null Entrevista Nota 10: Cláudia Belém e a melhora da qualidade de vida por meio da voz

Qua, 4 Maio 2022 17:28

Entrevista Nota 10: Cláudia Belém e a melhora da qualidade de vida por meio da voz

Coordenadora do Grupo de Apoio a Pacientes com Câncer de Cabeça e Pescoço na Santa Casa da Misericórdia em Fortaleza, Cláudia Belém especializou-se na reabilitação de pacientes oncológicos e uso de próteses


Cláudia Belém Moura atualmente leciona no curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza, do qual é egressa (Foto: Acervo pessoal)
Cláudia Belém Moura atualmente leciona no curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza, do qual é egressa (Foto: Acervo pessoal)

“Foi amor à primeira vista”. É assim que Cláudia Belém, egressa e hoje professora do curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza — instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz —, descreve sua relação com o trabalho que exerce no atendimento a pacientes na área de oncologia e disfagia.

Coordenadora do Grupo de Apoio a Pacientes com Câncer de Cabeça e Pescoço na Santa Casa da Misericórdia em Fortaleza, ao longo dos anos ela se especializou no cuidado e reabilitação de pacientes que precisaram lidar com a remoção de órgãos do trato fonatório e aderir à próteses. 

Seu trabalho é fundamental para devolver a autoestima e autonomia dos pacientes por meio da voz. “A importância da prótese é que ela dá liberdade e indica a sua identidade. Porque sem voz você não tem identidade e é por isso que ela é tão importante para todos nós”, compartilha uma das pessoas atendidas por ela.

Na conversa com o Entrevista Nota 10, Cláudia conta detalhes sobre o perfil dos pacientes que recebem laringe eletrônica e prótese traqueoesofágica, além de contar histórias que a mantém apaixonada pela fonoaudiologia após quase duas décadas de atuação. Leia na íntegra:

Entrevista Nota 10 - Por ter impacto absoluto na maneira em que nos comunicamos cotidianamente, a Fonoaudiologia está presente em diferentes cenários profissionais. Como se deu a escolha de sua área de atuação? 

Cláudia Belém - A escolha dessa área se deu no último semestre da minha graduação em Fonoaudiologia pela Unifor. Na época, tínhamos uma disciplina voltada ao atendimento de pacientes de cabeça e pescoço que acontecia da Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza. Até ali, eu não sabia ainda que área seguir. Nada havia tocado meu coração até entrar o primeiro paciente pela porta do ambulatório. Aí foi amor à primeira vista. A experiência de poder ver uma pessoa “sem língua”, “ sem laringe”, com tantas cicatrizes, traqueostomia, sonda de alimentação, e poder devolver a ela a capacidade de se alimentar pela boca, respirar pelo nariz, falar, foi decisivo para mim. Vê-los voltar a sorrir, andar de cabeça erguida e reinseridos em suas famílias e sociedade não teve preço. 

Então, ao final do semestre e também do curso, busquei um Centro de tratamento de oncológico que ainda não tinha o serviço de fonoaudiologia para seus pacientes. Com a ajuda da minha professora da disciplina, a Dra. Christina Praça, fiz um projeto, apresentei e batalhei muito, mas implantei o ambulatório de fonoaudiologia em cabeça e pescoço lá, onde permaneci por 14 anos entre atividades clínicas e de gestão.

Entrevista Nota 10 - Como é a rotina no setor de Fonoaudiologia da Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza? Quais as principais demandas da população cearense?

Cláudia Belém - O setor de fonoaudiologia da Santa Casa em que atuo é voltado ao atendimento de pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Atendo pessoas desde o pré-operatório até a reabilitação pós-cirurgias. Os pacientes chegam encaminhados pelo cirurgião de cabeça e pescoço para avaliação e terapia de sequelas decorrentes do procedimento cirúrgico, como alterações vocais (disfonias), paralisias faciais, edema cérvico-facial, alterações da musculatura miofuncional oral, disfunções da deglutição (disfagia), xerostomia/hipossalivação, trismo e afonia (perda da voz) pós-laringectomia total.  

As maiores demandas do serviço são: reabilitação fonatória de pacientes laringectomizados totais; pacientes que realizaram cirurgias de cavidade oral e evoluem com disfagia; e disfonias em função de paralisias de prega vocal.

Entrevista Nota 10 - O atendimento a pessoas com câncer em órgãos do aparelho fonador tem se mostrado uma área forte de atuação do fonoaudiólogo, tendo em vista que seu tratamento pode incluir procedimentos complexos, como a laringectomia (remoção da laringe). Como o profissional de Fonoaudiologia atua na manutenção da autoestima e qualidade de vida desses pacientes, que passam a lidar com limitações na comunicação pela voz?

Cláudia Belém - Eu costumo dizer que o laringectomizado é um paciente muito rico em demandas e o fonoaudiólogo pode ajudar em muitas delas. Vou citar algumas:

  • A reabilitação do olfato e paladar – quando a cirurgia é realizada o paciente recebe uma ostomia respiratória definitiva, ou seja, passa a respirar por um orifício no pescoço. Assim, o ar não passa mais pelo nariz, fazendo com que deixe de haver estímulo no bulbo olfatório e eles percam ou diminuam muito o olfato e consequentemente o paladar.
     
  • Manejo da disfagia e sequelas da radioterapia – Ao perder a laringe, o paciente tem o mecanismo de deglutição alterado e, dependendo da extensão cirúrgica, essa alteração pode ser maior ou menor. Outro fator que vai influenciar na deglutição é a radioterapia, que a maioria deles faz como tratamento complementar. A radiação nessa região provoca hipossalivação (diminuição da saliva), trismo (limitação na abertura da boca) e até edema e fibrose da musculatura envolvida no processo de deglutição.
     
  • Reabilitação fonatória  - Ao perder a laringe, o paciente perde junto a voz laríngea. É errado dizer que essas pessoas perdem a fala, como infelizmente escutamos rotineiramente. A fala é a capacidade do ser humano de se exprimir e comunicar por meio de palavras utilizando os órgãos fonoarticulatórios orquestrados pelo sistema nervoso. A voz é uma parte desse processo e isso tem que ficar claro para o paciente. Costumo articular algumas palavras sem som para ele, para que ele perceba isso.

Existem três maneiras principais de reabilitação fonatória desses pacientes. A primeira é a voz esofágica, que consiste na passagem de ar do meio externo para o esôfago por meio da deglutição, por exemplo. Esse ar é armazenado em uma porção do esôfago e retorna vibrando suas paredes gerando um som que transformamos em palavras e frases. Apesar de ser a mais natural e sem custo, essa é uma técnica de moderado a difícil aprendizado, exigindo do paciente tempo de dedicação, persistência e muito treino. As outras duas maneiras são a laringe eletrônica e prótese traqueoesofágica.

Entrevista Nota 10 - Recentemente, a Santa Casa realizou implantação de prótese fonatória e distribuição de laringe eletrônica pelo SUS, procedimento que, pelo sistema público de saúde, é pioneiro do Estado. O que são esses dispositivos? Como eles funcionam?

Cláudia Belém - A laringe eletrônica é um aparelho movido a bateria recarregável tipo bastão vibrador, que o paciente posiciona no pescoço próximo à garganta ou na cavidade oral, por meio de um adaptador. Ela produz uma voz robótica e distante do padrão vocal habitual, porém, é de fácil aprendizado, perfeitamente compreensível e possibilita maior independência na comunicação.

A prótese traqueoesofágica/ fonatória é considerada padrão ouro na reabilitação. A voz é realizada a partir de uma prótese com válvula unidirecional que permite a passagem do ar impulsionado pelos pulmões para o esôfago, fazendo vibrar produzindo uma voz com tempo fonatório e qualidade próxima da produzida pela laringe. É colocada cirurgicamente e necessita de trocas semestrais (em média), sendo essas ambulatoriais.

Entrevista Nota 10 - Qual o perfil dos pacientes contemplados com implantes eletrônicos e próteses no aparelho fonador? Como se dá sua adaptação e reinsserção social de pacientes?

Cláudia Belém - O perfil dos pacientes atendidos em nosso serviço é variado; porém, a maioria são homens, acima de 50 anos, ex-fumantes e etilistas, advindos do interior do Estado. No entanto, temos pacientes mulheres, e a cada dia surgem pessoas mais jovens, sendo o paciente mais novo que atendi um adulto de 28 anos de idade.

Quanto à laringe eletrônica, a maioria dos pacientes laringectomizados tem indicação de uso, porém, alguns pontos precisam ser observados: boa articulação, velocidade de fala adequado, coordenação motora e desejo real de usar, já que o som é robotizado e o paciente deve estar ciente disso. Ao realizar a entrega da laringe eletrônica, o fonoaudiólogo orienta sobre os componentes do aparelho e a correta utilização. A partir daí, inicia-se o processo de reabilitação e treino fonatório para que o paciente possa tirar o máximo de proveito do equipamento. Treinamos inclusive em situações reais para dar mais confiança a eles e naturalizar ao máximo o processo.

Já a prótese fonatória, mesmo sendo considerada padrão ouro, deve ter a indicação pautada em aspectos importantes, como: avaliação multiprofissional do candidato à colocação; local onde mora (distância do hospital e centro de reabilitação); capacidade de realizar a própria higiene pessoal; destreza manual; capacidade visual; cognitivo preservado; desejo real e consciência dos cuidados necessários. Nesse caso, a fonoaudiologia atua desde a avaliação e orientação pré-colocação ao primeiro atendimento no pós-operatório imediato à colocação, avaliando quanto aos vazamentos na prótese, realizando e orientando quanto à sua higienização e primeiras emissões vocais. Após a alta hospitalar, o paciente permanece em acompanhamento fonoaudiológico para “aprender” a falar com a prótese e reavaliações periódicas para identificar precocemente qualquer alteração que necessite intervenção.

Quanto à reinserção social, independente da maneira de reabilitação escolhida, é incontestável o valor de nossa atuação junto a essas pessoas. Pois, sem voz, a pessoa fica limitada para coisas simples, como chamar alguém dentro da própria casa, realizar compras e socializar com amigos e parentes, além do impacto causado nas questões de trabalho.

Na Santa Casa, coordeno um grupo de apoio para os laringectomizados, vinculado à Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço (ACBG). A ACBG é uma instituição sem fins lucrativos fundada em Santa Catarina por uma laringectomizada total, a Melissa Medeiros, com o objetivo de lutar pelos direitos desses pacientes em todo o Brasil. Foi o empenho dessa Associação que tornou possível esses dispositivos pelo Sistema Único de Saúde, além de outras conquistas importantes para esse público.

Entrevista Nota 10 - Sabemos que pacientes acometidos pela Covid-19 podem apresentar sequelas no trato respiratório e sensorial. O profissional de fonoaudiologia atua em alguma etapa de recuperação dessas sequelas?

Cláudia Belém - Sim. O profissional de fonoaudiologia trabalha em várias etapas, desde a atuação a nível hospitalar até a atuação mais tardia na reabilitação de sequelas relacionadas à disfagia, olfato e voz.

Entrevista Nota 10 - Professora, gostaria de compartilhar algum caso de reabilitação de pacientes que lhe trouxe satisfação pessoal ou profissional?

Cláudia Belém - Pergunta difícil! Lembro do primeiro paciente que atendi e, depois de 18 anos de formada, coleciono muitas memórias emocionantes. Mesmo após tanto tempo, eu ainda sou extremamente empolgada pelo que faço e quero fazer muito mais por esses seres humanos que são minha motivação diária e que me trazem tantas lições de vida. 

Vou compartilhar a resposta de um paciente que havia colocado a prótese fonatória há poucos dias. Eu havia perguntado qual a diferença que a prótese tinha feito na vida dele e ele respondeu: “A importância da prótese é que ela dá liberdade e indica a sua identidade. Porque sem voz você não tem identidade e é por isso que ela é tão importante para todos nós”.

Lembrei de outro caso interessante, que foi o de uma paciente que desde a cirurgia havia perdido o olfato. E ao realizar o treino olfatório em terapia, conseguiu sentir o cheiro do café e disse cheia de orgulho: “agora eu poderei escolher os meus próprios perfumes!”. Então, coisas simples para a maioria de nós, faz toda a diferença na vida deles.  

Tenho muitas histórias. Mas, se deixar, falo o dia inteiro sobre o assunto sem cansar. Então, quero deixar uma dica para os meus alunos e futuros colegas: independente da área que escolham, exercitem sempre a empatia, façam a pergunta “e se fosse eu?”. Imaginem que ali na sua frente poderia ser a pessoa que você mais ama, um pai, uma avó, um irmão, enfim... como você gostaria que ele fosse tratado? Pensem nisso. Quando unimos o conhecimento adequado com o amor pelo que se faz, não tem erro!

Outras histórias de pacientes da professora Cláudia Belém podem ser vistas em seu perfil no Instagram (@claudiabelem.fono)