null Entrevista Nota 10: Gonçalo de Mello Mourão e uma comunidade de línguas, leis e letras

Ter, 28 Maio 2019 14:49

Entrevista Nota 10: Gonçalo de Mello Mourão e uma comunidade de línguas, leis e letras

Embaixador Gonçalo de Mello Mourão, representante brasileiro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foto: Ares Soares.
Embaixador Gonçalo de Mello Mourão, representante brasileiro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foto: Ares Soares.

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo

Nos versos de Fado Tropical, de Chico Buarque, encontramos a síntese da aventura da língua portuguesa além-mar. A última flor do Lácio, inculta e bela, não apenas sobreviveu aos reveses de mares nunca antes navegados e ao estabelecimento de um dos maiores impérios que o mundo conheceu — com todas as suas violências e fraturas. Uma vez transplantada para outros meridianos, a língua portuguesa aclimatou-se de tal forma que passou a incorporar identidades, poéticas e sonoridades de outras culturas, expandindo-se em variedades linguísticas. O resultado desse cadinho cultural espalhado por quatro continentes é a formação de nações que, hoje, compõem a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que tem como representante brasileiro o embaixador Gonçalo de Mello Mourão. Cearense de Ipueiras, o diplomata abriu o VI Congresso Internacional de Direito da Lusofonia, que aconteceu de 21 a 24 de maio na Unifor.

No contexto pós-colonial, esses nove países buscam estabelecer hoje acordos políticos, ações de desenvolvimento e, claro, a promoção da língua e da cultura dos países-membros da CPLP. Além de exaltar o senso de comunidade e pertencimento desses países a partir da língua de Camões e de José de Alencar, o embaixador pondera sobre as relações entre Direito e linguagem, uma vez que o uso nebuloso muitas vezes feito da língua afasta todo um conjunto de pessoas da vivência plena da cidadania.

Quando se fala na CPLP, muitas vezes a lembrança que vem à cabeça é a questão do Acordo Ortográfico, mas sua atuação é bem mais expressiva.

A CPLP foi uma construção dos países de língua oficial portuguesa. Esses países entenderam que a língua era uma razão suficiente para organizar um trabalho em conjunto em prol do nosso desenvolvimento, da nossa existência no mundo. A língua nos dá o pertencimento a uma coisa comum — muitas vezes não sabemos muito bem, de início, o que é, mas ao nos comunicarmos uns com os outros entendemos o que é. Então, a partir da língua, foi construída pelas chancelarias dessas nações o que chamamos de Comunidade de Países de Língua Portuguesa, uma organização internacional com sede em Lisboa que lida, basicamente, com três tópicos, os chamados três pilares da CPLP. O primeiro pilar é o da concertação política, o segundo, da cooperação econômica para o desenvolvimento. E por fim a promoção da língua portuguesa e da cultura dos países-membros.

Como funcionam esses pilares em nível mundial?

O pilar da concertação política é uma maneira de todos os países que compõem a CPLP procurarmos posições semelhantes, ou mesmo iguais, em organismos internacionais, de modo que possamos atuar como um grupo e dar mais forças às demandas que seriam pleiteadas individualmente. Essa concertação política leva também ao apoio mútuo junto aos organismos internacionais em momentos de concorrência, eleições, entre outros. Por outro lado, serve também para que possamos desenvolver um pensamento comum na participação para a elaboração e solução dos problemas mundiais. A cooperação em nível econômico para o desenvolvimento busca, naturalmente, colocar em prática o máximo de projetos e vários entendimentos no campo da cooperação lato sensu, em áreas como saúde, educação, elaboração de leis, comunicação, segurança pública, defesa. Então cada um desses ramos corresponde, mais ou menos, ao que seriam nossos ministérios. A CPLP, como organização, tem periodicamente encontros ministeriais, entre ministros de Estado, dessas diferentes áreas. E também há reuniões com representantes da sociedade civil, como o Fórum da Juventude da CPLP, reuniões universitárias da CPLP e por aí vai. E a cooperação também implica o desenvolvimento de projetos específicos de desenvolvimento. São projetos, por exemplo, que o Brasil executa em São Tomé e Príncipe para o desenvolvimento de algum aspecto em que tenhamos competência. E o terceiro pilar é o da promoção da língua e da cultura, que é a vertente fundamental da PLP porque é a própria razão de ser da comunidade: sermos não só países de língua oficial portuguesa, mas países que, mesmo tendo culturas distintas, se expressam pela língua portuguesa. É a maneira de mostrar a capacidade que esta língua tem de extrapolar uma única cultura e ser canal de outras. E uma valorização da língua é uma valorização do Brasil. O inglês, o francês, o espanhol e o árabe são faladas por um grande número de pessoas, mas o português é a única língua do mundo falada por mais de quatro países no mundo, não há nenhuma outra. Isso demonstra a vocação da língua portuguesa de expressar culturas diversas. Nesse aspecto, a experiência do Brasil é muito importante porque temos, nas grandes dimensões geográficas de nosso país, manifestações culturais tão diversas que algumas não se reconhecem entre si, mas encontram na língua um denominador comum.

Como a CPLP tem pensado a educação de seus países-membros, mais especificamente a educação universitária, uma vez que a educação superior é uma demanda de países em desenvolvimento?

Existe, como eu disse, o Fórum das Universidades da CPLP, que reúne várias dessas instituições de ensino. Seria impossível incluir todas as universidades brasileiras, mas temos uma participação expressiva. Isso gera, em primeiro lugar, um encontro entre gestores, professores e alunos. Também intensifica o estabelecimento de relações bilaterais ou até multilaterais entre universidades. É um intercâmbio também de programas, de interesses, de iniciativas que podem ser desenvolvidas e que responderão às necessidades de vários países. Brasil e Portugal fazem um trabalho muito forte de concessão de bolsas de estudo para os demais países da comunidade, uma vez que possuem mais condições nesse sentido. Isso não significa que os demais países não recebam estudantes e concedam bolsas. Mas o que importa ressaltar é que toda expressão em língua portuguesa é importante, e por isso todo conhecimento com base no português é fundamental. Também temos a reunião dos ministros da educação da CPLP, que buscam desenvolver projetos comuns. Atualmente estamos buscando estabelecer um canal de cooperação com países que atuam como observadores da CPLP, países interessados em nosso trabalho e que de alguma maneira pretendem oferecer alguma colaboração. Hoje temos 18 países associados, e uma das coisas que eles se dispõem a oferecer é exatamente bolsas de estudo ou cooperação universitária. Eu estive recentemente numa reunião em Praga [capital da República Tcheca], realizada na sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sobre essa cooperação com os países de língua portuguesa. Foi uma surpresa pra mim ao encontrar nesse encontro mais de 150 pessoas interessadas em assistir às palestras, inclusive há três universidades tchecas que ensinam língua portuguesa. Hoje o português tem uma penetração internacional que precisa ser cultivada.

Como foi para o senhor receber o convite da Unifor para abrir o VI Congresso Internacional do Direito da Lusofonia?

Recebi esse convite com grande entusiasmo. Confesso que o meu primeiro entusiasmo foi paroquial, pois sou cearense de Ipueiras, e quando venho a este estado sempre é com uma sensação de retorno à casa paterna. E também a satisfação por saber que o evento aconteceu aqui na Universidade de Fortaleza, uma instituição que merece o respeito de todos nós pela maneira como foi criada, por uma pessoa que se dispôs a realizar o que realizou como o dr. Edson Queiroz. É uma demonstração extraordinária do que a vontade humana é capaz de fazer de bem para a comunidade onde vive. Para mim é tarde um congresso dessa magnitude ter vindo ao Ceará, pois por todos os motivos o Ceará é um lugar onde a língua portuguesa, pela primeira vez, expressou de forma literária a sua variedade. Quando pensamos em todo o programa do escritor cearense José de Alencar para criar uma literatura nacional no século XIX — não só em termos de temática, como também de língua —, observa-se pela primeira vez que a língua portuguesa era muito mais do que a língua falada em Portugal. Aí nasceu uma comunidade de língua portuguesa: quando se mostra que esta língua é algo de comunidade, não apenas um transplante de um país para outro no processo de colonização. A língua portuguesa chega ao Brasil e a estes outros países mas passa a ter uma vida própria, sem deixar ao mesmo tempo de ser língua portuguesa.

Como o senhor definiria a relação entre a lei e a língua?

O fato de este ser um congresso sobre Direito Constitucional é fundamental, porque o Direito é o que nos ordena a vida. E essa ordenação não é feita através das leis, mas através da língua pela qual as leis se expressam. Se você não consegue expressar claramente uma lei, se ela não consegue ser inteligível, a lei não serve. Então o mais importante na lei é a língua. Então realizar um congresso, sobretudo sobre Direito Constitucional no âmbito da lusofonia, é levar adiante esse espírito de comunidade entre os países de língua portuguesa e reuni-los para fazer suas leis de maneira comum e justa.