seg, 29 junho 2020 11:59
Leia a crônica inédita "Ancoragens", de Hermínia Lima
O que é um porto para você? Escritora reflete sobre as diversas possibilidades da palavra
Autora: Hermínia Lima, professora das disciplinas de História da Arte e Produção de Texto da Universidade de Fortaleza e coordenadora do projeto Educação e Saúde na Descoberta do Aprender
"Não quero porto seguro,
Só âncora, vela e mar.
Âncora para ser meu porto,
Vela para me levar,
Mar para, no litoral,
as minhas ondas quebrar."
Rubem Alves
Podemos simplesmente dizer que um porto é uma intervenção humana feita com o intuito de facilitar a ancoragem de embarcações em um determinado local. Mais precisamente e denotativamente, dizem os dicionários que um porto é “um trecho de mar, rio ou lago, próximo à costa, que tem profundidade suficiente e é protegido por baía ou enseada, onde as embarcações podem fundear e ter acesso fácil à margem”. Sem querer diminuir ou contestar a sapiência de tão sábios livros, chamamos a atenção para a riqueza da pluralidade semântica que essa palavrinha, apesar de tão pequena, encerra em si e que vai muito além dos registros feitos pelos dicionários.
Muitas vezes, as cidades carregam um porto no seu próprio nome! Nesses casos, trata-se de um porto definido, porto propriamente dito! Alguns desses portos, antes anônimos, pela sua importância histórica, seja comercial, territorial, bélica ou cultural, tornaram-se tão importantes que conferiram destaque às cidades que os abrigam e as fizeram muito famosas. Como não lembrar do exemplo que vem da nossa ancestralidade lusitana, a famosa Cidade do Porto, cujo nome anterior, de origem latina, Portus Cale, deu origem ao nome do próprio País?
Vale incluir, nesse passeio de lembrar os usos da palavra, dois outros exemplos também famosos aqui no Brasil: O primeiro, em terras de Érico Veríssimo: Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, foi o antigo Porto da Viamão, no século XVIII. Antes de existir a cidade, hoje capital do Estado, os estancieiros usaram muito esse porto no rio Guaíba para as suas paradas e negociações. O segundo, em terras de Castro Alves: Porto Seguro, apontado como o local da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, é hoje patrimônio histórico e rota turística do estado da Bahia.
Considerando ainda a palavra porto, no seu sentido mais literal e olhando para o cenário cearense, em terras de Alencar e Raquel, também temos, dois portos famosos: o Porto do Mucuripe e o Porto do Pecém. O primeiro, cantado e conhecido pelos seus poéticos faróis, definidos pela bela metáfora de “olhos do mar”, carrega no nome também o nome do bairro que se estende ao nome da praia. Esse porto, referência histórica e turística da cidade de Fortaleza, foi aclamado na canção de Belchior e Fagner, “Mucuripe”. O segundo, do Pecém, com seu complexo portuário, lamentavelmente, tem seu nome atrelado ao quadro grave de doenças respiratórias que assolam as populações da área, contaminada pela fuligem tóxica que emana do carvão e dos minérios que transitam do porto aos navios ancorados ali. Em Pernambuco, porto também é nome de praia, lembremo-nos da conhecida Porto de galinhas!
Deixemos de lado os infindáveis usos da palavra em seu sentido literal e pensemos em outras acepções que se abrem em leque para as inúmeras possibilidades de sentidos, cujas variações transitam, desde uma função comercial até o mais poético dos significados.
Um porto, para além do sentido de ancoradouro, pode ser uma cidade. Os antigos viajantes diziam: - “Em poucos quilômetros, teremos um porto”. Esse “porto” poderia até ser sem local para ancoragem, apenas um porto-pouso! Mais pouso que porto. Uma cidade-porto, não necessariamente portuária.
Porto pode, por analogia, significar segurança em uma transação comercial, não por acaso, temos uma seguradora chamada Porto Seguro. Mesmo sintagma que dá nome à cidade baiana, porém definindo uma empresa. Um porto pode ser um vinho! Líquido precioso habitando o fundo de uma pequena taça à espera de ser sorvido. Nesse caso, referimo-nos ao tão conhecido e saboroso vinho próprio da Cidade do Porto. Um porto pode ser um livro! Nessa metáfora, cabe como exemplo, a Bíblia. Para muitos, vista como porto de parada obrigatória, de referência e orientação existencial. Porto pode ser também título de canção! Seja no cancioneiro nacional, como Porto Solidão, na voz de Jessé; seja no cancioneiro lusitano, como Porto Sentido, na voz de Rui Veloso. Mas, porto pode ainda ser pessoa! - Você é meu porto seguro! Em você eu aporto e permaneço...Porto pode também ser abraço! Quero aportar nos teus braços. Porto pode, analogicamente, ser corpo! Meu corpo ancorado no teu corpo... e por aí vai essa palavrinha, a multiplicar-se em significados com rota aberta ao infinito e sem porto-final para essa viagem.
Embora com essa diversidade de usos, todos eles revelam que a palavra porto, seja no sentido literal, seja no metafórico, conserva uma essência semântica que remete sempre a segurança, guarida, apoio, acolhimento, abrigo, ninho, refúgio etc. Os usos são infindáveis, literais ou literários; porém, a essência semântica de acolhimento permanece. O porto sempre recebe no seu cais, com os mesmos braços, as águas, salgadas ou doces, e os viajantes, amigos ou inimigos, e com eles troca, ora afagos, ora batalhas, mas sempre experiências. As águas e os viajantes vêm e vão, mas o porto permanece ali, com o seu cais de braços abertos nesse eterno gesto de acolher. Nesse sentido, seja você porto também! Acolha e se deixe acolher. Doe e receba, pois é “dando que se recebe”. Seja porto para que tenha concedido o direito de aportar em outros portos também!