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Ter, 7 Junho 2022 13:47

Entrevista Nota 10: Francisco Bariffi e a defesa dos direitos das pessoas com deficiência

O professor da Universidade Carlos III (Madri/Espanha) e da Universidade Nacional de Mar del Plata (Buenos Aires/ Argentina) pesquisa sobre Direitos Humanos e fala sobre os avanços em relação aos direitos das pessoas com deficiência


Aos alunos de Direito, ele orienta: “Olhem para a tecnologia do ponto de vista legal sem nunca perder de vista a igualdade entre as pessoas” (Foto: Ares Soares)
Aos alunos de Direito, ele orienta: “Olhem para a tecnologia do ponto de vista legal sem nunca perder de vista a igualdade entre as pessoas” (Foto: Ares Soares)

“Nada sobre nós sem nós”. O lema adotado durante os trabalhos para a elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada em 2007, continua sendo central para as discussões e a conquista de avanços sobre o tema, ressalta o professor Francisco Bariffi, da Universidade Carlos III (Madri/Espanha) e codiretor do Centro de Pesquisa e Ensino em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Mar del Plata (Buenos Aires/ Argentina). 

Bariffi, que coordena a Rede Ibero-Americana de Peritos sobre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, esteve na Universidade de Fortaleza em maio para participar do IV Encontro Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, realizado no Teatro Celina Queiroz.

Apesar dos avanços obtidos desde a promulgação da Convenção, para o professor, o início da pandemia de Covid-19 trouxe retrocessos para as pessoas com deficiência, que em muitas situações acabaram sendo preteridas em relação aos cuidados em saúde.

“Viemos de um modelo de institucionalização e de segregação na qual a deficiência estava fora da sociedade, estava invisibilizada, de onde tínhamos medo de interagir com pessoas com deficiência por não saber quais eram os ajustes necessários. Conhecer a realidade das pessoas com deficiência, conhecer os apoios de que necessitam e conhecer seus direitos é o melhor que podemos fazer socialmente para incluí-las”, destaca Francisco Bariffi.

O IV Encontro Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD), por meio do Grupo de Estudo e Pesquisa: Direito Civil na Legalidade Constitucional. O Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza está com inscrições abertas para seus cursos de Mestrado e Doutorado até o dia 10 de junho. O programa tem conceito 6 na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e está entre os melhores do Brasil. 

Entrevista Nota 10 - As mesas do IV Encontro Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, evento que o trouxe a Fortaleza, contaram com profissionais com deficiência, fazendo valer o lema “Nada sobre nós sem nós”. Poderia discorrer sobre o simbolismo de medidas como essa para a luta pelos direitos das pessoas com deficiência?

Francisco Bariffi - Bem, este lema é muito importante: “nada para nós sem nós”. A origem desse fenômeno pode ser encontrada no processo de negociação da própria Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência das Nações Unidas, que ocorreu entre 2001 e 2006. A negociação de um tratado internacional é uma esfera diplomática na qual estão representados os Estados e que normalmente é reservado justamente aos Estados. No entanto, no processo de negociação da Convenção, se fazem presentes a sociedade civil, as pessoas com deficiência, que estiveram presentes com a bandeira do “nada para nós sem nós”. E conseguiram, com razão, que no processo de negociação, sem prejuízo do fato de os Estados serem os únicos que tiveram voto, em cada momento da negociação, fosse dada a palavra às pessoas com deficiência. E o que aconteceu? Ao contrário do que se supõe na crença popular e no preconceito social, especialistas e diplomatas internacionais desconheciam as necessidades das pessoas com deficiência. E foi justamente por meio da participação e das apresentações feitas por pessoas com deficiência que nasceram as principais disposições e as principais mudanças de paradigma da Convenção. 

É por isso que hoje se diz que a Convenção é o mais alto padrão internacional e reflete as necessidades e a visão das próprias pessoas com deficiência. Muitas disposições da Convenção, por exemplo, o artigo 12 sobre o reconhecimento da capacidade jurídica, não teriam sido possíveis sem a participação de pessoas com deficiência. O processo de negociação demonstrou que a participação ativa das pessoas com deficiência não é apenas positiva, mas essencial para garantir os direitos dessas pessoas.

Entrevista Nota 10 -  O senhor atua na Rede Ibero-Americana de Peritos sobre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que avanços mais relevantes podemos citar em relação à redução do isolamento e contra a discriminação às pessoas que vivem nessa situação?

Francisco Bariffi - Esta rede foi criada em 2010. É uma rede acadêmica interuniversitária que inclui universidades do Brasil, Argentina, Peru, Colômbia, México, Espanha e também do Chile. E originou-se para facilitar e promover a implementação da Convenção em nossos sistemas nacionais por meio da cooperação e do desenho de estratégias comuns. A rede trabalhou em vários projetos, mas talvez a área de maior desenvolvimento tenha sido a implementação do artigo 12 da Convenção em matéria de capacidade jurídica das pessoas com deficiência.

Em 2010, a Rede iniciou um mapeamento, um estudo de nossa legislação sobre capacidade jurídica para ver sua compatibilidade ou incompatibilidade à luz da Convenção e  concluiu, como era esperado, que nossos sistemas não eram compatíveis, pois contradiziam o que estabelecia a convenção. Isso gerou boas práticas ou estudos para promover a implementação em nossos sistemas nacionais.

Em decorrência disso, talvez não seja por acaso que, nos últimos dez anos, a grande maioria dos países membros da Rede já implementou profundas reformas legislativas nos termos do artigo 12. O primeiro foi a Argentina com a reforma do Código Civil; depois o Brasil, com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, embora não tenha reformado o Código Civil. Ou seja, há uma incompatibilidade entre o Estatuto e o Código Civil. Mas o Brasil implementou a reforma, a Argentina também. Então o Peru reformou toda a sua legislação e a Colômbia seguiu. E muito recentemente, no ano passado, também aconteceu isso na Espanha. Todos esses países reformaram especificamente sua legislação, códigos civis, para adaptá-la à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. E acredito, de certa forma, que o trabalho da rede tem sido um elemento muito importante para gerar essas mudanças.

Entrevista Nota 10 - Promulgada em 2007, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência visa promover, proteger e assegurar o exercício pleno dos direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência. Como os operadores do Direito e a academia têm contribuído para que a efetivação desses direitos se dê de forma mais célere e qual a importância de eventos como esse da Unifor para levantar essa discussão ?

Francisco Bariffi - Sim, eu acredito que a primeira chave tem sido o trabalho interdisciplinar, ou seja, em geral, as universidades e a academia têm trabalhado historicamente dentro de laboratórios sem conexão comunitária. A Rede (Ibero-Americana de Peritos sobre a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) leva um pouco esse lema, não só para incluir as pessoas com deficiência, mas para que em todos os trabalhos da rede suscitem sempre a consulta ou a participação ativa das pessoas com deficiência. Então foi possível articular, conectar a academia com o setor público, com a sociedade civil e até muitas vezes com o setor privado, empresas. Acho que essa foi justamente uma das chaves do sucesso, de garantir que os resultados não ficassem em publicações, mas em ações concretas.

Agora, você estava me perguntando sobre esse tipo de encontro (IV Encontro Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência). No âmbito da rede, foram gerados inúmeros encontros, o que permitiu, por um lado, conhecer as diferentes realidades nacionais e, ao mesmo tempo, estabelecer linhas de trabalho comuns, harmonizar, estabelecer critérios mínimos. Note-se também que o início da pandemia praticamente obrigou as nossas sociedades a implementar sistemas de comunicação como as plataformas Zoom ou Meet, e simplesmente dizer que precisamente esta rede, que era uma rede universitária, já desde 2010 trabalhava com ambos. E a verdade é que a virtualidade do trabalho, tanto presencial como virtual, de forma constante, tem sido, penso eu, um dos elementos fundamentais para alcançarmos resultados.

Entrevista Nota 10 - A ONU estimava, em 2018, que mais de um bilhão de pessoas no mundo viviam com algum tipo de deficiência. Como, na prática, podemos, como cidadãos comuns, nos engajar e contribuir também com essa causa?

Francisco Bariffi - Acredito que a convenção estabelece no artigo 8, sobre a tomada de consciência, uma disposição muito importante que tem a ver, por um lado, que as pessoas com deficiência conheçam seus direitos, mas também, em uma dimensão, diferente que a sociedade conheça a realidade e a diversidade das pessoas com deficiência. Viemos de um modelo de institucionalização e de segregação na qual a deficiência estava fora da sociedade, estava invisibilizada, de onde tínhamos medo de interagir com pessoas com deficiência por não saber quais eram os ajustes necessários. Conhecer a realidade das pessoas com deficiência, conhecer os apoios de que necessitam e conhecer seus direitos é o melhor que podemos fazer socialmente para incluí-las. Creio que a forma mais natural para essa tomada de consciência, os que somos maiores evidentemente temos de incluí-los, um elemento fundamental é a educação inclusiva. À medida na qual a deficiência esteja presente na aula, esteja presente na escola, no grupo de crianças, a deficiência se naturaliza e a atuação e a resposta social é absolutamente inclusiva.

Entrevista Nota 10 - A Agenda 2030 busca não deixar ninguém para trás e representa um compromisso para reduzir a desigualdade e promover a inclusão social, econômica e política de todos. Que papel os ODS têm como pacto coletivo para garantir mudanças sociais efetivas e boas práticas, especialmente para pessoas com deficiência? Como essa agenda está atrelada ao tema da deficiência?

Francisco Bariffi - Eu creio que a pergunta não é “o que se pode aproveitar o discurso relacionado à deficiência em relação aos ODS” ou se não é ao revés: “O que pode aprender os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do discurso da deficiência?”. Por que digo isso? Porque o setor relacionado à deficiência sempre promoveu ações de inclusão de um grupo muito específico. Esses tipos de ação claramente beneficiam não somente esse grupo, mas também toda a sociedade, desde a educação inclusiva, desde a acessibilidade, desde a acessibilidade comunicacional. E agora encontramos justamente que o discurso da deficiência na Convenção promove mais do que as pessoas com deficiência, um entorno, uma sociedade mais inclusiva, de desenvolvimento sustentável. Então, acredito que são justamente os direitos das pessoas com deficiência e o discurso da deficiência que nutrem e dão fundamentos valiosos aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para, obviamente, alcançar uma sociedade melhor para toda a humanidade.

Entrevista Nota 10 - Desde 2020, com a crise decorrente da pandemia de Covid-19, em países como o Brasil em vários outros em desenvolvimento, os habitantes tiveram queda na qualidade de vida e acesso aos direitos básicos reduzido. Em relação aos direitos das pessoas com deficiência, o senhor considera que houve alguns retrocessos? Por quê?

Francisco Bariffi - Infelizmente, a pandemia muito rapidamente revelou dados muito preocupantes em relação às pessoas com deficiência nos primeiros quatro meses: cerca de 80% das mortes por Covid estavam relacionadas a algum tipo de deficiência. Na verdade, nossos sistemas sanitários demonstraram ser pouco inclusivos. Foram implementados protocolos de ação diante da escassez de recursos. Por exemplo, diante da falta de respiradores, da falta de suprimentos médicos, onde os hospitais começaram a excluir e a deixar de lado os idosos e as pessoas com deficiência, como se a vida das pessoas com deficiência tivesse menos valor e que, diante do dilema de recursos escassos, deveria ser atribuído apenas às pessoas sem deficiência. 

Muitas das pessoas com deficiência que necessitam de reabilitação e cuidados de saúde constantes, de um dia para outro se viram impossibilitadas de frequentar os hospitais, de ter acesso aos serviços. Foram excluídas e acredito que houve muitos retrocessos e sobretudo, lamentavelmente, muitas das vidas perdidas foram em detrimento das pessoas com deficiência. Sem dúvida, entre os grupos populacionais mais afetados, que tiveram mais baixas por esta pandemia estavam as pessoas com deficiência, o que nos convoca, penso eu como sociedade, a repensar as estratégias de ação em situações de emergência.

Outro artigo importante da Convenção, que parecia um artigo sem muita importância, que é o artigo 11, levanta a necessidade de os Estados enxergarem, para garantir a igualdade em situações de emergência humanitária ou conflitos armados. Eles estavam justamente tentando prever esse tipo de ação e os Estados ignoraram, não havia protocolos. E agora, por exemplo, na Europa, estamos vendo isso claramente com o conflito bélico na Ucrânia, onde as pessoas com deficiência também estão sendo deixadas para trás. O lema que surge do paradigma dos ODS é que as pessoas com deficiência não ficam para trás, não sejam esquecidas. Mas creio justamente que esperemos que esta feia experiência da pandemia nos sirva como sociedade a repensar nossas prioridades no momento de situações de crise que infelizmente acreditamos que continuarão acontecendo.

Estamos diante de um mundo muito mutável, muito mutável sob muitos pontos de vista, e é preocupante neste justamente caso que os grupos mais vulneráveis ​​sejam os que sempre pagam o pior preço. As crises aumentam o fosso, geram maiores desigualdades obviamente, entre os grupos mais vulneráveis. Aconteceu entre países e depois, dentro dos países, entre os diferentes grupos populacionais.

Entrevista Nota 10 - Então constatamos que os países não estavam preparados para essa situação tão crítica?

Francisco Bariffi - Exatamente. Não estão preparados. Quando o principal objetivo de qualquer país deveria ser proteger sua população, muitos países mostraram que estavam mais preocupados em proteger suas empresas, suas empresas farmacêuticas, seus interesses nacionais, suas fronteiras, e não os seus cidadãos. Acho que é uma triste lição que aprendemos com a pandemia. É uma lição que aprendemos... Não sei se aprendemos. A verdade é que é uma incerteza se como humanidade e como países seremos capazes de aprender com nossos erros nos últimos dois anos.

Entrevista Nota 10 - Que mensagem o senhor deixaria para os alunos que estão se graduando em Direito?

Francisco Bariffi - Obviamente, o Direito, como tudo na atualidade, está transversalmente afetado pelas novas tecnologias. Acho que no Direito também a revolução digital vai gerar mudanças profundas nas relações de poder, nas relações de poder do Estado e na forma de organização normativa dos Estados. Então, acho que, por um lado, os estudantes de Direito devem compreender a ascendente importância de entender o fenômeno da revolução digital e das tecnologias disruptivas e, ao mesmo tempo, ser conscientes do que acontece, por exemplo, em relação à tecnologia de blockchain (de forma resumida, o termo representa uma base compartilhada de dados que faz o registro e validação de transações digitais, trocas de informações processadas por usuários de uma rede descentralizada de computadores). Essa tecnologia pode servir para democratizar e garantir maior igualdade ou gerar maior desigualdade e maior exclusão. Então, olhem para a tecnologia do ponto de vista legal sem nunca perder de vista a igualdade entre as pessoas.

Este conteúdo atende a três Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas: Saúde e Bem-estar (ODS3)Educação de qualidade (ODS4) e Redução das Desigualdades (ODS10), itens que compõem a lista de indicadores que são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade.