null Entrevista Nota 10: Marcelo Muller e a desromantização do diretor

Ter, 14 Maio 2019 10:05

Entrevista Nota 10: Marcelo Muller e a desromantização do diretor

Marcelo Muller, diretor, roteirista e professor de cinema da Unifor desde 2017. Foto: Ares Soares.
Marcelo Muller, diretor, roteirista e professor de cinema da Unifor desde 2017. Foto: Ares Soares.

Roteiro. Direção. Narrativas audiovisuais. Expansão do real. Para além das técnicas e tecnologias, são as experimentações e experiências vividas dentro e fora de sala de aula que animam o espírito inovador do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor. É o que sugere o professor Marcelo Muller, coordenador do Laboratório de Mídias Digitais (Labomídia), sobretudo ao elencar alguns dos resultados práticos desenvolvidos por alunos com uma câmera ou um celular na mão durante a disciplina Cine-Experiência.

Diretor, roteirista e professor de cinema da Unifor desde 2017, Muller cursou Mestrado e Doutorado na Universidade de São Paulo (ECA-USP) e também graduou-se na escola livre de Cinema e TV de Cuba. Autor dos roteiros de filmes como “Infância Clandestina” e “Eu te levo”, além de séries televisivas (vide “Brilhante Futebol Clube”), foi o único roteirista brasileiro a receber o Prêmio Coral de Roteiro Inédito de Havana, um dos reconhecimentos mais relevantes para profissionais da área na América Latina.

Em entrevista a seguir, ele diz como todas as expertises acumuladas vêm dialogando com a potência criativa de jovens estudantes instigados a entender o mundo por meio das imagens em movimento e o que Fortaleza, a cidade que escolheu para morar e ter seu primeiro filho, tem lhe dado a conhecer.

Entrevista

Antes de vir para Fortaleza e se tornar professor da Unifor, você ainda passa pela escola de Cuba, um escritório da Disney na Argentina, onde produz para TV,  cursa Mestrado e Doutorado na USP, dirige e escreve seu primeiro longa-metragem de ficção...  Mas gostaria de saber em que a trajetória acadêmica ajudou a pensar atividades ligadas à direção e roteiro... 

Entrei no Mestrado na USP com um projeto para tentar entender o que é que um diretor de um filme faz quando está dirigindo. Porque não é fácil. É muito mais clara a definição do trabalho de um roteirista, de um fotógrafo, de um cara que faz o som. Mas o diretor faz tantas coisas variadas e muda tanto a cada etapa do processo de idealização... Por exemplo, no início do processo ele está escrevendo com o roteirista, depois está tentando levantar o dinheiro para o filme ou produzindo com o produtor. Então qual é o trabalho exato de um diretor? Tem um momento em que o diretor é mais diretor e menos produtor, menos roteirista. Mas o que o diretor faz? Como é que eu explico para o aluno? Conversei com um monte de diretor que eu conhecia, fiz entrevistas sobre isso durante o Mestrado e logo depois entrei no Doutorado para investigar a mesma coisa, mas agora acompanhando o processo. E era interessante ter um maluco no set de filmagem anotando tudo, né?! Descobri, por exemplo, que, durante uma diária de filmagem, só em um terço do tempo o diretor está trabalhando com os atores, dirigindo. O restante do tempo tem a ver com a preparação e muitas vezes o diretor está esperando. Então, a gente fala tanto do plano, daquilo que acontece na tela, mas todo o trabalho está na preparação dele, não naquele momento em que acontece. E eu investigava isso no Doutorado até que viabilizei meu primeiro longa-metragem de ficção com diretor. E tive que fazer uma mudança profunda na tese. No lugar de canalizar para o processo de outros, comecei a trabalhar sobre o meu próprio processo, porque coincidiram as duas coisas. 

E quais os principais resultados dessa investigação então? 

Acho que a primeira coisa é a desromantização da função de diretor, porque tem tanta publicidade em cima do diretor e é tão romantizada a visão sobre ele que parece que o cara ou nasce com isso ou não. Na verdade, a função da direção cinematográfica é tão técnica quanto qualquer outra, em determinado aspecto. Mas aí tem uma série de outras coisas que tem a ver com a criação, com a função de liderança, e como você delega e organiza o trabalho em equipe, principalmente. Qual é o limite entre o que você faz e o que você delega, porque uma equipe de filmagem é tão grande e você vai contando com tantos parceiros e tantas intervenções durante todo esse processo que, no final, essa ideia romântica do artista que faz a sua obra é o pior que pode existir na hora que a gente vai ensinar alguém a dirigir. Na verdade, gosto de pensar numa administração, não o diretor como um administrador, mas aquele que vai moldar um monte de autorias. Ele está fazendo uma grande obra coletiva, por mais que tenha uma visão própria, um caminho marcado, mas isso tem muito a ver sobre como ele agarra o projeto. O que eu realmente acho interessante na abordagem da tese é pensar a direção além desse momento do set de filmagem. A mise-en-scène é que é o objeto central do trabalho do diretor, um dos conceitos mais importantes e polêmicos. A mise-en-scène tem diversas materialidades e é o reconhecimento da complexidade de uma obra artística. Então, fragmentar esse trabalho do diretor, entender o que acontece em cada uma das etapas, pode ser importante para quem está pensando em dirigir ou entender a função de um diretor de uma maneira não romantizada e complexa. Como é que você pensa o teu filme sabendo que ele vai demorar cinco ou seis anos? Entre a primeira ideia antes do roteiro até ele ficar pronto - se der certo – há todo um pensamento estratégico. Muito mais do que “o diretor que decide as coisas”, o diretor, na verdade, influencia o processo, mas o resultado não depende apenas da força ele. E não depende apenas da técnica. Depende de uma série de coisas que a gente não tem controle.

Você acaba se tornando, além de diretor, um roteirista premiado. Como essas funções se cruzam?

Elas são muito próximas. O diretor é um contador de histórias também. Eu sempre olhei a direção como contar histórias, não é o cara que escreveu a história, mas é aquele que está contando para as pessoas. O primeiro longa-metragem que eu escrevi foi com um cara que era meu professor em Cuba. Eu estava chegando da Disney e comecei a escrever com ele e a esposa dele um projeto de um curta-metragem que tinha a ver com a infância dele, onde os pais eram membros da guerrilha e voltaram para combater a ditadura, ao mesmo tempo em que tentaram ter uma vida normal de família. Uma experiência dramática e muito importante para a vida dele. Então nós escrevemos um curta-metragem sobre isso, deu muito certo e, a partir daí, ele me chamou para escrever um longa-metragem. E eu escrevi um longa-metragem, um pouco por acidente, sem pretensão. Esse filme foi muito bem e aí saiu um roteiro premiado, até porque é uma história que tem uma verdade, uma coisa que nem todas as histórias têm. Trabalhei em outros roteiros, escrevi outras coisas, ganhei outros prêmios, mas esse roteiro em especial tem algo muito particular que tem a ver com essa necessidade do diretor de contar uma verdade sobre a sua própria vida, que é confusa, tem muitas emoções desencontradas, tem uma série de questões dele aí com a mãe. Mas que, por outro lado, também tinha o desejo, por mais que fosse muito autoral, de comunicar da melhor forma possível para um público mais amplo. É um filme muito emocionante, porque tem uma história de amor entre duas crianças em um contexto muito explosivo, enfim... Eu me emociono até hoje vendo esse filme.

Mas como é que se forma um roteirista, afinal?

Tem muito estudo, mas também tem muito a ver com formar um hábito de escritura, como formar um hábito de análise narrativa. Tem o conhecimento técnico, tem toda essa coisa, mas o principal é pensar em como se conta uma história. Tem um exercício que eu gosto muito de fazer, faz tempo que eu não faço, que é quando eu estou escrevendo um roteiro e tem uma história completa bem clara, eu gosto de juntar um grupo de pessoas e contar a elas. É como se fosse antigamente, ficar sentado à beira da fogueira e eu vou te contar uma história. E eu gosto de contar a história inteira. Isso demora 40, 50 minutos. E é vendo no olho das pessoas que eu sei se a história está funcionando ou não. E é vendo do meu relato se eu me confundo, se eu sei essa história que eu conto se está funcionando ou não. Tem essa coisa de gostar de contar a história e de provocar reações nas outras pessoas. Colocar emoções nas pessoas.

E a formação é múltipla?

A formação é múltipla, mas eu, por exemplo, estudei roteiro na USP, mas não da maneira que estudei direção. Fui fazendo, fui aprendendo. Tem que estudar, mas tem que encontrar bons roteiristas, bons contadores de histórias que ajudem um pouco nisso. Acho que a bibliografia é restrita, mas acho que no Brasil hoje tem bons cursos, temos bons professores e bons roteiristas. E tem uma coisa que eu acho importante, que é criar o hábito da escrita e ter a capacidade de entender a razão e os motivos das ações das pessoas. Aquela coisa de calçar o sapato do outro. Quando a gente está escrevendo tem que calçar o sapato do personagem, seja ele quem for. Você não pode escrever só sobre pessoas que gosta, porque se não os filmes vão ficar muito chatos. Tem aí um exercício de empatia com tudo e com todos que acho muito importante.

Como se dá a formação na Unifor em termos do cruzamento de teoria e prática, já que como roteirista você aprendeu fazendo?

Todos os semestres os alunos da Unifor vivenciam uma experiência. E já no primeiro semestre eles fazem um filme ensaio. Um filme de três minutos, curtinho. Sempre sobre a cidade. Pode ser sobre um aspecto da cidade, pode ser sobre a relação deles com algum aspecto da cidade. E aí a disciplina também serve para eles irem às ruas. Porque quem chega do ensino médio de uma escola particular normalmente teve aquela vida: casa, escola, casa, shopping de vez em quando, casa de alguém. Mas não sei se algum dia sentou em um banco de praça ou foi andando ou subiu em um ônibus. Então tem todo esse processo quase de amadurecimento e reconhecimento da cidade. E aí eles fazem o primeiro filme que, muitas vezes, é feito com celular. O que importa, realmente, é a criação desse relacionamento, a ferramenta audiovisual como mediadora dessa relação com a cidade. 

Entre os filmes experiências já realizados, o que você poderia destacar?

Um dos alunos percebeu que o prédio onde ele mora, no Parque do Cocó, não deveria existir. Não é uma maluquice quando você percebe que o teu lugar na cidade está errado? Você invadiu uma área que não deveria ser ocupada. Tem outra aluna que fala sobre o reconhecimento da cidade a partir do momento em que ela começou a pegar o 075, o ônibus que vai daqui até a UFC. E como ela amadureceu nesse processo. É um filme superbonito, porque ela conta em primeira pessoa. Então a gente tem os Núcleos Criativos e, no momento, cerca de 15 projetos criados e realizados pelos estudantes, em estágios diferentes. Já tem uma série para TV em desenvolvimento, estamos terminando a primeira temporada e já pensando nas outras para apresentar ao mercado. Isso vai ficar pronto agora em junho. Uma série sobre zumbis que são uma metáfora dessa vida sem motivação. Tem ainda um projeto de produção de audiovisual para surdos, que começou aqui também e recebeu um prêmio nos Estados Unidos, na Fundação Clinton. A ideia é trabalhar diretamente com estudantes surdos do ensino médio, a fim de que possamos produzir com eles e não só para eles, ou seja, ir além da ideia das traduções. É um projeto de capacitação em audiovisual onde se trocam experiências. E tem um projeto que começou ano passado e se chama “Por que é assim?”. A ideia era construir uma série de televisão, sobre ciência, onde as respostas fossem encontradas pelas próprias crianças. E não fossem respostas dadas por adultos, como é de praxe. Nas séries tradicionais, a criança pode até levantar o problema mas, no final, ele procura um cientista ou um pai para dar a resposta. O roteiro considera um processo de investigação da própria criança, para que ele chegue à conclusão. Então, a gente prioriza algum tipo de inovação, que pode ser na linguagem, na maneira de realizar, na técnica ou no conteúdo, que ocupe ou que proponha algo que vá além daquilo que o mercado já propõe. E a questão da acessibilidade é muito importante para a Unifor, há uma tradição em se preocupar com isso. 

E quanto às pesquisas desenvolvidas entre os próprios professores, com colaboração dos estudantes? O que deve sair do Labomídia?

Tem uma pesquisa em realidade virtual voltado para a segurança viária onde a pessoa tem uma sensação de imersão. Você vive uma simulação, uma coisa que é melhor não viver na vida real, e muda de atitude a partir disso. Porque a experiência da realidade virtual é muito impactante. Daqui a 15 dias, por exemplo, vamos filmar um resgate do SAMU. Simular a experiência de estar lá, deitado no chão, após um acidente, esperando chegar a ambulância para receber todo aquele procedimento. Pelo menos a experiência visual e sonora disso a gente pode utilizar. A gente está fazendo um outro projeto em realidade virtual para o mestrado da Enfermagem, a fim de diminuir o tempo de internação, dando a possibilidade de a pessoa sair do hospital, imergindo em outras paisagens, sem, de fato, sair. Estamos começando a entender como é que isso funciona, como é que se faz esse tipo de mídia, porque é completamente diferente do que a gente faz no cinema.