Melioidose: Doença bacteriana é transmitida por contato com água e solo contaminados

Desde 2003, a pesquisadora Dionne Rolim se dedica a conhecer melhor a enfermidade para subsidiar políticas públicas de prevenção e controle

O primeiro contato da professora Dionne Rolim — pesquisadora do Mestrado de Ciências Médicas e do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza — com uma doença infecciosa chamada melioidose aconteceu devido a um surto ocorrido no ano de 2003, no Ceará. 

Na época, não havia descrição da enfermidade no Brasil, o que tornou a situação desafiadora para as equipes médicas que acompanharam os casos. O potencial letal da patologia se revelou alto, uma vez que levou a óbito, no espaço de uma semana, três das quatro crianças acometidas pelos sintomas na zona rural de Tejuçuoca.

Daquele momento em diante, a melioidose passou a ser tema dos estudos de Dionne, que abordou a doença em seus trabalhos acadêmicos de pós-graduação, mestrado e doutorado.

O que é a melioidose?

Causada pela bactéria Burkholderia pseudomallei, a melioidose não tem um quadro clínico específico. Qualquer órgão ou sistema do organismo pode ser infectado e os sintomas são semelhantes a outras doenças infecciosas comuns. Como o pulmão é o mais acometido, a pneumonia costuma ser a apresentação clínica mais frequente.

Por ter rastros imprecisos, recomenda-se atenção quando há exposição ambiental em água e terra. Isso porque a transmissão da melioidose se dá por contato com solo e água contaminados (como açudes e poças, por exemplo) por inoculação em pele, inalação de partículas ou, mais raramente, por ingestão.

Sintomas que evoluem com gravidade de forma rápida e ausência de resposta ao tratamento antimicrobiano também devem ser encarados como sinal de alerta, visto que a bactéria é resistente aos antibióticos comuns.

Para ser confirmada, explica Dionne, a melioidose exige diagnóstico microbiológico, realizado em laboratório, o que complica a identificação dos casos, pois muitos municípios não têm a estrutura necessária disponível. Além disso, o desconhecimento dos profissionais de saúde contribui para a subnotificação.




“Como diagnosticar uma doença se você não a conhece ou acredita que ela pode estar presente? A falta de estrutura laboratorial e o desconhecimento da patologia, sem dúvidas, prejudicam o diagnóstico precoce e a instituição de terapia adequada e oportuna para a doença.” Dionne Rolim, pesquisadora do Mestrado de Ciências Médicas e do curso de Medicina da Unifor
 


Importância da pesquisa científica

Os objetivos principais da pesquisa de Dionne são conhecer aspectos epidemiológicos, clínicos e ambientais da melioidose, além das características laboratoriais e genéticas da bactéria que a causa. Seu intuito é possibilitar políticas públicas para detecção e implementação de medidas de prevenção e controle.

Em 20 anos de investigação, foram desenvolvidos estudos com componentes clínico, laboratorial, ambiental e educacional. Conforme relata a pesquisadora, no último período, o foco foi na educação, pois a doença ainda é pouco conhecida.

“Desenvolvemos um material educativo e estamos trabalhando na criação de um cordel para auxiliar a divulgação”, pontua. O site www.melioidose.com.br fornece informações tanto para agentes de saúde quanto para a população em geral.

No Brasil, a pesquisa sobre melioidose vem sendo desenvolvida no Ceará, mas apenas recentemente outros estados, como o Piauí, iniciaram estudos sobre a  doença. Ela já foi descrita em todas as regiões cearenses e há 60 casos confirmados distribuídos em 40 municípios.

“Temos maior detecção na região norte, porém é possível que exista viés, uma vez que o município de Sobral tem melhor capacidade laboratorial”, pondera a pesquisadora. Sabe-se que a melioidose se distribui nas regiões tropicais, embora em locais potencialmente endêmicos ainda não tenha sido detectada.



Cultura da bactéria Burkholderia pseudomallei, causadora da melioidose (Foto: Dr. Todd Parker/CDC)


Dionne participou de um estudo publicado na Nature Microbiology, em 2016, que fez uma estimativa anual mundial da melioidose, contabilizando 165 mil casos e 89 mil óbitos. Na publicação, colocou-se em debate a possibilidade de o impacto da letalidade da doença ser superior à dengue e à leptospirose em algumas regiões do mundo.

“Outro aspecto interessante da pesquisa é a caracterização de aspectos ambientais no bioma da caatinga que pode contribuir para o entendimento ecológico da bactéria e facilitar a compreensão de sua distribuição espacial”, destaca a docente.

Melioidose: cuidados e procedimentos

A melioidose pode apresentar sintomas semelhantes aos da dengue ou de qualquer outra doença infecciosa, por isso considera-se clinicamente difícil fazer essa diferenciação. Podem surgir sintomas como febre, dores no corpo, tosse, falta de ar e até perda de peso importante, como acontece em casos de tuberculose.

Já é comprovado que a letalidade é extremamente elevada quando o diagnóstico é  tardio, mas há cura quando a enfermidade é identificada de forma precoce e o tratamento é realizado com antibióticos apropriados.

Quanto à prevenção, Dionne explica que, como outros microrganismos, a bactéria da melioidose pode estar presente no ambiente. Por isso não é possível evitar totalmente a exposição, principalmente para pessoas que exercem atividades ao ar livre, como agricultores e profissionais da construção civil, por exemplo.

Em casos como esses, recomenda-se o uso de Equipamento de Proteção Individual (EPIs), além do consumo de água tratada (clorada). O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos dá orientações como:

  • evitar o contato com o solo ou água barrenta, principalmente se estiver com feridas abertas ou com curativos impermeáveis;
  • usar botas impermeáveis ao trabalhar em locais que podem ter contaminações;
  • usar luvas para proteger as mãos quando for trabalhar diretamente com o solo.


É recomendado evitar contato com solo e água, principalmente logo após o início da estação chuvosa e por pessoas que têm fatores de risco (Foto: Getty Images)


A pesquisadora Dionne Rolim afirma também que, embora a melioidose possa acometer pessoas saudáveis, é mais comum ocorrer em quem já possui diabetes, doenças crônicas do rim, pulmão, fígado ou em indivíduos que abusam do consumo de álcool.

Por fim, a docente enfatiza a importância de realizar a investigação laboratorial microbiológica para todos os casos suspeitos e de iniciar a terapia endovenosa apropriada para melioidose, além de garantir a notificação para a vigilância epidemiológica.

“Em casos confirmados, é importante o acompanhamento regular nos serviços de saúde, uma vez que há uma segunda etapa de tratamento antimicrobiano oral prolongado”, alerta.

“Ressalte-se que a doença é de notificação compulsória no Ceará desde o ano de 2005. Outros estados do Nordeste estão se organizando para tornar a notificação obrigatória, mas continuamos a luta para que o Brasil reconheça a melioidose como um problema de saúde pública”, frisa Dionne.

Unifor: contribuindo para a ciência e saúde da população

Sendo uma bactéria classificada como agente seletivo nível 1 pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC), recomenda-se que a B. pseudomallei seja manipulada em laboratório de biossegurança nível 3 em situações de pesquisas, quando há um risco maior de exposição.

Esse tipo de laboratório já existe na Unifor desde 2022. A estrutura permite avanços com estudos microbiológicos, moleculares, genéticos e de proteômica que contribuirão para o conhecimento da doença no Brasil e também no mundo.



O laboratório de nível de Biossegurança 3 destina-se ao trabalho com agentes de risco biológico (Foto: Ares Soares)


Além do laboratório NB3, outras iniciativas vêm sendo desenvolvidas na Universidade sobre o tema. Desde 2009, quando foi criado o Grupo de Estudos em Melioidose (GEM) – formado por professores/pesquisadores e alunos da graduação e da pós-graduação – pesquisas vêm sendo desenvolvidas por discentes do Mestrado em Ciências Médicas.

“Já temos dissertações sobre estudos clínicos e educacionais sobre melioidose. Podemos destacar o importante estudo sobre melioidose infantil realizado pela professora Rachel Ximenes, publicado pela revista Emerging Infectious Diseases (EID) do CDC”, comemora Dionne.