

Temos uma rede de proteção psicossocial que hoje em dia é bem melhor do que já foi, mas está muito longe de ser o ideal. Falta muito investimento, tanto no incremento desses equipamentos, como na sua melhoria e expansão, e também em medidas mais eficazes de prevenção desse tipo de violência.

Entrevista Nota 10 - Como os cursos da Unifor preparam o profissional para lidar com situações de violência?

Aline Veras - Como uma Universidade responsável, a Unifor tem grande senso do seu papel social, e o assunto da violência é muito abordado nos cursos de saúde. No curso de Medicina, por exemplo, ele é abordado não apenas em conferências, e sim amplamente discutido e trabalhado em diversos momentos, de forma longitudinal. 

A identificação da violência por parceiro íntimo e dos diversos tipos de violência intrafamiliar, incluindo não apenas a violência contra a mulher, mas a violência contra a criança, a violência contra a pessoa idosa, a violência contra a pessoa com deficiência, entre outras, é trabalhada de diferentes formas no currículo acadêmico. 

Isso é feito de modo a não apenas sensibilizar o nosso aluno, futuro profissional de saúde, a entender seu papel social nesse enfrentamento, mas também fornecer informações necessárias para que ele consiga prestar uma assistência adequada. Afinal de contas, aquele que é profissional da saúde não deve apenas tratar de doenças; ele precisa estar apto para identificar e saber conduzir os diversos problemas que afetam a saúde, não só aqueles classificados como patologias.