Contra a pandemia da Covid-19, o que pode o amor?

sex, 5 junho 2020 11:23

Contra a pandemia da Covid-19, o que pode o amor?

Professor Álvaro Rebouças, especialista em Psicodrama, reflete sobre os relacionamentos amorosos no século em que surgiu um vírus fatal


Álvaro Rebouças é mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)
Álvaro Rebouças é mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)

Como a internet vem mudando historicamente nossa forma de se relacionar, sobretudo no que se refere ao amor? Em entrevista a seguir, o professor Álvaro Rebouças, mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, especialista em Psicodrama pelo Instituto de Psicodrama e Máscara do Ceará e em Sociodrama Familiar Sistêmico pela Escola de Sociodrama Familiar Sistêmico de São Paulo, reflete sobre os relacionamentos amorosos no século em que um vírus fatal legou ao mundo a obrigatoriedade do distanciamento físico e a formulação conjunta de estratégias capazes de dar a ver novos modos de convívio social, interação e trocas afetivas.

Em tempos de isolamento, de pouco arbítrio e de limite à liberdade qual o lugar do amor? 

A percepção sobre o amor, a intimidade, a sexualidade e o erotismo nas relações conjugais vem se transformando desde o século XVIII, como afirma o sociólogo britânico Anthony Giddens, pois a modernidade trouxe a oposição e complementaridade entre o amor paixão fundamentado na atração sexual pré-moderno da Idade Média dos aristocratas e o amor romântico da modernidade que supõe envolvimento emocional, compromisso, liberdade e auto realização individual e compartilhada. A contemporaneidade traz uma mudança realizada nas relações conjugais promovidas pelas mulheres que, trabalhando fora do lar, assumindo seu corpo e denunciando a dominação patriarcal, lutavam por relações igualitárias no casamento e na família. O amor romântico de Giddens gradualmente foi vivido como amor efêmero ou líquido, como afirma Zygmunt Bauman. E não porque as pessoas deixaram de amar, mas porque começaram a dar-lhe novos significados pela queda da sacralidade e duração do casamento, pela exigência das mulheres de relações conjugais igualitárias e satisfatórias, a concepção de estabilidade das uniões conjugais e pela destituição da concepção de romantismo do amor para uma concepção de amor que pode ser finito e escolhido. Estamos falando do amor conjugal. O amor conjugal é constituído pelo amor apego, pelo amor cuidado, pelo amor romântico sexual e pelo amor amizade, todos articulando os componentes da proximidade com a proteção, da cooperação com os cuidados mútuos, da afetividade e sexualidade com a satisfação, da autorrealização com a doação e da liberdade com a confiança. Deste modo, o lugar do amor em 2020, em nosso atual momento de pandemia pelo coronavírus, é de solidariedade e tolerância, expressões do amor ágape, mas também manifestações do amor conjugal.

Como os relacionamentos amorosos têm enfrentado a distância social causada pela pandemia?

O isolamento social foi uma medida sanitária valiosa no enfrentamento da pandemia de coronavírus pelo mundo e no Brasil e que teve como objetivo principal a redução na velocidade de contágio entre as pessoas para não sobrecarregar o sistema de saúde dos Estados e municípios. Esta medida teve como consequência mudanças muito intensas nas relações interpessoais e sociais, na realização dos trabalhos profissionais em casa, virtualmente, na vivência do lazer, na rotina dos casais e das famílias, na percepção do tempo e do espaço dentro do confinamento nos lares, na adaptação pessoal e coletiva às novas situações diárias, na maior convivência entre as pessoas que moram juntas, entre outras. Os casais estão lidando com estressores externos e internos provenientes do medo de contaminação, do trabalho realizado em casa, das atividades domésticas, da presença excessiva do cônjuge pelo confinamento ou pela ausência deste quando não moram juntos, da necessidade de manter a individualidade e o espaço pessoal, de lidar com o adoecimento ou morte próprios, do cônjuge, dos filhos ou dos parentes etc. Estes cônjuges têm lidado com a vulnerabilidade pessoal e do outro(s), a solidão, o estresse, o rápido processo de adaptação diário e enfrentando as perdas e lutos com resiliência, resignação e coragem, mesmo ao assumir a dissolução da relação conjugal ou sua retomada em meio as muitas dificuldades surgidas em nosso momento de crise sanitária. Os casais que não moram juntos têm enfrentado o distanciamento físico com uma crescente necessidade de aproximação emocional realizada por meio das redes sociais na internet, pelas mensagens de texto, áudios e vídeos de Whatsapp, de Instagram, de Twitter e de Facebook, pelas ligações realizadas pelos smartfones, pelo envio de nudes e compartilhamento de vídeos. Contudo, alguns casais se encontram burlando o confinamento em motéis e hotéis para terem relações sexuais presenciais e não online.

Li uma notícia que gostaria de repercutir: o Reino Unido tornou ilegal sexo entre pessoas que não moram na mesma casa devido a pandemia. Você acha que o amor será mais vigiado pós-pandemia? Você consegue vislumbrar como será o novo normal dos antigos e novos casais?

Esta notícia é verdadeira e o governo do Reino Unido, entendendo a gravidade da situação, preferiu adotar medidas muito austeras agora do que favorecer a propagação do coronavírus. Antes da pandemia ser decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nós já éramos monitorados pela rede de computadores para muitas atividades como gastos de cartões de crédito, atividades de compra, interesses declarados nos sites de busca como o Google e outros, no contato com pessoas pelos perfis informados nas redes sociais, etc. Não acredito que a pandemia tenha trazido uma vigilância sobre os cidadãos que permanecerá. Percebo que ela trouxe uma necessidade de controle dos movimentos da população, pois o grande e grave problema identificado é a rapidez da propagação do vírus. Quando uma vacina se tornar efetiva e fartamente distribuída não existirá necessidade de controle tão urgente e amplo, mas de controle na continuidade da vacinação e das ações de prevenção. Contudo, a ação do governo do Reino Unido pode trazer consequências na interação dos casais que não moram juntos. Precisaremos ficar atentos às notícias e verificar. Esses casais precisarão se reinventar criativamente, utilizando os recursos proporcionados pela própria relação e pela internet para resolver esta situação e viver sua conjugalidade plenamente. Os casais conseguem lidar com muitas situações de adversidade e estresse, sejam novos ou antigos. Sua diferença é o tempo de conhecimento mútuo que permitem acessar recursos internos e externos à relação conjugal para resolver as novas questões e as antigas. Penso que os novos e antigos casais viviam um padrão de relacionamento muito pressionado pela necessidade de seguir uma rotina de trabalho, atividades domésticas e a própria vida conjugal sem grandes reflexões sobre esta repetição cotidiana. Os cônjuges tinham a possibilidade de se distanciarem e viverem outras relações com os colegas de trabalho, com as famílias de origem e com as pessoas nas relações sociais dentro e fora da rede que favoreciam a vivência da individualidade com a coletividade fora do casamento. A pandemia trouxe o medo da morte para todos como estressor permanente e cotidiano. Mas o confinamento levou a um excesso de proximidade que evidenciou os pontos positivos e negativos de cada cônjuge e da relação conjugal como espaço de troca.

O futuro das relações amorosas é construído por cada relacionamento conjugal e pelas decisões tomadas por cada cônjuge, individual e coletivamente. Porém, consigo verificar que hoje as relações amorosas têm duas possibilidades: tornarem-se melhores e mais satisfatórias pelo confinamento vivido que gerou importantes ajustamentos, boas reflexões de mudanças e ações sobre os problemas percebidos; ou tornarem-se piores e menos satisfatórias pela presença de valores e crenças patriarcais que sustentam a opressão e a dominação do masculino sobre o feminino, tendo como consequência o aumento do número de feminicídio, a violência contra a mulher, a violência doméstica, de estupros, o aumento da vulnerabilidade das mulheres pobres com filhos, a pouca cooperação masculina na criação dos filhos, a distribuição não igualitária de tarefas domésticas, etc.

As relações amorosas estão sempre às voltas com importantes e intensas mudanças em nosso tempo. Seu futuro não está posto, mas em construção.