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Seg, 17 Julho 2023 16:27

Entrevista Nota 10: Benedetta Ubertazzi e a análise jurídica da União Europeia

Docente da Universidade de Milão-Bicocca, ela disseca o papel da União Europeia no direito constitucional e na ciência política, além de comentar sobre o Mercosul e a conexão entre UNIMIB e Unifor


Benedetta é perita jurídica do Ministério das Relações Exteriores e da Cooperação Internacional na UNESCO (Foto: Arquivo pessoal)
Benedetta é perita jurídica do Ministério das Relações Exteriores e da Cooperação Internacional na UNESCO (Foto: Arquivo pessoal)

No primeiro semestre de 2023, o Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza passou a ofertar a nova disciplina de “Teoria da Complexidade Estatal”, regida pelo professor Humberto Cunha Filho. Estudar apenas o federalismo não mais atende à realidade atual, em que cada arranjo estatal é único, bem como no âmbito das relações internacionais constroem-se novos e inusitados arranjos.

Por isso, como parte da matéria, foi realizado o Ciclo de Lições Internacionais no mês junho. O evento contou com a palestra “O Regionalismo Italiano Hoje”, ministrada pelo professor Omar Chessa, da Universidade de Sassari.

Também houve “A Organização Política da União Europeia”, com o trio de professoras que ministram a cadeira de “Direito da União Europeia”, na Universidade de Milão-Bicocca (UNIMIB): Costanza Honorati, Benedetta Ubertazzi e Serena Crespi.

Para atender às demandas da nova disciplina do PPGD, a docente Benedetta Ubertazzi fala à Entrevista Nota 10 — complementando a conversa com a professora Serena — sobre o papel da União Europeia na ciência política e na comunidade internacional, além de comentar sobre o Mercosul e a conexão entre UNIMIB e Unifor.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — A União Europeia é uma realidade pujante na cena mundial, mas, em termos de ciência política e direito constitucional, é um enigma. Nesse contexto, como você classifica a UE?

Benedetta Ubertazzi — Do ponto de vista do Direito Constitucional, a UE desenvolveu uma forma de constitucionalismo supranacional. Todos os tratados europeus, como o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, constituem a base jurídica da UE e estabelecem os princípios, direitos e responsabilidades fundamentais dos Estados-Membros. O Tribunal de Justiça da UE desempenha um papel crucial na interpretação e aplicação do direito da UE, estabelecendo o primado do direito europeu sobre o direito nacional e assegurando uma interpretação uniforme do direito em toda a UE.

No entanto, é importante notar que a UE representa uma entidade única e complexa que não pode ser plenamente assimilada às categorias tradicionais de Estado-nação ou organização internacional. A UE tem elementos de soberania partilhada, integração econômica e política e cooperação entre os Estados-Membros. Esta complexidade torna a UE um enigma em termos de classificação tradicional, uma vez que transcende as fronteiras conceituais entre organizações supranacionais e Estados nacionais.

Além disso, é importante salientar que a UE está em constante evolução e que a sua estrutura e dinâmica podem mudar ao longo do tempo. Ela enfrentou, e continua a enfrentar, desafios e debates sobre a sua estrutura política, a distribuição de poder entre as instituições e o equilíbrio de poder entre os Estados-Membros.

Em conclusão, a União Europeia pode ser classificada como uma organização supranacional com características de integração regional, mas também representa uma realidade única e complexa e em contínua evolução.

Entrevista Nota 10 — Pode-se dizer que a União Europeia é um passo internacional para a construção da paz perpétua e de um federalismo universal, conforme preconizado por Immanuel Kant?

Benedetta Ubertazzi — A União Europeia representa, sem dúvida, um passo importante para a construção de uma paz perpétua e de uma unidade federativa mais ampla. Esse conceito — defendido por Immanuel Kant em seu ensaio de 1795 intitulado "Pela Paz Perpétua" — promove a ideia de que a organização de estados soberanos em uma federação pode ajudar a prevenir conflitos e garantir uma paz estável.

Sem dúvida, a UE criou um quadro institucional único que permite aos Estados-Membros tomar decisões coletivas sobre questões políticas, econômicas e sociais. Ao criar um espaço de livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, a UE contribuiu para promover o desenvolvimento econômico, a prosperidade e a solidariedade entre os seus membros. Além disso, a UE está ativamente empenhada na promoção dos direitos humanos, dos valores democráticos e do Estado de Direito, que são fundamentais para a construção de uma paz duradoura.

No entanto, é importante notar que a União Europeia ainda não atingiu plenamente o objetivo do federalismo universal tal como previsto por Kant. A UE continua a ser uma organização intergovernamental, na qual os Estados-Membros mantêm uma autonomia significativa para a tomada de decisões. Há ainda desafios para ultrapassar as diferenças entre os participantes e reforçar a integração europeia.

Em última análise, a União Europeia representa um passo importante para a construção de uma paz duradoura e de uma unidade mais ampla, seguindo os ideais de paz perpétua e federalismo universal defendidos por Immanuel Kant. Apesar dos desafios e das limitações, a UE continua a trabalhar no sentido de alcançar o objetivo de uma Europa unida, pacífica e próspera.
 
Entrevista Nota 10 — Que impactos concretos podem ser sentidos por um italiano, um português ou um francês em decorrência do fato de seus países integrarem a União Europeia?

Benedetta Ubertazzi — A adesão de um Estado à União Europeia pode ter inúmeros impactos concretos na vida dos cidadãos. Em primeiro lugar, eles gozam do direito de viver, trabalhar, estudar e viajar livremente dentro do Espaço Schengen, que inclui a maioria dos países da UE. A criação do mercado único europeu também tem um forte impacto na vida cotidiana dos cidadãos dos Estados-Membros: de fato, a UE criou um mercado comum no qual pessoas, mercadorias, serviços e capitais podem circular sem entraves entre as nações participantes. Isto conduz a um aumento do emprego, do investimento e das oportunidades comerciais, criando um ambiente mais propício ao crescimento econômico e à abertura de novas empresas.

Os cidadãos dos Estados-Membros podem tirar partido do financiamento e dos programas de apoio da UE — como o Fundo Social Europeu e o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, que disponibilizam recursos financeiros para projetos de desenvolvimento econômico, social e de infraestrutura. Essas iniciativas podem contribuir para a criação de emprego, a melhoria das infraestruturas e a promoção da educação e da inovação.

Em resumo, a um cidadão italiano, português ou francês, o ingresso do seu país na UE não confere um mero estatuto formal de cidadão europeu a um cidadão italiano, português ou francês. A entrada na UE garante direitos e oportunidades que cada indivíduo pode reconhecer em sua vida cotidiana.
 
Entrevista Nota 10 — Sendo vantajoso integrar a União Europeia, como se explicam atos como o Brexit, a saída voluntária de países do Reino Unido da UE?

Benedetta Ubertazzi — Acontecimentos como o Brexit tiveram um impacto significativo na UE e representaram um desafio para a integração europeia. Embora a adesão à União ofereça vantagens claras — como a participação no mercado único, a livre circulação e a cooperação política —, existem vários fatores que podem influenciar a decisão de um país de se retirar.

Em particular, a UE enfrentou vários desafios nos últimos anos, incluindo a crise da Zona Euro, a gestão da migração e a emergência de movimentos anti-euro e populistas em vários Estados-Membros. Estes fatores contribuíram para um clima político complexo e alimentaram o euroceticismo em algumas partes da União.

O Brexit foi uma manifestação dessa complexidade, resultante de uma combinação de fatores econômicos e sociais inerentes, sobretudo, à identidade e soberania nacionais. As perdas econômicas e o caos político que o Reino Unido enfrentou após o Brexit evidenciaram as dificuldades e consequências de tal decisão.

Por um lado, isto reforçou, de um modo geral, a unidade dos membros da União Europeia, que reconheceram a necessidade de enfrentar desafios comuns e reforçar a integração europeia. Por outro lado, apresentou à UE a necessidade de reformas estruturais destinadas à flexibilidade da ordem jurídica europeia.
 
Entrevista Nota 10 — Como você encara o surgimento e o fortalecimento de outras comunidades internacionais de países, como o Mercosul?

Benedetta Ubertazzi — A emergência e o fortalecimento de comunidades internacionais de países, como no Mercosul, representam uma tendência significativa no contexto das relações internacionais.

De uma perspectiva global, o surgimento de comunidades internacionais de nações pode ser visto como um reflexo da disposição dos governos em colaborar e enfrentar desafios comuns por meio da integração regional. Essas comunidades geralmente visam promover o comércio, o investimento e a mobilidade entre os países membros, com o objetivo de estimular o crescimento econômico e melhorar o bem-estar de suas populações.

Ao mesmo tempo, a emergência de comunidades internacionais de países também pode apresentar desafios. Por exemplo, podem surgir dificuldades na gestão de diferenças entre Estados-Membros, tais como diferenças políticas, econômicas ou sociais, mas estas não devem desencorajá-los a empreender nessas iniciativas, que também oferecem oportunidades valiosas de desenvolvimento.
 
Entrevista Nota 10 — Que importância a UNIMIB confere ao intercâmbio com universidades não europeias, como é o caso da Universidade de Fortaleza?

Benedetta Ubertazzi — A Universidade de Milão-Bicocca atribui um papel fundamental aos intercâmbios com universidades não europeias e trabalha ativamente para os promover, garantindo numerosas bolsas de estudo em programas como o Erasmus para professores e estudantes.

A interação e colaboração com universidades não europeias, como a Universidade de Fortaleza, permitem estabelecer pontes e vínculos com diferentes sistemas educacionais, culturas e contextos acadêmicos. Isso promove a diversidade e a inclusão, oferecendo perspectivas globais e enriquecendo o cenário acadêmico dentro da UNIMIB.

Além disso, esses intercâmbios enriquecem a experiência estudantil, promovem a colaboração acadêmica e a pesquisa internacional, assim como contribuem para a formação de cidadãos globais conscientes dos desafios e oportunidades em nível mundial.