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Seg, 6 Dezembro 2021 10:19

Entrevista Nota 10: Rafael Leite Paulo e o uso da tecnologia para aperfeiçoar o Judiciário

O juiz federal é responsável pelas iniciativas de Inteligência Artificial no Conselho Nacional de Justiça 


O juiz auxiliar da presidência do CNJ considera-se entusiasta da tecnologia para contribuir com respostas mais rápidas e mais efetivas do Judiciário à população (Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ)
O juiz auxiliar da presidência do CNJ considera-se entusiasta da tecnologia para contribuir com respostas mais rápidas e mais efetivas do Judiciário à população (Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ)

Como o Judiciário brasileiro pode se tornar ao mesmo tempo mais acessível e mais ágil? O juiz federal Rafael Leite Paulo, que atua na implementação de ações de inteligência artificial no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), considera que a resposta necessariamente passa pelo uso da tecnologia. Para ele, o uso da inteligência artificial pode agilizar e aperfeiçoar processos e beneficiar a população que busca o sistema de Justiça. A Universidade de Fortaleza, por meio da Vice-reitoria de Pesquisa, tornou-se uma parceira fundamental nesse desafio.

Com a participação na classificação de processos, uma iniciativa que integra o Programa Justiça 4.0, a Unifor vai contribuir no desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial que classifiquem de forma automatizada processos judiciais nos sistemas eletrônicos, simplificando e reduzindo custos do Judiciário. “Esse objeto de classificação dos processos implica nessa nova dinâmica em que aquelas tarefas repetitivas e exaustivas que eram atribuídas a seres humanos passam a ser desempenhadas por sistemas tecnológicos e automatizados. E a classificação de processos é uma das primeiras tarefas que as boas unidades judiciais, os tribunais eficientes fazem”,  explica o juiz.  Segundo dados do relatório Judiciário em Números 2021, a quantidade de processos pendentes em dezembro de 2020 no Brasil era 75,4 milhões, o que representou queda de 2,7% ou 2,1 milhões de processos a menos em relação a 2019. 

“Em uma dinâmica nova dentro da sociedade, o Poder Judiciário tem que rever o seu papel, ajustar a sua prestação de serviço público e atender da melhor forma a sociedade. É esse o objetivo do programa. Há várias implementações, mas com essa finalidade existe a preocupação de se voltar para a população da melhor forma e prestando o melhor serviço possível”, explica o juiz auxiliar da presidência do CNJ, mestre em Direito pela Harvard Law School.

Com exclusividade para o Entrevista Nota 10, Rafael Leite Paulo, que é Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela UFPB, falou sobre as expectativas em relação ao uso da Inteligência Artificial no Judiciário. Ele foi premiado na categoria Juiz Individual no V Prêmio Conciliar é Legal do CNJ e recebeu premiação no concurso Robotização e o Poder Judiciário promovido pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus), por uma iniciativa desenvolvida na 5ª Vara Federal do Amazonas.  

Entrevista Nota 10 - Como o cidadão brasileiro pode ser beneficiado pelo programa Justiça 4.0 e por medidas como a classificação processual da qual a Unifor vai participar?

Rafael Leite Paulo - O Programa de Justiça 4.0 tem o objetivo de levar o Judiciário para o estado da arte do desenvolvimento tecnológico e do funcionamento das instituições, tanto públicas como privadas. O 4.0 especificamente vem da 4ª revolução industrial e tem sido objeto de tema de estudo e de discussão.  A primeira vez que foi proposto foi no Fórum Econômico Mundial. Implica em uma mudança em como os sistemas sociais, as sociedades funcionam ou como são produzidos produtos e serviços nesse novo contexto tecnológico que a gente vive. 

Em uma dinâmica nova dentro da sociedade, o Poder Judiciário tem que rever o seu papel, ajustar a sua prestação de serviço público e atender da melhor forma a sociedade. É esse o objetivo do programa. Há várias implementações, mas com essa finalidade existe a preocupação de se voltar para a população da melhor forma e prestando o melhor serviço possível. 

Dentro desse contexto, o acordo que está sendo celebrado com a Universidade de Fortaleza (Unifor), intermediado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), abre uma frente de um desses aspectos tecnológicos, dessa quarta revolução industrial, que é justamente o uso intensivo da tecnologia, em especial dessas novas modalidades como a inteligência artificial. 

Esse objeto de classificação dos processos implica nessa nova dinâmica em que aquelas tarefas repetitivas e exaustivas que eram atribuídas a seres humanos passam a ser desempenhadas por sistemas tecnológicos e automatizados. E a classificação de processos é uma das primeiras tarefas que as boas unidades judiciais, os tribunais eficientes fazem. Eles focam em fazer uma boa triagem, uma boa classificação das demandas para nós termos um tratamento uniforme aos processos que são similares e conseguirmos atribuir as mesmas decisões a processos que têm conteúdo idêntico.

Isso traz uma uniformidade no serviço público que é prestado com uma maior presteza, porque a velocidade com qual o algoritmo consegue passar pela leitura de um processo é muito mais rápida do que o ser humano. Ele nunca se cansa e ele sempre traz o resultado. E aí esses modelos têm justamente o objetivo de dar consistência e trazer a eficiência, e viabilizar que o judiciário entregue o mais rápido possível, com a maior consistência aquilo que é a sua atividade peculiar: resultados e a solução de conflitos. 

Entrevista Nota 10 - Como o Programa Justiça 4.0 traz benefícios para o Judiciário e também para o âmbito acadêmico? 

Rafael Leite Paulo -  O Judiciário sempre tentou estar o mais aberto possível para a academia, tanto que uma das poucas funções que o juiz pode de fato exercer além da magistratura é atuar como professor. As portas do Judiciário sempre estiveram abertas, tanto para estudos, para ser o objeto de estudo, para oferecer material de estudo, quanto para etapa de formação das mais diversas áreas, em especial o Direito, para a formação das novas levas de graduandos e pós-graduandos, recebendo em estágios e em esquemas de bolsa, inserindo áreas de conhecimento que tocam a atividade jurisdicional, como Tecnologia, Contabilidade, Administração, além do Direito, com papel destacado, para que a gente mantivesse sempre esse ciclo virtuoso que você tem na interação das atividades finais, aplicações do conhecimento conhecimento e tecnológico e com a parte que faz a formação científica e tecnológica da força de trabalho quanto faz com que esse conhecimento avance trazendo as inovações para o Judiciário.

Nessa nova leva de avanço, nós abrimos e tem uma peculiaridade. Quando a gente fala de inteligência artificial, há duas frentes avançando e empurrando cada vez mais pensamentos e a evolução dessa área de conhecimento, mas há uma necessidade que é um tanto quanto atípica. Para você ter uma boa evolução desse ramo do conhecimento, do uso da inteligência artificial, há uma necessidade de se ter acesso a dados massivos. Esse dado massivo está fora da academia. Então, a interação entre o Judiciário e a academia possibilita que a academia forme bem novos profissionais, novos graduandos, novos professores na área de inteligência artificial dando acesso à massa de dados. Isso vai viabilizar esse teste de novas hipóteses e aplicação do que há de mais novo na parte da ciência, da computação, na parte do estudo da inteligência artificial, no aprendizado de máquina. Isso se reverte em benefício para o poder Judiciário e para os jurisdicionados, porque a gente tem esses sistemas fazendo uma análise muito mais rápida, mais efetiva e consistente. 

Isso acaba gerando um ciclo virtuoso, em que a gente viabiliza o acesso de dados e a formação dessa nova força de trabalho, que é muito demandada e que precisa desse dado massivo para ter sua formação de fato completa e com a profundidade necessária para vencer os desafios que tem pela frente para quem trabalha com esse tipo de tecnologia.

Entrevista Nota 10 - Na sua opinião, como a população vê o Judiciário? Uma pesquisa recente da FGV que aponta o índice de confiança na Justiça brasileira  apresentou que 40% da população brasileira têm confiança no Judiciário (o  resultado divulgado em 2021 é o melhor já obtido no relatório  ICJ Brasil, que é feito desde 2009). 

Rafael Leite Paulo - Eu acho que ainda não estamos com uma imagem suficientemente positiva. A gente tem um volume muito grande de ações judiciais. Hoje há mais de 70 milhões de ações tramitando. Há uma expectativa muito grande na sociedade de que a gente consiga responder esses problemas que são apresentados ao Judiciário. Como parte disso, o esforço que o Judiciário vem fazendo nos últimos anos é o uso intensivo de tecnologia para melhorar esse produto. Então a gente tem facilitado ao máximo o acesso e tem tentado acelerar o tempo de resposta do Judiciário porque a expectativa é muito grande de que a gente responda bem e rápido. Isso com certeza é reflexo da tecnologia. Desde que foi lançado o relatório Justiça em Números pelo Conselho Nacional de Justiça, a gente viu os números alcançarem mais de 100 milhões de processos e nos últimos anos vem se reduzindo sistematicamente. Então, efetivamente, a gente já tem um Judiciário que produz muito. Para a gente produzir mais e mais rápido a gente precisa dessa dinâmica com as universidades e com o uso intensivo de tecnologia para melhorar o nosso tempo de resposta e atender às demandas da sociedade o quanto antes. A expectativa é justa de resolver seus problemas e o Judiciário se esforça ao máximo para responder no tempo necessário para resolvê-los bem.

Entrevista Nota 10 - O profissional de Direito que está saindo das universidades tem refletido a visão de que o acesso à justiça é um dos pilares da democracia e de que isso que precisa ser buscado coletivamente como sociedade? 

Rafael Leite Paulo - Acho que as universidades como um todo passam por esse desafio. Essa revolução industrial 4.0 vem com um traço de mudança social que é transversal e toca quase todos os pontos. Não só no sistema de produção, mas passa pelo funcionamento das instituições mais básicas, desde os relacionamentos mais íntimos, passando pela família, pela educação, pelo ambiente de trabalho e pelas instituições.

Está todo mundo mudando, está todo mundo revendo o seu papel e as próprias dinâmicas que têm. Então, dentro do poder Judiciário, a gente vem repensando a nossa relação com a tecnologia. Isso foi acelerado pelo contexto da pandemia. Algumas coisas que eram difíceis de se pensar começaram a ser facilmente aceitáveis: como realizar uma audiência, mesmo no caso mais grave, de forma remota. Isso passou a ser uma imposição no contexto social, pandêmico, específico, mas é um reflexo da tecnologia. A gente fez isso hoje porque é possível. Na hora que passa a ser possível, passa a ser pedido, exigido. 

Nessa dinâmica, a gente precisa começar a redefinir como é que é a presença do Judiciário nessa nova realidade, em que a própria sociedade passa a ter uma existência não só física e presencial, mas com muitos aspectos delas que estão justamente nesse ambiente virtual:  a vida, as transações, os contratos, as desavenças, as ofensas acontecem no âmbito virtual. Então o Judiciário mesmo começa a mudar e a estar presente nesse aspecto da vida das pessoas porque é sua função estar onde as pessoas estão.

A academia passa obviamente também pelo mesmo fenômeno, tem que começar a trabalhar com as aulas semipresenciais e repensar o seu papel nesse novo contexto, que precisa estar presente também onde os seus alunos estão e levando conhecimento. Há uma mudança que vem tocando nos mais diversos aspectos da vida em sociedade, os institutos, as instituições, os relacionamentos começam a se modificar e a gente precisa adotar novas metodologias. E tem um aspecto que é inerente a esse contexto: a velocidade de mudança e de inovação tecnológica é muito intensa. Isso afeta o Judiciário. A gente está hoje absorvendo tecnologia e aplicando-a numa velocidade que a gente nunca antes teve.

Então o tempo que o Judiciário teve pra começar a utilizar computadores ao invés de máquinas de datilografar se estendeu por décadas, para ser amplo e irrestrito. O próprio computador, para ser utilizado de forma ampla e irrestrita, levou mais de uma década. Então hoje a gente está começando a inserir as novas tecnologias numa velocidade nunca vista. 

Nesse aspecto, a própria academia tem que começar a rever a estrutura de formação. A graduação e a pós-graduação precisam começar a ter que se voltar para capacitar pessoas que têm essa plasticidade, essa capacidade de identificar o que há de novo e viabilizar uma aceleração tanto na sua absorção, capacitação naquela área, quanto na na rapidez de aplicar e utilizar na solução dos problemas que lhe são apresentados. 

Entrevista Nota 10 - Como avalia o papel do Judiciário tanto no uso da inteligência artificial como na atuação relacionada ao arcabouço de leis para essa área do conhecimento, para que os aspectos positivos do uso dessa tecnologia sejam predominantes?

Rafael Leite Paulo - Inclusive no Conselho Nacional de Justiça já tem uma regulamentação voltada aos aspectos éticos (do uso da inteligência artificial). Há a preocupação com vieses na aplicação da inteligência artificial para que a gente tenha tanto equipes que tenham diversidade e uma amplitude da própria compreensão de si quanto visões distintas da sociedade para que tenhamos de fato modelos que ajudem a aprimorar os procedimentos e não a perpetuar eventuais falhas que a gente tem historicamente. Nesse aspecto, o Judiciário já está tomando as cautelas do ponto de vista regulamentar, já traz um arcabouço normativo que viabiliza justamente essa preocupação com a qualidade dos produtos de inteligência artificial. Com essa preocupação, a gente já viabiliza que os modelos têm parâmetros muito claros de avaliação da sua qualidade. 

Eu, particularmente, me classificaria como um entusiasta. Acho que, quando a gente se depara com uma falha ou com uma má utilização do algoritmo, a gente está encontrando na verdade não um problema da inteligência artificial em si. A gente está, por meio da aplicação da tecnologia, identificando uma oportunidade de reavaliar os problemas sistêmicos que a gente sempre teve e que permaneceram ocultos na massa de dados. 

Os modelos de inteligência artificial que a gente produz hoje, como o estado da arte mundo afora, não só dentro do poder Judiciário, são modelos cujo treinamento é feito em cima de dados massivos. É olhando os exemplos e as suas repetições ao longo do tempo que o modelo de inteligência artificial é treinado e depois volta a aplicar e dar indicações de resultado. 

Por que digo que isso é uma oportunidade de rever problemas históricos e sistêmicos? Ele está treinando e repetindo o que ele viu. O que ele mostra não é propriamente uma falha. A gente regulamenta para evitar que isso efetivamente repercuta um defeito histórico. É a tecnologia mostrando de forma evidente que: “Olha, tá vendo isso aqui? Há um viés no seu procedimento que você fazia de conta que não existia, mas que o modelo está replicando”.

Tem um exemplo clássico que é feito sempre de referência nessa preocupação, que vários estudiosos nessa área apontam. No exemplo, foi avaliado o sistema de análise de condicionais dos Estados Unidos, chamado Compas (um sistema de inteligência artificial que buscava prever a chance de reincidência no cometimento de crimes). Ele tinha um tratamento irregular de certas etnias no contexto dos presos americanos. Sempre beneficiava quem era branco e prejudicava quem se definia negro ou latino de forma mais intensa. A quantidade de falsos positivos e de indicações equivocadas eram muito maiores no sentido de prejudicar determinadas etnias. Isso daí é uma falha tecnológica? O que se indica é justamente que a implementação tecnológica deixou muito evidente uma coisa que a gente já pensava sobre a sociedade: “Olha, talvez essa seja uma sociedade que não é muito justa, que não seja pautada por determinados procedimentos e visões que dão pesos indevidos para características raciais”. Com isso, você passa a ter uma oportunidade para rever o procedimento e tentar equilibrar. Então sou um entusiasta no sentido de que a inteligência artificial começa a dar essa oportunidade de a gente fazer uma autocrítica. E é uma autocrítica valiosa porque a gente vai apontar a crítica não para uma pessoa ou para um sistema. O racista ou quem está com uma falha não é fulano de tal ou o órgão tal. Passa a ser uma análise crítica do funcionamento equilibrado de uma nova tecnologia. É realmente uma oportunidade para a gente aprimorar procedimentos e fazer avançar. A gente já tem um arcabouço regulamentar muito bem estruturado. Ele já permite esse espaço para a crítica. A gente está precisando realmente reforçar o número de pessoas que criam os modelos, olham uma massa de dados e tem uma capacidade de corrigir e aprimorar a tecnologia. Nesse aspecto, a Unifor está realmente entrando com a gente e trazendo a academia para dentro do poder Judiciário, tendo acesso à massa de dados e viabilizando que a gente treine muito mais pessoas com esse perfil.