seg, 18 março 2019 08:46
Entrevista Nota 10: Filomeno Moraes fala sobre constituição
Que se respeite a Carta Magna brasileira. Eis a exortação que o professor Filomeno Moraes, do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Unifor, faz a cada edição do projeto Diálogos Constitucionais. No próximo dia 20 de março, ele será o mediador da conferência inaugural de 2019, proferida pelo historiador e editor Pedro Corrêa do Lago, autor de “Oswaldo Aranha — Uma fotobiografia” (Editora Capivara), às 17h, no Auditório da Biblioteca Central da universidade.
Político e diplomata gaúcho, Oswaldo Aranha foi um dos principais articuladores da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Assim, a partir de suas idéias e biografia política, toda a comunidade acadêmica é convidada a debater temas transversais da atualidade que guardam relação com o período em que a luta pela democracia no Brasil tentava romper com as oligarquias para fazer valer direitos sociais.
No campo analítico do Direito Constitucional, o encontro também traz de volta a Constituição da Alemanha de 1919 ou Constituição de Weimar, ela que, segundo o professor, “deu uma nova roupagem ao que chamamos de Constitucionalismo Social, ou seja, o Estado e a Constituição com capacidade para intervir na sociedade e na economia”.
Quais seriam as principais ideias de Oswaldo Aranha que servem para pensar a nossa Constituição e a atualidade?
Osvaldo Aranha emerge no plano nacional - antes já era um político importante no âmbito Rio Grande do Sul -, com a chamada Revolução de 30. Com a queda das oligarquias e da chamada política café-com-leite e a emergência de algo novo no Brasil, uma abertura ou democratização do Estado, contemplando sobretudo os setores mais oprimidos, as classes trabalhadores, que nem regulação do trabalho possuíam. Osvaldo Aranha ingressa nesse plano com muita potência. Suas ideias dizem sobre essa abertura do Brasil para a maioria da sua população, para a modernização, para o combate às oligarquias, à apropriação privada de bens públicos. Tudo para que o Brasil suplantasse o Estado oligárquico e buscasse meios de alcançar a democracia e a república.
Oswaldo Aranha aprovaria a Reforma Trabalhista que está aí em pauta?
Eu acho que o Osvaldo Aranha não concordaria com essa Reforma Trabalhista, né? Porque nós brasileiros não suplantamos certas contradições. Trata-se de uma sociedade moderna, toda cheia de aparelhos, os eletrônicos mais sofisticados, nós mesmos com um padrão de vida razoável e grande parte da população tem fome, desemprego, insegurança. No Brasil, nós precisamos de reformas. Reforma Trabalhista com toda certeza, Reforma Previdenciária, com certeza, mas há uma questão muito séria nessas reformas: é quem paga. Normalmente, não são aqueles que têm mais, são os mais necessitados, cai em cima do trabalhador e não dos setores hegemônicos do ponto de vista econômico e social. É como o sistema tributário brasileiro. O sistema tributário brasileiro é um sistema profundamente injusto. Por que? Porque relativamente ele cobra mais de quem não tem do que de quem tem. Uma das questões que levou à Revolução de 30 foi a chamada questão social, ou seja, as desigualdades de renda que haviam no Brasil e que hoje se mantêm.
Como analisar a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência à luz desse legado?
Quanto à Reforma da Previdência ninguém pode falar, porque ela não existe sequer como projeto. O que nós temos é um debate em que os lobbies e as forças organizadas estão defendendo os seus interesses. Os organizados têm condição de vocalizar e lutar por seus interesses. O problema é que a sociedade tem setores que são absolutamente desorganizados. Como imaginar que trabalhadores rurais dos lugares mais distantes podem realmente influenciar a feitura de uma lei lá em Brasília, de uma reforma? A Reforma Trabalhista mostrou aí que boa parte da massa trabalhadora que, ou está desempregada ou subempregada, não pode discutir com os gigantes da economia. É este o problema. Quanto à Reforma da Previdência, o que a gente vê aí são ensaios, alguns de uma perversidade imensa. Essas propostas para punir as pessoas que tem a chamada renda mínima num país em que os pobres não têm uma grande expectativa de vida, você imaginar que vai ter um plano só a partir dos 70 anos de idade, nutrem uma perversidade extrema. Mas me parece que, ao mesmo tempo, tem setores da sociedade com capacidade de vigilância, de reagir a isso. O chamado neoliberalismo, que endeusa o mercado, é algo que já se demonstrou ineficaz. Não vamos pensar que estamos aqui inventando a roda e criando um Estado absolutamente mínimo, que vai levar ao desenvolvimento do Brasil. Isso vai levar a uma concentração de riqueza, de modo que eu tenho muito temor em relação a essas reformas, sobretudo conforme o discurso oficial.
O que o senhor defenderia, de forma premente, com relação a essas duas reformas?
Eu acho que o Estado brasileiro tem que ter um papel ativo no sentido de realizar aquilo que a Constituição, nos seus objetivos para a República Federal do Brasil, determina: a redução das desigualdades, a redução da pobreza, a redução dos preconceitos, etc. Não é que o Estado por si só vá fazer isso sozinho, mas sem o Estado muitas das políticas, no sentido de cumprir esses objetivos, não se realizariam. O principal desafio que nós temos que evitar é jogar na lata do lixo a Constituição. Os problemas não estão na Constituição. Estão no não respeito à Constituição. A Constituição pode propiciar a democracia política, a justiça social e o desenvolvimento econômico. Vamos cumprir a Constituição de 1988, porque ela tem 30 anos, mas é atual.
O senhor acha que no atual momento forças conservadoras estão colocando em risco o Estado Democrático de Direito?
Não sei se estão colocando em risco, mas elas estão muito atuantes. Isso não é só no Brasil. Há uma literatura hoje, mais ou menos substancial sobre os chamados riscos da democracia. Como a gente ia imaginar que a democracia consolidada, como a democracia americana, elegeria Trump? E muitas vezes em países da Europa, com esses movimentos de extrema-direita ressurgindo ou se criando e tendo uma voz forte... são riscos. Nós não estamos dizendo que a democracia vai se acabar, mas que esses riscos têm que ser enfrentados. E na medida em que eles forem enfrentados e vencidos é que a gente pode dizer que a democracia prevalecerá.
E no Brasil?
No Brasil, nós temos também um conjunto de riscos. A nossa sociedade, pelo menos de uns quatro anos pra cá, aproximadamente, vive períodos de turbulência muito fortes. Estamos, digamos, muito divididos. A falta de solidariedade social me parece muito aguda. Isso são riscos para a democracia. Em relação à Constituição, posso dizer que acho que tivemos 16 anos no Brasil de uma governabilidade reconhecida. Os oito anos do Fernando Henrique Cardoso, com a ênfase na questão do saneamento financeiro, do combate à inflação, foi uma vitória. E os oito anos do Lula, em que a questão social veio à tona de uma maneira muito aguda e com resultados muito razoáveis. Nós temos avanços, mas também vivemos momentos de grande perplexidade. Só espero é que as forças democráticas, republicanas, os setores comprometidos com a civilização da sociedade brasileira possam prevalecer.
Onde é que o senhor enxerga o grande locus de resistência nesse momento político?
Acho que forças liberais, democráticas, conservadoras, elas podem coexistir, sem significar um retrocesso. O que me causa temor são os setores comprometidos com o que eu chamo de a falta de civilização, contrários à herança civilizatória da nossa sociedade. Você pode imaginar que no século XX e XXI há gente combatendo os Direitos Humanos? Você pode imaginar que vá se dar poder à polícia, ou às polícias, para serem todas repressivas, para agir sem qualquer controle do Estado? A democracia pode até não se acabar, mas o que nós queremos é que ela vá progredindo e se consolidando. E vejo neste momento no Brasil, em diversos setores da sociedade, o que eu chamaria de democracia boçal, que tem levado a uma condenação dos progressos civilizatórios.
Quais são as características dessa democracia boçal?
Esse discurso idiota. O discurso que não respeita o outro. A democracia é a luta de contrários. Mas contrários que respeitam as regras do jogo. O problema não é ser de direita ou de esquerda. O problema é você ser de esquerda e não respeitar o de direita e vice-versa. Essa antipatia ou ojeriza aos processos democráticos, aos direitos fundamentais, à separação dos poderes. A atividade é política, que leva a resultados que muitas vezes não são os resultados que eu quero, mas tenho que respeitar as regras do jogo. No Brasil, há bons indícios para que essa democracia boçal se aprofunde, ela está se aprofundando, mas a minha esperança é que setores que não são boçais da sociedade brasileira possam reagir.