null Um basta à violência contra as mulheres

Ter, 17 Agosto 2021 15:40

Um basta à violência contra as mulheres

Entre avanços e desafios, sanção da Lei Maria da Penha completa 15 anos em 2021 


Enfrentamento à violência doméstica deve ser uma luta de toda a sociedade. Ligue 180 para denunciar (Foto: Ares Soares)
Enfrentamento à violência doméstica deve ser uma luta de toda a sociedade. Ligue 180 para denunciar (Foto: Ares Soares)

Em briga de marido e mulher se mete a colher sim. Sobretudo após a sanção da Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006), que em agosto de 2021 completa 15 anos entre avanços e desafios. Criada para enfrentar atos de violência física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral contra as mulheres, a norma é considerada uma das três leis mais avançadas do mundo e tem inspirado indivíduos, governos e sociedade civil organizada a pensar e agir para combater o feminicídio no Brasil, que hoje já figura na lista de crimes hediondos e pode gerar penas de 12 a 30 anos de prisão aos agressores. 

Endurecimento que se justifica a cada estatística gerada: em 2020, os índices de feminicídio cresceram 22,2% em comparação com os meses de março e abril de 2019. Mais: de acordo com o último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é assassinada a cada seis horas no Brasil em meio ao isolamento social. Nos quatro cantos do país, a Ciência não foge à luta para a redução de índices ainda alarmantes. E não é diferente na Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, onde ensino, pesquisa e extensão abraçam a problemática por meio de estudos e ações voltados ao enfrentamento à violência contra a mulher e à reflexão crítica em torno da Lei Maria da Penha. 

Foco no Programa Cidadania Ativa (PCA), criado em 2011 no âmbito do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Unifor com o intuito de educar para uma cultura de paz e levar conhecimento jurídico a comunidades vulneráveis. É sob seu guarda-chuva que nasce o projeto Direitos Humanos no Combate à Violência Doméstica, ampliando e amplificando extra-muros o debate gerado em sala de aula acerca das atualizações da Lei Maria da Penha e todo um ciclo de diferentes tipos de violência contra a mulher que recrudesceram a olhos vistos em um contexto de pandemia, onde há restrição do ir e vir e, consequentemente, menor convívio social. 

“Por meio de palestras, capacitações, aulas expositivas, cartilhas, podcasts, lives e grupos de leitura, a Unifor vem contribuindo com a conscientização da comunidade acadêmica e da população em geral acerca dos direitos humanos e direitos da mulher, em particular. É preciso que cada vez mais cedo tenhamos acesso à informação de qualidade para identificar uma situação de violência vivida em casa e ter proteção. Por isso, no PCA, elaboramos uma cartilha para a rede escolar, esclarecendo estudantes de escolas públicas e privadas sobre os normativos da lei Maria da Penha e tentando inclusive desmistificar algumas frases típicas da cultura do patriarcado: ‘mulher que apanha é porque gosta’, por exemplo. Não é isso: a mulher fica presa ao ciclo de violência por medo, dependência econômica ou psicológica e essas camadas de opressão precisam ser melhor e massivamente compreendidas”, aponta a coordenadora do PCA e professora do curso de Direito da Unifor, Ana Paula Araújo

Para ela, além de oferecer mecanismos e ferramentas para que o Poder Judiciário proteja mulheres vítimas de violência e puna agressores, a legislação ajudou a trazer o assunto para o centro do debate público, a ponto de levar à Lei Maria da Penha a ser reconhecida como uma “lei que pegou”. Mas ainda é preciso avançar. “Urge o desenvolvimento de uma política pública de educação para os direitos da mulher e faz-se necessário a inclusão, em todos os níveis educacionais, de conteúdos ligados aos direitos humanos e questões de gênero, com ênfase no enfrentamento à violência doméstica. Precisamos demandar dos poderes públicos municipal, estadual e federal que incluam essas temáticas nas matrizes curriculares e de forma transversal. A conscientização começa na base, esclarecendo sobre as tipologias do crime, as formas de denúncia e a rede de proteção disponível em cada estado e município”, aponta a professora. 

“Precisamos de políticas públicas integradas para a conscientização de todos os tipos de violência, já que não se trata só da física, mas da psicológica, da moral, da patrimonial e da sexual” - Ana Paula Araújo, professora do curso de Direito da Unifor. 

É também como política de Estado que Ana Paula cobra uma formação específica do servidor no âmbito da própria segurança pública para melhor identificar e tipificar crimes de feminicídio, aqueles cometidos pela simples condição de ser mulher. “Faz toda diferença o processo de acolhimento da vítima e também do agressor, ele que muitas vezes comete violência sexual, patrimonial ou moral, mas não se vê como um violador quando proíbe a mulher de trabalhar fora, quando obriga a mulher a fazer relação sexual sem ela desejar ou quando confisca o celular e proíbe o contato com familiares e amigos. A cultura machista foi naturalizada e está arraigada na sociedade, então é preciso trabalhar com justiça restaurativa para que o agressor se veja como tal e possamos pensar em reverter essa escalada de violência”, atenta. 

Um alento: a campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica. Lançada em julho de 2020, a partir de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a ideia central é que a mulher possa pedir ajuda em farmácias, órgãos públicos e agências bancárias exibindo um sinal vermelho desenhado na palma da mão. As vítimas já podem contar com o apoio de cerca de 15 mil farmácias, prefeituras, órgãos do Judiciário e agências do Banco do Brasil em todo o país. Nesses locais, atendentes, ao verem o sinal, imediatamente acionam as autoridades policiais.

“Foi uma ação de extrema importância, já que, durante a pandemia, muitas mulheres estavam confinadas em casa com seu próprio agressor, sem comunicação com a sociedade, já que muitas vezes ele retira dela o celular. Dados do próprio Fórum Nacional de Segurança Pública indicam que, nesse período, tivemos um aumento de violência da ordem de 30% em alguns estados e 50% em outros. Assim é que o X vermelho na mão virou símbolo de violência doméstica e a própria inclusão da campanha como um programa oficial, em 2021, veio despertar toda a sociedade para o problema e as alternativas de enfrentamento que, dentro e fora do âmbito judiciário, precisam ser construídas”, reforça a professora que, não à toa, também reivindica mais Casas da Mulher Brasileira, mais Delegacias da Mulher, mais CREAS, mais Juizados especializados.

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Ciente do poder embutido em cada palavra alusiva às suadas conquistas feministas, a advogada especialista em direitos das mulheres, Katarina Brazil, não cansa de repetir: é papel do Estado punir a violência de gênero. Reafirmar para não esquecer que antes da sanção da Lei Maria da Penha, em 2006, o crime de violência contra a mulher era considerado de menor potencial ofensivo. Que se aplauda, portanto, cada avanço oriundo da norma alçada à marco histórico, como aquele retroativo a 2015 (Lei 13.104), que deu nova redação ao artigo 121 do Código Penal, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, assim como sua inclusão no rol dos crimes hediondos. Ou ainda o mais recente desdobramento, referente à Lei 14.188 de 2021, que, além de criar o programa Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica e Familiar, institui o crime de violência psicológica contra a mulher, legitimando a condenação de agressores por conta de ameaça verbal, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou investidas afins. 

“A destacada popularidade da Lei Maria da Penha no Brasil não encoberta, no entanto, as muitas dificuldades no âmbito da justiça para aplicá-la da forma ideal e de modo mais protetivo. Tudo porque o próprio Direito também foi sendo construído historicamente de uma forma machista. Portanto, há todo um pensamento misógino enraizado na mente dos operadores do Direito, juízes, promotores e delegados que precisa ser combatido paralelamente. Muitas mulheres agredidas não denunciam justamente porque temem o tratamento por parte do sistema de justiça. Então, há muito o que avançar e faltam políticas públicas e redes de apoio para que elas saiam do ciclo de violência e se sintam protegidas e mais seguras para denunciar”, opina a advogada que também é egressa do curso de Direito da Unifor.

“O papel do homem no enfrentamento à violência contra a mulher passa por se perceber machista e dotado de uma tendência à dominação masculina que é cruel e perigosa demais para as mulheres” - Katarina Brazil, advogada especialista em direitos das mulheres. 

Katarina reforça: o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. E tão trágico quanto a classificação é a constatação de que a maioria dos homens sequer se percebe como violento em meio a um sistema patriarcal histórico. “Temos hoje no país uma pandemia dentro da pandemia que é a violência doméstica. Mas estudos já demonstram a eficácia de políticas públicas de prevenção visando a reeducação dos agressores, assim como quer a Lei 13.984, de 2020, que estabelece como medidas protetivas de urgência a freqüência do agressor, de forma obrigatória, no centro de reabilitação para acompanhamento psicossocial”, defende a advogada. 

De cátedra, Katarina sabe que difícil não é criar leis, mas mudar a cultura de violência contra a mulher. E não só no ambiente doméstico. Daí porque a novíssima Lei 14.192/2021, aprovada no último dia 05 por unanimidade no Senado, também merece destaque ao estabelecer regras para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, criminalizando abusos e incorporando conquistas aos estatutos partidários. “No Brasil, tentar afastar as mulheres dos espaços públicos de decisão, como a política, é um triste cacoete. Temos mulheres sendo ameaçadas de morte no exercício de seus mandatos. Isso aconteceu com Marielle Franco e vem acontecendo inclusive com mulheres trans em razão de seus mandatos. Essas mulheres são sujeitos de direitos que historicamente também foram objetificadas no campo intrapartidário, então os partidos políticos precisam encampar a luta”, aferra a advogada que abraçou a causa justo após cursar mestrado na Unifor e escolher como tema de investigação a sub-representação das mulheres na política.

Denuncie. Eis o chamado que a professora da disciplina Direito Penal II do curso de Direito da Unifor, Yasmin Ximenes Pontes, faz como educadora e também delegada de Polícia Civil do Ceará. “Há muito o que comemorar a partir da Lei 11.340 de 2006, uma lei protetiva que tem nome de mulher e homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu tentativa de feminicídio e ficou paraplégica. Lembremos: o agressor era o próprio marido, que por quase duas décadas respondeu pelo crime em liberdade. Então, cabe ao Poder Judiciário a aplicação do direito ao caso concreto mas é importante denunciar através do número 180 ou Disque 100 à delegacia de polícia para que seja instaurado o inquérito policial e a apuração da responsabilidade criminal do infrator ou infratora”, convoca, lembrando que hoje mesmo as denúncias anônimas ou de terceiros são ferramentas legítimas no combate à violência doméstica.   

“A revolução tem que ocorrer dentro dos lares brasileiros, a partir da forma como criamos nossos filhos e filhas. Precisamos defender e praticar uma educação inclusiva e respeitosa, preparando o terreno para uma nova geração com autoconhecimento de direitos humanos e respeito à diversidade” - Yasmin Ximenes Pontes, educadora e delegada da Polícia Civil do Ceará. 

Para Yasmin, a paz começa dentro de casa. E é por isso que a legislação precisa ser amplamente divulgada nas universidades, nas escolas, instituições e junto às famílias. A regra vale para quem forma crianças e jovens. “Precisamos formar profissionais de excelência e com vasto conhecimento em Direitos Humanos. É o que temos feito na Unifor, uma sensibilização a partir do acesso à realidade fática, aproximando os estudantes do problema real para que se sintam responsáveis e cúmplices diante desse grande desafio que é reduzir os índices de criminalidade contra as mulheres”, reforça a professora que vibra com a multiplicação de artigos científicos e monografias voltadas ao tema. 

Para aderir à luta é preciso conhecer a fundo a mazela sim. É o que também pensa a professora do curso de Direito, Ana Paula Araújo, que semestre passado coordenou um grupo de estudos para ler e refletir sobre o livro Abuso – a cultura do estupro no Brasil, da jornalista - e sua xará - Ana Paula Araújo. “Essa leitura em sala de aula deu carne à realidade fria dos números, que apontam claramente: quem mais comete a violência contra a mulher ou é o companheiro ou ex companheiro. Quanto à violência sexual, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 aponta: no Brasil, 60,6% das vitimas são crianças até 13 anos, 73,7% são incapazes, 86,9% são mulheres e em 85,2% dos casos o autor é conhecido da vítima. O que isso mostra? Que as jovens e mulheres não estão protegidas em suas casas, ao contrário, a casa é um lugar de violação”, indigna-se, ao mesmo tempo em que mobiliza estudantes para as próximas oficinas online junto à rede de ensino pública e privada do Ceará e planeja novas lives educativas.

Aos 18 anos, o estudante do 4° semestre do curso de Direito da Unifor, Enzo Farias Freire, não esconde o orgulho ao descobrir que a ONU considera a Lei Maria da Penha a terceira melhor e mais avançada legislação do mundo no combate à violência domestica. “Como profissional do Direito em formação me anima sim saber que temos uma legislação exemplar no Brasil para  que agressores de mulheres não fiquem impunes. Há um dado de 2015, também animador, que vem do IPEA e constata que, com a lei, a taxa de feminicídio no país diminuiu cerca de 10%. Sabemos que os números ainda são elevados mas se não houvesse a Lei Maria da Penha seriam ainda maiores”, observa.

Para ele, além de fazer cumprir a legislação, é preciso que mais mulheres – e de todas as classes sociais – tenham acesso à Justiça e entendam como de fato funciona a Lei Maria da Penha. “Há de se considerar as diferentes realidades socioeconômicas das mulheres brasileiras e assim usar os mais diversos canais de comunicação para fazer chegar a informação de qualidade a elas. Muitas não conhecem o alcance e o poder dessa legislação, não sabem que existe uma rede de apoio com atendimento humanizado, como a Casa da Mulher Brasileira, e sofrem caladas sem imaginar que uma simples denúncia, que inclusive pode ser feita pela internet, é o início do cessar daquela dor”, acentua. 

“Cabe a nós promover a igualdade de gênero entre nós mesmos e começar fazendo isso policiando a própria linguagem. Ou seja, evitando os comentários machistas nas rodas de conversa com os amigos e chamando a atenção deles para também reverem conceitos”- Enzo Farias, estudante de Direito da Unifor. 

Ciente de que os homens têm papel fundamental no enfrentamento à violência contra a mulher, Enzo também revê padrões e comportamentos historicamente atrelados ao gênero masculino. “Aprendi no Programa Cidadania Ativa que não podemos ser coniventes nem nos omitir frente a qualquer postura machista. A nossa mudança começa a partir de pequenos atos e falas e da quebra de certos paradigmas, superando modelos de superioridade em relação às mulheres que muitas vezes vêm de berço. O homem é mais poderoso do que a mulher e pode fazer o que quiser com ela? Não. Ambos são seres humanos e estão em pé de igualdade”, sustenta.

Foi por vivenciar no próprio ambiente doméstico violências contra a mulher que a estudante do curso de Direito da Unifor, Paloma Benício, 26, quis usar a própria voz e seus conhecimentos acadêmicos a favor da causa, integrando o Programa Cidadania Ativa. Com três artigos publicados sob orientação da professora Ana Paula Araújo e participação direta na elaboração de podcasts e cartilhas educativas sobre o tema, ela aposta na produção científica como arma de combate à violência doméstica.

“Os debates e produtos gerados internamente nas universidades fortalecem a luta ao gerar conscientização e compartilhamento de ideias e informações junto a comunidades vulneráveis que de outro modo não acessariam o conhecimento jurídico” - Paloma Benício, estudante de Direito da Unifor.  

O mergulho acadêmico nas raízes da violência também já levou a estudante a planejar o futuro profissional. Paloma quer atuar profissionalmente na defesa dos direitos das mulheres e ter como especialidade a violência doméstica. Paralelamente, também vê na docência um instrumento de poder e engajamento. “As universidades precisam gerar mais pesquisas sobre o tema e investir em ações de impacto social que incidam sobre os números aterradores ligados ao feminicídio no Brasil. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou dados de 2020 apontando o Ceará como o 7º colocado com mais denúncias de violência contra a mulher. É papel da Ciência, assim como é do Estado, olhar e tratar dessa ferida social”, sublinha. 

Para a estudante do 6º semestre do curso de Direito da Unifor, Ana Beatriz Pinheiro, 20, há que se olhar ainda para toda uma infraestrutura de acolhimento às vítimas da violência que não condiz com o país de tamanho continental que é o Brasil. “Apenas 7% dos municípios brasileiros possuem delegacias de atendimento à mulher. E somente 10 municípios do Ceará possuem delegacias de atendimento à mulher. Isso é insuficiente frente às demandas que existem e demonstra inclusive como a Lei Maria da Penha não atinge a população de maneira equitativa. Considero que tanto essa rede de apoio como a própria legislação precisam ser mais difundidas em nosso país”, aferra.

“Queremos a expansão das delegacias das mulheres, a construção de mais casas de apoio, a divulgação ainda mais abrangente de leis e métodos de denúncia, a democratização do debate em todos os níveis da educação, contemplando as regiões mais carentes” - Ana Beatriz Pinheiro, estudante de Direito da Unifor.