Entrevista nota 10: Covid-19 e o risco de transmissão por água e esgoto

seg, 27 abril 2020 09:23

Entrevista nota 10: Covid-19 e o risco de transmissão por água e esgoto

As maiores implicações quanto à transmissão feco-oral do novo coronavírus e os maiores desafios a serem enfrentados serão nas áreas sem saneamento básico.


Márcio Botto é consultor de Pesquisa e Conhecimento do CAWST - Center for Affordable Water and Sanitation Technology. (Foto: divulgação)
Márcio Botto é consultor de Pesquisa e Conhecimento do CAWST - Center for Affordable Water and Sanitation Technology. (Foto: divulgação)

Atualmente, 35 milhões de brasileiros não possuem acesso à água tratada por rede geral e mais de 100 milhões de pessoas vivem sem coleta pública de esgoto no país. Em tempos de Covid-19, essa realidade se torna ainda mais preocupante, motivo pelo qual se fala que o maior desafio da pandemia no Brasil será nas comunidades, que padecem de sistemas adequados de saneamento básico.

Em entrevista à Unifor, o doutor em Saneamento Ambiental Márcio Botto destaca que, até o momento, não existe relato de transmissão do novo coronavírus por água ou esgoto. E aponta que medidas podem ser tomadas a fim de prevenir ou mitigar o risco de transmissão feco-oral. Márcio Botto foi professor dos cursos de graduação de Engenharia Civil e Engenharia Ambiental da Unifor, entre 2014 e 2018, além de professor da pós-graduação entre 2009 e 2018. 

Confira. 

Pode-se afirmar que há risco de transmissão de Covid-19 por água e esgoto?

Até o momento, não existe relato de transmissão do SARS-Cov-2 (novo coronavírus) por água ou esgoto. Porém, estudos na Holanda e na China identificaram a presença do RNA do vírus no esgoto e em fezes de pacientes infectados, mesmo após apresentar testes negativos para amostras do trato respiratório, indicando potencial rota de transmissão por água e esgoto. 

No entanto, acrescenta-se que a presença de RNA não necessariamente implica na presença de partículas infecciosas e transmissíveis do vírus. Ou seja, a presença do RNA pode estar apenas relacionada a restos inativos de ácidos nucleicos. Até o momento, o risco de transmissão feco-oral, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), é baixo. Esse risco, mesmo baixo, precisa ser considerado e mitigado, principalmente em áreas densamente povoadas, em espaços confinados ou em áreas com falta de saneamento.

Que medida deve ser tomada pelo governo em caso de risco da transmissão de Covid-19 por água e esgoto?

Algumas medidas podem ser tomadas a fim de prevenir ou mitigar o risco de transmissão feco-oral, como o monitoramento do esgoto para verificar a presença do SARS-Cov-2, campanhas educativas de higienização pessoal e ambiental e a disponibilização de métodos simplificados para a desinfecção de água, como o hipoclorito de sódio para as famílias que não dispõem de água tratada por rede geral em suas residências. Independente da presença ou não do SARS-Cov-2, existem vários tipos de patógenos (norovírus, adenovírus, hepatite A, Salmonella, Cryptosporidium e Giárdia) presentes nos efluentes domésticos, devendo estes serem devidamente tratados antes do seu lançamento nos corpos d’agua ou no solo. Os efluentes hospitalares devem ser tratados seguidos do processo de desinfecção. 

A médio e longo prazos, o governo deve investir em saneamento básico buscando a universalização dos serviços de água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana tecnicamente adequados e economicamente apropriados às particularidades locais.  
Todas essas ações devem ser realizadas em conjunto pelos órgãos municipais, estaduais e federais responsáveis pelo setor de saneamento, profissionais de saúde, universidades e institutos de pesquisas.  

E como a população pode contribuir?

Deve-se enfatizar que a rota de transmissão principal conhecida até o momento é pelo contato direto e gotículas do trato respiratório, em que a medida do distanciamento social é a mais eficaz no combate à disseminação do vírus. 
 
A população possui um importante papel mantendo bons hábitos de higiene pessoal e ambiental em suas casas. Realizar a lavagem das mãos frequentemente com água e sabão e sempre após o uso do sanitário.  No caso da população que não é abastecida por rede geral, técnicas domiciliares de tratamento de água devem ser adotadas, como a fervura, hipoclorito de sódio ou desinfecção solar.

Por que se fala que o maior desafio da pandemia será nas favelas/comunidades?

Atualmente, 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água tratada por rede geral e mais de 100 milhões vivem sem coleta pública de esgoto. A presença do coronavírus por longos períodos em água e esgoto, como indicado em estudos, sugere um contínuo risco de contaminação de pessoas sem acesso à água segura e sistemas apropriados de disposição de excretas. Portanto, poderá ocorrer o aumento dos casos de Covid-19 nessas famílias que vivem em favelas, nos bolsões de pobreza e em áreas periféricas que não dispõem de sistemas adequados de saneamento básico.

Como o senhor avalia a situação no Ceará, em particular na capital? Estamos preparados e temos condições estruturais de se evitar risco de transmissão de Covid-19 por água e esgoto? 

Primeiramente, como até o presente momento não temos evidências da viabilidade e infecciosidade do vírus presente no esgoto, acredita-se que o risco de trasmissão pela rota feco-oral seja pouco provável.  Porém, caso essa rota ocorra, não apenas a cidade de Fortaleza, como diversas capitais brasileiras que possuem uma baixa cobertura de tratamento esgoto lançarão uma elevada carga desse vírus nos corpos d’agua. Fortaleza, segundo o Instituto Trata Brasil, ocupa a 76ª posição do ranking das 100 cidades pesquisadas a partir dos indicadores de Saneamento Básico. Atualmente, segundo esse instituto, Fortaleza, possui uma cobertura de 50,7% de rede de coleta de esgoto. 

A partir de uma análise de risco, a população mais suscetível à transmissão do vírus por esgoto seria os profissionais de saneamento que realizam operação e manutenção de sistemas coletivos ou individuais de esgotamento sanitário. Por outro lado, ainda não entendemos claramente a transmissibilidade e a estabilidade do vírus no ar, fezes e na água. 

Enfatizo que nossos governantes devem priorizar as ações de acesso à água segura e a sistemas apropriados de disposição de excretas a toda a população, não apenas para evitar uma provável transmissão do SARS-Cov2, mas sim de diversos outros patógenos já conhecidos, mais resistentes e estáveis.

Conheça o perfil do professor Márcio Botto.