null Entrevista Nota 10: João do Cumbe e a luta contra o racismo ambiental nos quilombos

Seg, 13 Junho 2022 09:26

Entrevista Nota 10: João do Cumbe e a luta contra o racismo ambiental nos quilombos

Ao Entrevista Nota 10, João do Cumbe conta como é a resistência pela luta para proteger a comunidade em que cresceu


João do Cumbe é liderança quilombola, defensor dos direitos humanos, educador popular, ambientalista, militante e doutorando em história e cultura africana (Foto: Arquivo pessoal)
João do Cumbe é liderança quilombola, defensor dos direitos humanos, educador popular, ambientalista, militante e doutorando em história e cultura africana (Foto: Arquivo pessoal)

Em 25 de março de 1884, o município de Redenção, distante 55 quilômetros de Fortaleza, marcou a história cearense ao ser a primeira província brasileira a libertar os negros escravizados. O Ceará se antecipou em quatro anos à abolição da escravatura em todo o Brasil, que aconteceu somente em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. 

O dia 25 de março virou feriado estadual, quando é comemorada a “Data Magna do Ceará”. Além disso, ajudou a criar o mito de que no Estado “não tem negros ou descendentes de seres humanos que foram escravizados”, como refuta João Luís Joventino do Nascimento, o “João do Cumbe”, ao Entrevista Nota 10. 

Nascido no quilombo do Cumbe, litoral leste do Ceará, João ingressou na vida acadêmica buscando formas de agregar na luta diária, acumulando títulos importantes para toda a comunidade: especialista, mestre e, em breve, doutor. Atualmente, cursa doutorado na Universidade Federal do Ceará (UFC), onde estuda “As Histórias orais no Território Quilombola do Cumbe”. 

Em maio, participou da palestra “Comunidades Quilombolas do Ceará - A riqueza de seus saberes na abordagem das questões ambientais”, para os alunos de Direito da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz. É possível assisti-la clicando aqui. 
 
Leia a entrevista na íntegra a seguir.
 
Entrevista Nota 10 - Como foi sua infância na comunidade do Cumbe? 
 
João do Cumbe - Cresci bebendo garapa de cana no engenho do Arthur Clemente, brincando de carretilha nas dunas, pegando guaiamum [espécie de caranguejo terrestre] nos salgados, tomando banho nas lagoas, nadando nas camboas e rio, correndo costa (praia), catando murici e pegando feixe de lenha nas dunas, pescando com meu pai nos currais de peixes e trabalhando na olaria fazendo tijolos e telhas. Tinha muita vontade de estudar, por isso fui à única escolinha da região, no Sítio Cajueiro no Cumbe. Após terminar as séries iniciais, fui estudar em Aracati, na Escola Estadual Barão do Aracati. Ia a pé, de bicicleta, a cavalo e, por fim, em um carro pau-de-arara. 
 
Ao chegar em Aracati, tinha vergonha de falar que era do Cumbe, porque havia boatos na região. Diziam que nós, do Cumbe, fedíamos a lama, ou seja, ao mangue, por ser uma comunidade que vivia da pesca de caranguejos em meio ao ecossistema manguezal. Apesar disso, tive uma infância muito feliz. Meus pais, Zé Bernardo e Edite, eram analfabetos, mas me educaram bem e transmitiram valores que trago comigo até os dias atuais. 
 
Entrevista Nota 10 - Como a comunidade cresceu à sua volta? E como você cresceu na comunidade?
 
João do Cumbe - Com o passar dos anos o Cumbe foi crescendo, os donos dos engenhos foram morrendo. O problema é que os filhos desses senhores não deram continuidade aos negócios das famílias. Então, chegaram as primeiras atividades econômicas na comunidade, como a Companhia de Água e Esgoto do Ceará – CAGECE, que ao se instalar no Cumbe, privatizou as encostas das dunas, nossas fontes de água doce, com a retirada excessiva de água do lençol freático. 

Dessa forma, a fauna e flora local começaram a mudar; as lagoas nas dunas a secar com mais rapidez; e, agora, para se ter água em casa, temos que pagar valores altos para nossa realidade. Iniciam-se desta forma os primeiros conflitos socioambientais na região. O discurso da invasão era sempre o mesmo: desenvolvimento e melhoria de vida. Mas, na verdade, destruiu e privatizou áreas de manguezais e carnaubais para instalação dos criatórios de camarão. 

Gradualmente, minha comunidade foi tomada e invadida por atividades incompatíveis com as nossas práticas culturais. Tudo isso iria contribuir para minha formação política e senso crítico, assim como para me tornar um guardião do território de uso comunitário, participando da vida da comunidade. 

Entrevista Nota 10 - O senhor é defensor dos direitos humanos, educador popular, ambientalista, militante do Movimento Quilombola do Ceará e liderança do quilombo do Cumbe. Como é ocupar esses espaços? 

João do Cumbe - No início da luta e da militância, não pensava em ocupar esses espaços, assim como não sabia os desdobramentos da caminhada. No entanto, uma questão era e é certa: a defesa das vidas que estão na comunidade e no território, fatores que me motivaram a lutar. Nossos antepassados sofreram todas as formas de violações dos direitos humanos, mas nunca deixaram de lutar nem aceitaram as condições que lhes eram impostas. Somos descendentes de guerreiras e guerreiros quilombolas, trazemos nos nossos corpos as marcas da rebeldia, resistência e orgulho do nosso povo. O que nos motiva a seguir com o legado, construir pontes que libertem nosso povo, bem como pensar territórios livres das ameaças econômicas, do racismo estrutural e ambiental.

Entrevista Nota 10 - Como o senhor define o “racismo ambiental”?

João do Cumbe - O racismo está relacionado à raça. Nesse sentido, o racismo ambiental é como se nós, povos tradicionais e quilombolas, não tivéssemos direito ao meio ambiente sadio e de qualidade, que passa a ser invadido por atividades econômicas que desconsideram a nossa existência. Essa invasão vem com um discurso de progresso e desenvolvimento, que busca justificar a degradação e destruição. 

Alguns grupos e estudiosos veem esse movimento como racismo ambiental, onde a população rural é vista como atrasada, quando, na verdade, somos guardiões do mangue, das dunas, da praia. Na verdade, graças aos nossos cuidados, esses espaços ainda estão preservados. Os empresários e as empresas não entendem esses locais como patrimônio nosso. Por isso, tem a ver com um componente racial, como se não tivéssemos o direito de continuar nos nossos territórios, usufruindo dos elementos da natureza importantes para a nossa reprodução social, econômica e cultural.  

Entrevista Nota 10 - Além de liderança e militante, você acumula títulos acadêmicos: graduação, mestrado e, agora, doutorado. De que forma a academia ajuda na luta quilombola? 

João do Cumbe - Durante muitos anos, falaram que nós éramos inferiores, que não produzimos conhecimentos nem detínhamos tecnologias sociais. Falaram que a universidade pública não era para nós. Fruto da luta dos nossos antepassados(as), hoje, encontramos um cenário bem melhor! O que requer de nós uma ocupação desses espaços como produtores de conhecimento. Estar na universidade pública, em uma pós-graduação, também é um ato político e de resistência. 

Na academia, temos a oportunidade de contarmos nossas histórias, experiências de vida e bem-viver. Chega dos outros falarem por nós ou de contarem nossas histórias. “Nada sobre nós sem nós”, esse é um dos nossos gritos de ordem. Nos orgulhamos da nossa história de luta e resistência. No entanto, em momento algum aceitamos a condição imposta de escravizados(as). A universidade pública precisa nos ouvir e se preparar para nos receber, porque somos pessoas com direitos garantidos constitucionalmente. Precisamos, antes de tudo, sermos antirracistas. Essa luta não é só nossa, população negra e quilombola, mas de toda sociedade nos seus diferentes espaços, e a educação é uma delas. 

Entrevista Nota 10 - Em matéria publicada no Jornal Brasil de Fato, em 2020, são detalhadas inúmeras invasões e ataques ao ecossistema natural do Cumbe, além de desmatamento. Qual é o panorama atual em relação às questões ambientais? 

João do Cumbe - Atualmente, nosso processo de regularização fundiária do território quilombola do Cumbe encontra-se paralisado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA Ceará), desde que o atual governo federal assumiu. O que nos causa muita preocupação, pelo fato das constantes invasões e privatizações dos espaços naturais de uso comunitário, importantes para nossa reprodução social, econômica, política, cultural, soberania alimentar e bem viver. Mesmo diante desse contexto, continuamos com nossas ações de vigilância e de defesa do território tradicional, fazendo denúncias contra os crimes e injustiças ambientais. A nossa identidade quilombola pesqueira é fortalecida nas relações que estabelecemos com os sistemas ambientais presentes no território. A cada destruição, degradação e privatização dos ambientes naturais é uma parte de nós que desaparece, morre. Acreditamos que com a regularização fundiária do nosso território quilombola de uso comunitário, vamos poder ter o direito de gerenciá-lo, decidir sobre nossas vidas, bem como de defendê-lo para as presentes e futuras gerações.

Entrevista Nota 10 - Recentemente você foi orador de uma palestra na Unifor com o tema “Comunidades Quilombolas do Ceará - A riqueza de seus saberes na abordagem das questões ambientais”. Quais são exatamente essas riquezas e saberes? Como podemos preservá-los? 

João do Cumbe - Com relação às riquezas e aos saberes quilombolas, durante toda a minha fala nesta entrevista, venho apontando a noção do território e das territorialidades que estabelecemos com os sistemas ambientais, a importância do território para nossa reprodução social, econômica, política, cultural, bem-viver, celebrações, histórias, culinárias, etc. Acredito que as pessoas da cidade conhecendo nossas lutas e resistências poderão se juntar a nós nessa árdua tarefa, que também é para as pessoas que vivem nas cidades, distantes do campo. No entanto, para haver o equilíbrio da vida no planeta, nas cidades e nos territórios tradicionais, precisamos unificar nossas bandeiras de lutas, darmos as mãos e pensar em um projeto popular que inclua a todos, todas e “todes”.  Ninguém a menos e nenhum passo atrás.

Entrevista Nota 10 - Fazendo um paralelo com seu atual objeto de estudo no doutorado, “As Histórias orais no Território Quilombola do Cumbe", qual o papel da oralidade na preservação desses conhecimentos ancestrais? 

João do Cumbe - Nossa primeira experiência de comunicação entre semelhantes é por meio da oralidade, visto que muitos dos nossos conhecimentos não se encontram em livros ou fórmulas. A oralidade é responsável pela manutenção e perpetuação de práticas ancestrais que permanecem vivas em cada um de nós, o que requer de nós cuidados com a nossa casa comum, da qual somos parte. Junto da oralidade vem a ação, onde tudo se conecta com o mundo visível e invisível. Antes da escrita vem a oralidade. Daí a importância da preservação dos nossos conhecimentos ancestrais e respeito aos nossos mais velhos, nossas bibliotecas vivas.