A voz da memória

Há fragmentos do tempo pulsando no acervo iconográfico da fonoaudióloga Christina Praça Brasil. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Fortaleza, instituição ligada à Fundação Edson Queiroz, a atual Chefe de Gabinete da Reitoria vasculha o próprio álbum de fotografias para se deter frente a uma imagem paradigmática: em 1995, ano de sua colação de grau, a cena em foco, captada em um único clique, é a da então melhor aluna do curso de Fonoaudiologia e também do Centro de Ciências da Saúde da Unifor recebendo a bolsa-prêmio Yolanda Queiroz, passaporte direto para cursar gratuitamente uma especialização na instituição.

Mais do que um registro factual, o retrato diz sobre a beleza do eterno retorno das coisas: tudo porque a feliz coincidência é que a premiação lhe foi entregue na presença da então diretora do CCS e hoje reitora da Universidade de Fortaleza, Fátima Veras, de quem Christina Praça é atual Chefe de Gabinete. “Eu e Fátima Veras sequer nos conhecíamos quando me formei. Mas a foto oficial revelou que ela estava no evento de colação de grau quando o professor Martônio Coelho, então Diretor do Centro de Ciências Administrativas, me entregou o prêmio. É surpreendente e emocionante ver a conjunção dos acontecimentos para que viéssemos a nos aproximar e trabalhar juntas, inclusive em torno de uma causa em comum: o ensino, a pesquisa e a extensão de qualidade na Unifor”, felicita-se Christina.

O tempo que dá voltas em torno de uma fotografia também acena para o lusco-fusco dos acontecimentos processuais. Doutora em Saúde Coletiva e Pós-Doutora em Tecnologias e Serviços de Saúde pelo CINTESIS - Center for Health Technology and Services, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em Portugal, Christina gosta de dar destaque aos nove anos consecutivos em que esteve à frente da coordenação do curso de graduação em Fonoaudiologia da Unifor. Período em que não poupou esforços em nome de um trabalho de excelência no que se refere à formação dos estudantes e amplo reconhecimento da profissão. “O próprio setor público desconhecia a trajetória referencial de fonoaudiólogas e fonoaudiólogos e foi necessário cavar diálogo e apoios para dar maior visibilidade e garantir a aplicabilidade de trabalhos e pesquisas premiadas. Junto à equipe do Laboratório de Inovação Tecnológica, vinculado à Diretoria de Tecnologia da Unifor, nos tornamos aptos inclusive a conceber e desenvolver aplicativos, softwares e outras ferramentas de autocuidado para profissionais que utilizam a voz como instrumento de trabalho”, destaca Christina.

Orgulho, em particular, Christina nutre pelo aplicativo VoiceGuard, um dos recursos tecnológicos desenvolvidos e validados no Brasil e no exterior por sua equipe de pesquisa. Um projeto reconhecido pela Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia como recurso de elevada relevância científica, e pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza como ferramenta do Programa eVoice de promoção da saúde vocal.

“O aplicativo criado dentro da Unifor tem sido aplaudido por auxiliar no autocuidado com a voz, emitindo alertas para a ingestão necessária de água, chamando atenção para os elevados níveis de ruído ambiental e até sinalizando para a qualidade da produção vocal. Além disso, disponibiliza relatórios diários sobre o estado de saúde vocal dos usuários e oferece dicas sobre o que fazer para mantê-la saudável”, detalha a pesquisadora cuja dissertação de mestrado já havia resultado na criação de um software para que professores das escolas públicas e privadas pudessem identificar crianças com características de distúrbio de leitura e escrita.

Pesquisar para impactar positivamente a vida social. Assim ela aprendeu na Unifor: “só acredito em pesquisa com responsabilidade social. Não posso fazer uma tese para guardar na gaveta, pois isso só vai atender a mim. As pesquisas nascem na universidade, mas têm que pular o muro para beneficiar a população. Além do Voice Guard, criamos, por exemplo, um aplicativo para captação de doadores de sangue, o 'Doe Sangue', em parceria com o Hemoce; fizemos um trabalho com o portal da Prefeitura que acabou sendo adaptado para o Dendê, o 'Dendê Participa', e um Facebook, que dá voz à comunidade para saber quais problemas interferem nas condições de saúde para, a partir disso, tentar resolver coletivamente. Assim também se deu a reativação da fábrica de vassouras feitas de garrafas pet na comunidade, ampliando as possibilidades do artesanato. Tudo isso mediado pela tecnologia e impactando positivamente na saúde coletiva”.

Um por todos e todos com ela

O vínculo afetivo de Christina Praça com a Universidade de Fortaleza nasceu em casa. Ela, a primogênita, fez graduação em Fonoaudiologia; o irmão Magno formou-se em Direito; e as duas irmãs, Cláudia e Mônica cursaram Administração de Empresas e Pedagogia, respectivamente. No mesmo campus, todos também se especializaram em suas áreas. E, ao casar, a escolha já tantas vezes refeita ganhou outras ramificações. Com o marido e advogado Marcelo de Melo Brasil Filho, também egresso da Unifor, Christina teve dois filhos: Bruno, 24, e Thiago, 20. Entusiasmados com a trajetória acadêmica vitoriosa e a atuação profissional apaixonada da matriarca da família não poderiam vislumbrar outro caminho.

“Desde criança, frequento a Unifor. Meus pais se formaram na universidade e era brincando naquele jardim do campus que eu e meu irmão esperávamos minha mãe sair do trabalho. Nos finais de semana, a gente também ia andar de long board. Lembro de ver animais soltos, como as emas, e o lago lá atrás. Então criei esse vínculo afetivo com a universidade e quando meu irmão mais velho iniciou a graduação em Medicina na Unifor tive ainda mais certeza de que também seria lá que me tornaria médico, justamente por perceber o nível de excelência da formação e conhecer de perto toda a infra-estrutura e o parque tecnológico disponíveis”, revela Thiago, hoje cursando o 5º semestre de Medicina.

Recém-formado, Bruno reitera a escolha que também contagiou o irmão. “Antes de escolher Medicina, pensava em Direito, por influência do meu pai; mas meu avô materno é médico oftalmologista e começou a me catequizar aos poucos. Quando ele ia consultar, me colocava para mexer nos equipamentos, olhar o fundo do olho do meu irmão... E aí foi fatal. Passei em outras universidades, mas optei pela Unifor. Entrei em 2014 e me formei no primeiro semestre de 2020. E me orgulho especialmente por ter vivido algumas experiências em comum com minha mãe, como as ações sociais, as visitas de assistência ao Dendê, o desenvolvimento do aplicativo DoeSangue, a produção de alguns artigos científicos e os atendimentos no NAMI. Essa formação aliada à prática e à responsabilidade social, característica do Centro de Ciências da Saúde da Unifor, faz toda a diferença. E pude constatar isso quando atuei como médico já no enfrentamento à Covid-19, tentando conter danos ao mesmo tempo em que constatava o quanto o controle da doença passa pelo coletivo e não pelo individual. Ou seja, a população é a protagonista – e não os médicos”, diagnosticou.

Habituado a compartilhar em família os altos e baixos de rotinas acadêmicas ou profissionais afinadas umas com as outras, o médico Bruno Praça Brasil se vale hoje da formação humanística que sempre acompanhou a científica para lidar com o necessário e contingencial afastamento da família.

“Minha mãe tem diabetes tipo 1. Por isso que ao atuar na linha de frente da Covid-19 tive que mudar de casa. Desde então, venho cumprindo um distanciamento rigoroso dos meus pais. Também não vi mais nenhum amigo que não fosse da área. Vivo dos tchauzinhos que dou ao longe para os meus pais. E se me orgulho, como a minha mãe, de ter realizado pesquisas na Unifor reconhecidas até pela Fundação Clinton hoje acho bem mais importante ter aprendido sobre empatia, ou seja, a habilidade de se colocar no lugar do outro. A morte é natural, mas vimos muitos jovens sucumbirem a essa doença e isso foi bem pesado. Ainda está sendo difícil. Um aprendizado com dor. Mas sei que a base de formação que tive, aliada ao apoio e incentivo familiares, vão me manter atuante e firme nessa missão de estreia tão desafiadora”, acrescenta.

Justiça seja feita

Acima das paixões humanas, diz a mitologia grega, existe o sentido moral da justiça, aquele ligado ao sentimento da verdade e da equidade. Eis o que representa a deusa Themis, uma divindade de olhar austero e olhos vendados, armada com sua espada e indefectível balança, instrumentos evocativos de poder e equilíbrio, respectivamente.

Advogado formado pela Universidade de Fortaleza, Marcelo de Melo Brasil Filho, o patriarca da família, conhece bem o conteúdo, mas também a forma da deusa da Justiça. Tudo porque, ao planejar a colação de grau, sua turma de 1989 decidiu: nada de ser mais uma a fixar nomes em placas de formatura tornadas invisíveis diante das tantas já caoticamente enfileiradas nas paredes do Curso de graduação em Direito. Queriam mais e se aventuraram a assumir um grande feito: erguer uma estátua de Themis no campus.

Aos 52 anos, o experiente advogado com 30 anos de carreira sólida anda ri nervoso do arroubo juvenil: “Primeiro fomos conversar com o chanceler Airton Queiroz, que disse: autorizo. Vibramos, lógico, mas não tínhamos dinheiro para contratar um escultor ou arquiteto. Daí começa uma verdadeira saga; livro de ouro, pedidos a políticos, festas e rifas solidárias... Até que, enfim, conseguimos uma verba e nos 45 do segundo tempo estava quase tudo pago. Contratamos Francisco Barbosa de Oliveira, conhecido artisticamente como Franzé D'Aurora, artista bem badalado à época que estava construindo uma estátua de Santo Antônio na cidade de Caridade. Ele trabalhava fazendo esculturas de ferro-cimento, uma revolução na época”, recorda Marcelo.

O capricho fez a moçada suar a camisa. Franzé 'Aurora e seus ajudantes teriam que trabalhar no local. Para tanto, Marcelo e os jovens formandos alugariam uma casa próxima à Unifor e durante um mês e meio ainda pagariam alimentação para toda a equipe envolvida com a obra. “Contratamos até uma Scania. Mas o fato é que ele construiu e nós realizamos o sonho de botar nossa placa a 5 metros de altura, no topo da estátua, a maior da Universidade. Hoje, todas as turmas do Direito tiram foto lá, mas ninguém sabe essa história que foi marcante para nossa turma”, ressalta.

A marca indelével da Unifor também povoa a memória infantil do advogado. “Na época da inauguração da Unifor, eu era criança e morava ali próximo. Nasci em 1967, a Unifor é de 1973. Meu pai, formado em Filosofia e Teologia, também foi da primeira ou segunda turma da Administração na Unifor. Ou seja, são três gerações: ele, eu e meus filhos, além da Christina. Meu pai está com 87 anos e tem Alzheimer. Mas eu lembro por ele: morávamos na avenida Rogaciano Leite, quando esta era uma região esquecida e a Unifor é que trouxe algum progresso e movimento, junto com o Centro de Convenções. Me lembro que íamos para a avenida Washington Soares espiar, aqui e acolá, o farol de um carro despontando. Até aquele momento, o carro do meu pai era o único que vinha para o bairro. E era ao léu que a gente esperava por ele e antevia a sua chegada, felizes da vida”, poetiza.

Marcelo é o egresso eternamente grato e apaixonado pela época de estudante universitário. Até hoje, sabe de cor o número da matrícula e a lista de nomes da turma. Quando fez vestibular, o interesse primeiro foi por Engenharia de Pesca em uma universidade pública, já que o pai era dono de uma empresa de criação de camarão. Mas não gostou do curso e decidiu seguir adiante com a graduação em Direito na Unifor. Com 21 anos, estava formado e há três décadas exerce feliz a profissão, tendo, até hoje, contato assíduo com colegas de turma e professores da Unifor, em um grupo formado no WhatsApp. A foto de formatura, realizada, à época, no Ginásio Paulo Sarasate, está na parede do escritório de advocacia, com data impressa: 14/07/1989. É motivo de orgulho, tanto quanto a estátua da Deusa Themis, que, por último, ainda atraiu o experiente advogado para uma Pós-Graduação em Processo Civil na Unifor.

Com humor fino, confessa: “Tenho um tio, Murilo de Melo Brasil, que foi funcionário por toda a vida do Grupo. Começou carregando botijão de gás e terminou na gestão. Octogenário, hoje está aposentado, mas o fato é que cresci com esse nome na cabeça. Tanto que, até hoje, na minha casa só entra gás ou água se for Nacional Gás e Indaiá. Faço questão de comprar da empresa que emprega mais de 20 mil pessoas no Ceará. Não adianta tentar me vender outra marca. E já convenci muita gente fazendo essa propaganda. Lá em casa todo mundo é bairrista. E veja: o ano de nascimento da Christina é 1973, marco da inauguração da Unifor. E ela tem toda uma vida de dedicação à instituição, o que só aprofunda a ligação afetiva de nossa família com a Unifor”.