Como o celular prejudica a atenção ao trânsito

Um motorista que provocou um acidente de trânsito por ter se distraído usando celular dificilmente vai admitir em público que fazia uso do aparelho no momento da ocorrência. É que, no Brasil, embora não existam estatísticas consolidadas sobre essa prática como fator de risco ao volante, dirigir segurando ou manuseando celular é infração gravíssima.

A legislação nacional, fortalecida em 2016, quando se tornou mais específica para o uso do celular ao volante, atende a uma recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS).

O órgão compreende que, assim como dirigir sob efeito de álcool, conduzir veículo digitando mensagens ou falando ao celular compromete excessivamente a concentração do motorista — independentemente da utilização do viva-voz ou da conexão ao dispositivo por Bluetooth.

Para Dirceu Rodrigues Alves, médico e diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), a distração começa ao toque do telefone. “Vem o efeito surpresa. Você já fica ansioso por buscar o celular. Isso leva três a quatro segundos. Se você estiver a 100 km/h, terá percorrido 80 a 120 metros ‘sem visão’. Aí acontece o que chamamos de desconexão veicular. Você passa a ficar no piloto automático”.

Tão sério é o comprometimento cognitivo que, segundo Renato Campestrini, gerente técnico do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), estudos feitos nos Estados Unidos (EUA) e em alguns países europeus constataram que equivale a dirigir embriagado.

“Nos EUA, por exemplo, se pensa em rastrear ligações de condutores que venham a se envolver em acidentes fatais”, continuou o pesquisador. Ele lamentou, porém, que o Brasil, apesar de prever infração gravíssima em lei, não tenha informações consistentes sobre o assunto. “Não possuímos modelo de boletim de ocorrências nacional com dados mínimos”.

No ano passado, 16.490 multas foram aplicadas em Fortaleza pela combinação entre direção e uso de celular. O quantitativo é 7% menor que o registrado em 2016 — 17.656 infrações. Para o superintendente da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC), Arcelino Lima, a redução se deveu, principalmente, ao videomonitoramento, que, conforme analisou, teve “esse poder” de fazer a população reavaliar seu comportamento no trânsito. “As pessoas passaram a sentir que aquele uso rápido, para mandar mensagem, pode ser identificado”.

Já o uso menos ativo do aparelho, pelo viva-voz ou pela conexão via Bluetooth, é mais difícil de detectar. Entretanto, igualmente arriscado, não importa o quanto o condutor argumente ser capaz de equilibrar a situação. “A atenção fica dividida entre a direção e o assunto que está sendo tratado ao celular”, esclarece Wagner de Paiva Queiroz, especialista em Psicologia Clínica e de Trânsito.

Segundo o profissional, o conteúdo da mensagem também tem peso. Quanto mais a pessoa estiver envolvida emocionalmente na conversa, mais dispersa vai ficar. “Se meu chefe está me repreendendo, piora em tudo minha função motora, cognitiva”, exemplificou o médico Dirceu Rodrigues, da Abramet.

Dirceu pondera ainda que “veículo não é para ser tecnologia de ponta. É para mobilidade, deslocamento. Brigamos com as montadoras por causa disso. Entrou no automóvel, desliga o celular. Tudo o que for telefonema, mensagem, vai ficar registrado”.

Arcelino, por outro lado, acredita que é possível chegar a um consenso com o avanço tecnológico. “A indústria automobilística precisa entender como a legislação vai avançar. Ou avança no sentido de banir ou de tornar mais interativo. Com a tecnologia atual, ainda tem muito risco. Vai continuar no radar da fiscalização de trânsito”.

 

Dirigir falando ao celular é diferente de conversar dentro do veículo

 

 

Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) considere distração o motorista conversar com outros passageiros dentro do veículo, especialistas ouvidos pelo O POVO argumentam que a prática não é tão perigosa quanto dirigir falando ou digitando no celular.

Para Dirceu Rodrigues Alves, médico especialista da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), a principal diferença entre conversar ao celular — por voz ou mensagem — e conversar com alguém dentro do veículo é que, no primeiro caso, se exige uma resposta quase que imediata do condutor. “Já no carro você leva segundos, minutos, para raciocinar e responder”, argumenta.

Já Renato Campestrini, do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), acredita que a segunda pessoa acaba sendo responsável, também, por atentar para o trânsito e para o que está ao redor. “Ao conversar com outra pessoa no interior do veículo, em caso de desatenção de uma ao que ocorre à frente, a outra pode estar atenta, o que diminui o risco”, explica.

Ouvir música, tanto para os dois profissionais como para o especialista em Psicologia Clínica e de Trânsito Wagner de Paiva Queiroz, também não é prejudicial. “A música tem efeito tranquilizador. No volume adequado, ajuda. Deixa a pessoa mais concentrada”, afirmou. No entanto, a OMS aponta que o risco ao dirigir, nesse caso, está no momento em que se retira a mão do volante para sintonizar a rádio ou mesmo para buscar a faixa de sua preferência.

 

Victor Pavarino: Dificuldade em fiscalizar e punir

 

Bate-pronto com Victor Pavarino, consultor de segurança no trânsito da Organização Pan-Americana da Saúde/OMS no Brasil.

O POVO: Por que não há, tanto no Brasil como na maioria dos outros países, uma coleta consistente de dados sobre o celular como causa de acidentes de trânsito?

Victor Pavarino - Fatores de risco e proteção tradicionais como beber e dirigir, velocidade, mecanismos de retenção – a exemplo de cintos, cadeirinhas – e capacetes para motociclistas, dispõem de um conjunto robusto e consolidado de evidências. Para esses fatores, o conhecimento sobre a magnitude do problema, seus efeitos e a eficácia de medidas para enfrentá-los vem sendo aprimorado desde meados do século passado. O mesmo não ocorre com os fatores de risco ditos “emergentes”, relativamente novos, onde se enquadra o uso de celulares e, ainda mais recentemente, os smartphones. Assim como ocorreu aos fatores tradicionais, o entendimento da dimensão e natureza do problema e sistematização do conhecimento produzido (aí incluídos os métodos de coleta e tratamento dos dados) ainda demandam mais estudos e, portanto, mais tempo e aprimoramento. Some-se a isso as dificuldades de se identificar o componente da distração na ocorrência de um acidente, diferentemente do que ocorre com fatores como a velocidade.

OP - A legislação brasileira é suficientemente rígida e clara sobre o assunto? E os órgãos fiscalizadores?

Victor - A lei brasileira contempla o tema do celular e, desde 2016, o uso do aparelho ao volante é infração gravíssima. Já a fiscalização dessa conduta, assim como das demais infrações, pode variar muito em função dos recursos ou das políticas de fiscalização nas diferentes Unidades da Federação brasileiras. Note-se que já se constatou também que o uso de recursos como viva-voz ou Bluetooth quando dirigimos é aparentemente pouco vantajoso em relação ao uso do celular à mão, uma vez que o problema maior é a atenção dividida. Mesmo assim, a legislação brasileira não cita viva-voz ou sistemas multimídia. Isso, inclusive, seria difícil de se constatar e punir. Daí o papel importante da educação e dos meios de comunicação para sensibilizar os condutores sobre o tema.

Jornal O Povo, 16/06/2018

Fortaleza - CE