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Seg, 4 Setembro 2023 17:54

Doe de Coração: Uma corrida pela vida

Um ato de amor que salva vidas, a doação de órgãos e tecidos reverbera histórias de solidariedade. Campanha realizada pela Fundação Edson Queiroz incentiva o gesto e ajuda o Ceará a se destacar na realização de transplantes no país


O estudante Pedro Araújo recebeu uma nova chance de vida graças à doação de órgãos (Foto: Ares Soares)
O estudante Pedro Araújo recebeu uma nova chance de vida graças à doação de órgãos (Foto: Ares Soares)

Pedro Araújo nunca pôde praticar esportes. Nasceu com uma cardiopatia congênita e, por isso, desde sempre a vida foi feita de pegar um ônibus em Miraíma, no interior do Ceará, para viajar três horas até Fortaleza em uma busca pela saúde.

Ele fez a primeira cirurgia quando mal havia completado um mês de idade. Quatro anos depois, um novo procedimento cirúrgico. E assim Pedro seguia, pouco acostumado com a aparência arroxeada que não lhe deixava o rosto e as limitações que a doença lhe causava. “Meu problema era a transposição das grandes artérias. Nasci com elas invertidas”, conta.

Quando completou 15 anos, um susto: a insuficiência cardíaca se agravou, e ele desmaiou. Precisou, mais uma vez, viajar três horas até a capital, desta vez em uma ambulância. “Quase morri. As médicas falaram que a única alternativa seria o transplante”, lembra.

Foi aí que a história dele se cruzou com a solidariedade incentivada há mais de duas décadas pela campanha Doe de Coração, realizada pela Fundação Edson Queiroz (FEQ). Graças à doação autorizada por uma família que ele não chegou a conhecer, Pedro recebeu junto com o coração novo um bastão da esperança, capaz de propagar histórias de amor e fé. E passou a realizar palestras e incentivar a doação de órgãos e tecidos.


“A Doe de Coração mostra para a população como é importante doar, como um ato desses pode salvar vidas. Salvou a minha. É triste ver as pessoas desconfiando do sistema pelo caso do [apresentador] Faustão, [que conseguiu realizar a cirurgia rapidamente]. Uma campanha como essa ajuda a mostrar que o sistema é confiável e importante”Pedro Araújo, 21 anos, recebeu transplante cardíaco

Um novo coração para realizar o sonho de praticar esportes

Uma semana depois de Pedro ser incluído na lista de transplantes, veio a notícia de que havia um coração disponível e, logo em seguida, a frustração de não poder recebê-lo em razão de uma infecção identificada no doador. Dois meses depois, ouviu das médicas em uma palestra pelo Dia Nacional da Doação de Órgãos (27 de setembro) sobre não perder a esperança. Ele não perdeu e, alguns dias depois, conseguiu enfim fazer a cirurgia, em outubro de 2017.

A partir daí, sua vida mudou. Hoje, aos 21 anos, Pedro estuda Administração de Empresas e realiza o sonho de praticar esportes. “Sempre gostei de assistir, mas nunca pude praticar. Hoje eu corro e jogo bola”, conta. 

A primeira corrida oficial foi no ano passado, em um torneio na Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à FEQ. Vez por outra, Pedro também viaja para participar de um torneio nacional com outros transplantados. “É uma vida totalmente diferente. O transplante deu qualidade de vida à minha doença. Hoje não tem quem diga que sou transplantado”, comemora.

+ Doe de Coração: Uma corrente de solidariedade

Uma família beneficiada virou também doadora

O transplante de órgãos e tecidos pode salvar vidas e também dar uma nova qualidade a pessoas que não correm risco de morte, mas precisam do procedimento. Fazia muitos anos que o economista Bento Ribeiro enxergava mal. Sentia dificuldade para fazer tarefas simples, como ler e dirigir, com a visão embaçada e uma forte sensibilidade à luz. O grau necessário para corrigir o astigmatismo nas lentes dos óculos subia a cada nova consulta, e ele foi percebendo a visão falhar mais e mais.

Só tinha 30% da visão do olho direito, quando foi diagnosticado com ceratocone, uma doença que faz a córnea se projetar para frente e formar uma saliência em formato de cone. Foi aí que soube que precisaria de um transplante para superar o problema. 

Em 2019, Bento foi para a fila regulada pela Central de Transplantes do Ceará. “Logo fui chamado”, diz. Ele esperou um mês até receber a córnea de um jovem rapaz de 25 anos. Tudo que sabe sobre ele é o sexo e a idade, já que a legislação brasileira preserva a identidade de doadores.

Minha qualidade de vida melhorou 100%. Nunca enxerguei tão bem como hoje. Não uso mais óculos. O processo depois do transplante é lento, mas hoje eu enxergo como se tivesse ligado uma TV de LED”, compara o economista, de 53 anos.

Se Bento já tinha expressado o desejo de ser doador de órgãos ao acompanhar a campanha Doe de Coração desde a sua criação por ser funcionário do Grupo Edson Queiroz, depois do seu procedimento a família se sensibilizou ainda mais pela causa. “Há dois anos, minha irmã infelizmente faleceu, e as córneas dela foram doadas”, conta.

A família dele é a prova de que doar é um ato de amor que pode gerar cada vez mais solidariedade. É que a ceratocone também foi diagnosticada em várias pessoas da família, levando à necessidade de transplante em alguns casos. Recentemente, um sobrinho dele também foi beneficiado pela doação.


“A Campanha Doe de Coração mostra que doar é muito importante e que só vai beneficiar outras pessoas. Isso transforma a vida de quem está precisando, que também passa a pensar de forma cada vez menos egoísta e mais solidária”Bento Ribeiro, 53 anos, recebeu transplante de córnea

Combater a desinformação para estimular as doações

O Brasil mantém um dos maiores sistemas de transplantes do mundo. Pacientes dos sistemas públicos e privados que necessitam de órgãos ou tecidos são incluídos em uma lista única, regulada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Neste ano, o país bateu recorde de número de doadores, chegando à marca inédita de 19 doadores por milhão de habitantes, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

Neste cenário, o Ceará costuma se destacar. É, por exemplo, referência no Norte e Nordeste para transplante de fígado. Além disso, entre janeiro e junho deste ano, o estado ficou na quarta posição do ranking nacional de transplantes, atrás do Paraná, Santa Catarina e Rondônia. 

Campanhas como a Doe de Coração ganham relevância especialmente no contexto em que um dos principais entraves para a doação de órgãos e tecidos no Brasil ainda é a desinformação. Para se ter uma ideia, 46% das famílias (que são as responsáveis pela autorização do procedimento) recusam a doação, de acordo com dados da ABTO.


Para ser um doador de órgãos, é importante comunicar o desejo à sua família, já que ela é a responsável por autorizar o transplante (Foto: Getty Images)

Um receio comum é de que possa haver falhas no diagnóstico de possíveis pacientes doadores. No entanto, as regras são cuidadosas em todo o processo de doação, e a morte cerebral precisa ser atestada por médicos e por exames específicos.

Só depois de todos os testes e quando não há dúvidas da irreversibilidade do caso, o diálogo com a família é iniciado. Isso significa que não é possível que nenhum procedimento seja feito sem garantir que já não haja chance de recuperação para o paciente doador.

Número de transplantes volta a subir, e a fila à espera de um órgão também

Os números de transplantes realizados no Ceará voltaram a subir após a queda brusca observada em 2020, quando o país enfrentava a pandemia de Covid-19, e mais de 1,5 mil transplantes voltaram a ser realizados anualmente. Somente neste ano, já foram realizados 1.037 procedimentos no estado, segundo dados da Secretaria da Saúde. O problema é que a fila de espera também tem crescido.

“A pandemia impactou negativamente no número de doações e, consequentemente, no número de transplantes, assim como impactou em todos os tipos de cirurgias”, recorda Rosangela Cavalcante, assistente social da Central de Transplantes do Ceará. A instituição regula a lista dos receptores de órgãos e tecidos, recebe notificações de potenciais doadores com diagnóstico de morte encefálica e articula a logística que torna o procedimento possível. 

Rosângela afirma que a realização de transplantes voltou a crescer, mas, para salvar mais vidas, é importante disseminar o conhecimento sobre o processo de doação — o que é feito anualmente por meio da campanha Doe de Coração. 

"Esse movimento já faz parte do calendário de todo cearense que se solidariza com pacientes e seus familiares que aguardam por um transplante de órgãos e tecidos", celebra. "É fundamental para que a conversa familiar sobre o tema fortaleça a cultura da doação no nosso estado".


“Nós, trabalhadores e voluntários do Sistema Estadual de Transplantes, nos sentimos honrados em vestir anualmente a camisa do movimento pelo significado educacional e de sensibilização que essa mobilização social consegue alcançar positivamente, contribuindo para manter o Ceará sempre em destaque nacional na doação de órgãos e tecidos para fins de transplantes”Rosangela Cavalcante, assistente social da Central de Transplantes do Ceará

2023, ano de sensibilizar sobre o transplante de córnea

Neste ano, o movimento Doe de Coração será lançado no dia 5 de setembro e trará como carro-chefe a sensibilização sobre o transplante de córnea, que é um tecido. "Em geral, não tem o mesmo impacto dos outros transplantes que envolvem risco de vida, mas algumas vezes é a única forma de restabelecer o contato visual de uma pessoa com a sociedade", explica o médico Jailton Vieira, especialista neste tipo de procedimento e coordenador da campanha em 2023.

Jailton começou a se interessar por transplante logo no início da formação em Oftalmologia. “Nessa época, a possibilidade de fazer alguém voltar a enxergar após um transplante já me fascinava, e com esse sentimento eu me aprofundei no assunto”, rememora. Foi então se especializar na área em São Paulo e depois voltou para Fortaleza, onde criou centros de transplante.

Ele diz se sentir honrado em coordenar o movimento deste ano. “É uma oportunidade de falar sobre um tema no qual eu posso tentar fazer a diferença, seja divulgando, informando ou sensibilizando pessoas para a doação”, afirma. O médico destaca ainda que o trabalho em prol da doação de órgãos e tecidos deve ser constante e ativo.

Para Jailton, campanhas como a Doe de Coração são fundamentais para que mais pessoas abracem a causa e ajudem a reduzir as filas de receptores para transplantes no Brasil. Essa constatação está nos números: desde 2003, quando a iniciativa foi criada, o número de doações quadruplicou no Ceará.


“Um transplante pode salvar uma vida e, dentro do contexto do transplante de córnea, pode ajudar uma pessoa a enxergar novamente. Entretanto, isso somente vai acontecer se antes houver um ato único de amor e solidariedade, representado pela doação. Doar é valorizar a vida e as pessoas. Sejamos doadores”Jailton Vieira, coordenador da campanha Doe de Coração

Participação das ligas acadêmicas para informar e sensibilizar

Outra novidade da edição deste ano é uma participação mais ativa das ligas acadêmicas da Unifor, que devem reforçar nas atividades de extensão a conscientização sobre a doação de órgãos em setembro e no restante do ano. Isso porque elas envolvem diversos alunos de vários semestres do curso de Medicina, proporcionando esclarecimento sobre o tema.

Há ao menos 36 dessas iniciativas na Medicina, que atuam em diversas áreas, como cardiologia, gastroenterologia, atenção primária e outras. “Ao longo dos anos, as ligas vão desenvolvendo atividades transversais de rastreio de doenças”, explica o médico, professor e coordenador das ligas acadêmicas, Clayton Aguiar. Nelas, alunos são orientados por professores e atuam em campanhas de conscientização. 

Se em outras edições os estudantes das ligas já participavam de caminhadas de apoio à doação de órgãos e tecidos, neste ano terão participação maior na divulgação da campanha. “Vai ter uma mesa redonda, um simpósio falando sobre essa questão da doação de órgãos, exposição de fotografias também. Então, as ligas estão bem conectadas com a questão da campanha Doe de Coração”, afirma Clayton.

+ Confira a programação completa da Doe de Coração

"E por que temos que incentivar? Porque além do incentivo da doação, é você falar de saúde, é você estar prestando atenção no próximo, é você perceber que o outro necessita de um apoio, de uma ajuda", acrescenta o professor.

“As campanhas de conscientização são importantes porque [dão mais chances a] quem está lá na ponta, esperando o transplante, necessitando de um órgão [ou tecido] para melhorar a qualidade de vida ou mesmo para conseguir se manter vivo”, completa Clayton. Ele ainda pontua que a participação das ligas vem dessa sensibilização sobre a importância do movimento.

Uma marca nova para expressar um jardim de solidariedade

Todo ano, um artista plástico é convidado para reestilizar a marca da campanha Doe de Coração e se integrar a esta onda de solidariedade em defesa da vida. “Para mim, foi uma honra participar porque esta é uma campanha que me toca muito”, diz Stênio Burgos, responsável pelo design deste ano.

“A relação do doador com o receptor é uma das mais profundas que o ser humano pode alcançar. É como dar parte da sua vida para perpetuar outra vida”, afirma o artista. Ele conta que, após receber o convite da Fundação Edson Queiroz, se recolheu no ateliê para refletir sobre a doação.

Arquiteto por formação, Stenio então se inspirou nos jardins, uma marca de sua produção e uma forma de representar no coração que redesenhou para a campanha as conexões real e espiritual que ele vê no ato de doar. “Em primeiro plano, tem a árvore da vida, que representa essa relação de a pessoa dar parte de sua vida para outra”, explica.


“É uma campanha muito bonita para incentivar a doação de órgãos. A minha marca traz um jardim que pode florescer. A doação cria uma relação que beneficia a família do doador e do receptor com solidariedade.”Stênio Burgos, artista plástico responsável pela marca da 21ª edição da Doe de Coração

Homenagem a quem contribui com esta história

Além de incentivar e esclarecer sobre a segurança da doação de órgãos há mais de duas décadas, a campanha Doe de Coração homenageia quem contribui com este trabalho, que salva milhares de vidas a cada ano.

Neste ano, serão homenageados três profissionais que contribuíram e contribuem de forma relevante para o crescimento dos transplantes no Ceará. Conheça, a seguir, os agraciados que têm se dedicado a esta história de solidariedade.

Conheça os profissionais homenageados na Doe de Coração 2023


Kátia Castelo Branco Machado Diógenes, professora de Fisioterapia da Unifor (Foto: Ares Soares)

Graduada há 16 anos pela Unifor, a fisioterapeuta sempre quis atuar em ambiente hospitalar. Entre cursos de pós-graduação e da área de Terapia Intensiva, foi galgando degraus e experiências em diversos hospitais. Em 2017, assumiu um concurso público no Hospital do Coração, onde passou a atuar em pós operatórios de transplantes cardíacos pediátricos.

A fisioterapia possui uma atuação extremamente importante no pós transplante, com ajustes precisos da ventilação e oxigenação dos pacientes. "Vivenciar tão de perto a experiência de famílias que aguardam a doação de um órgão me faz cada vez mais reconhecer a nobreza da atitude das famílias dos doadores. Doar é, sem dúvida, um ato absoluto de amor", diz Kátia.

Ela é docente do curso de Fisioterapia da Universidade de Fortaleza, doutora em Saúde Coletiva pela Ampla Associação (UFC/UECE/Unifor) e mestre em Saúde Coletiva pela Unifor. Também tem especialização em Fisioterapia em Neonatologia e Pediatria.


Ilana Farias Ribeiro Araújo, egressa do curso de Farmácia da Unifor (Foto: Ares Soares)

Conheceu um laboratório pela primeira vez indo visitar uma tia no trabalho e se encantou com aquele ambiente. Quando terminou o ensino médio, ingressou no curso de Farmácia da Unifor. Durante a Universidade, começou a estagiar logo no segundo semestre, acumulando experiências em várias áreas.

Foi então estagiar no laboratório de HLA, na área de transplantes. Ilana concluiu duas especializações: Hematologia (Hemoce) e Bioquímica e Biologia Molecular (UECE) e é mestre em Patologia pela UFC. “São quase 15 anos trabalhando diretamente com transplante. Hoje, sou coordenadora do laboratório de HLA e recebo estudantes de diversas áreas e residentes”, conta.

Ela já participou de mais de mil transplantes renais. “Sempre vibro a cada nova chance de vida dos pacientes. Atualmente, estamos sempre tentando incluir novos serviços e, com isso, contribuir mais para uma melhora do transplante e da saúde da população em geral”, finaliza.


Clayton Aguiar, professor de Medicina e coordenador das Ligas Acadêmicas da Unifor (Foto: Ares Soares)

Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Saúde Coletiva pela Unifor e doutor em Biotecnologia pela UFC. É especialista em psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), com certificado na área de atuação em psicogeriatria.

Atualmente é professor e supervisor das atividades de extensão do curso de Medicina da Unifor e médico psiquiatra da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, atuando no Hospital e Maternidade Dra. Zilda Arns. Como psiquiatra, atuou no suporte a um grupo que realizava transplantes.

“Tenho uma relação com transplantes desde a época acadêmica, quando em 1988, teve a primeira campanha de conscientização da criação da carteirinha”, recorda. Na área clínica, trabalha muito com pacientes transplantados. Na Unifor, coordena as ligas acadêmicas da Medicina, que contribuem com a conscientização sobre a importância da doação de órgãos.