Qual é o papel da mobilidade urbana na saúde pública?

Saiba quem é mais afetado pela precariedade dos serviços de transporte e como isso prejudica o bem-estar da população

A mobilidade urbana pode ser definida como a capacidade que o cidadão tem de se locomover dentro da cidade. Ela influencia a forma como as pessoas vivenciam os espaços, podendo ser determinante também para aspectos relacionados à saúde, como a transmissão e desenvolvimento de doenças.

Nesse contexto, pesquisadores da Universidade de Fortaleza — da Fundação Edson Queiroz — e de outras instituições estudaram a transmissão do vírus da Covid-19 nos transportes públicos da capital cearense, em artigo publicado no periódico internacional Nature Scientific Reports.

Os resultados revelam como o lockdown promoveu mudanças nos deslocamentos das pessoas em cada bairro e como a transmissão da doença respondeu a essas mudanças. Contudo, esse debate se estende para uma série de outras doenças.

Rotas de transmissão

A equipe responsável pela produção do artigo concluiu que os bairros mais centrais em mobilidade são os primeiros alvos para o surto de doenças infecciosas, assim como possuem um maior número de casos notificados ao final de uma onda pandêmica.

Para o pesquisador e professor do curso de Medicina da Unifor, Antônio Silva Lima Neto, que fez parte do estudo, o movimento de uma epidemia, em alguma medida, pode ser explicado pelas rotas que as pessoas realizam dentro da cidade. Um exemplo disso é o movimento pendular feito das periferias para o centro e vice-versa.



 

“As doenças transmissíveis se movimentam juntamente com as pessoas e fazem com que se tenha movimentos epidêmicos muito explosivos” — Antônio Silva Lima Neto, pesquisador e professor do curso de Medicina da Unifor
 



O docente afirma que o estudo realizado colabora para desmistificar a ideia anterior de que o local provável de infecção (LPI) do indivíduo deveria ser um ponto estático, como a residência da pessoa.

“Essa dinâmica de propagação de doenças transmissíveis não pode abrir mão do entendimento de como as pessoas se movimentam numa cidade, principalmente quando você fala de epidemia em larga escala”, pontua o pesquisador, também conhecido como Dr. Tanta.

Expansão das cidades

O processo de expansão das cidades é outro fator que influencia diretamente a saúde da população. Conforme explica o pesquisador, os movimentos migratórios que resultam nesse crescimento normalmente são desordenados.

Isso gera um “inchaço” dessas regiões, que não acompanham — em termos de planejamento urbano — a expansão das cidades e a necessidade de oferecer condições de vida minimamente dignas às novas populações, como abastecimento de água e esgotamento sanitário, por exemplo.

“A dificuldade de se compatibilizar ações de governo com a urbanização muito acelerada faz com que se formem grandes aglomerados populacionais dentro da cidade que praticamente não têm acesso às condições mais básicas de sobrevivência”, enfatiza.

Nesse contexto de expansão, a mobilidade urbana também faz parte dos desafios enfrentados pelas gestões. Uma vez que as novas populações estão em busca de trabalho, essas pessoas terão que se deslocar dos cinturões periféricos para o centro das cidades, sendo expostas à poluição, ao estresse e a trajetos que costumam ser longos e cansativos, impactando negativamente a qualidade de vida.

Cidade saudável e desigualdade

Visando melhorias na saúde de toda a sociedade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) propôs o conceito de “Cidade Saudável”. Conforme explica o professor Tanta, o termo representa um ideal: “É um comprometimento, que parte tanto da gestão quanto da população, de adotar ações que promovam saúde”. Entre as iniciativas clássicas, é possível citar:

  • Facilitar acesso às áreas verdes;
  • Disponibilizar espaço de lazer para a população como um todo;
  • Incentivar atividades físicas;
  • Realizar ações de combate ao sedentarismo e à obesidade;
  • Combater a poluição ambiental e o aquecimento global.

No entanto, além dessas iniciativas, que têm um componente global — ou seja, funcionam praticamente para o mundo inteiro —, há outras que correspondem às realidades específicas de cada área. “As cidades do Nordeste brasileiro são muito desiguais, então é difícil pensar em uma cidade saudável sem que as desigualdades sejam compensadas”, analisa o docente.

Um reflexo dessa disparidade pode ser visto por meio da carência de transporte público. A mobilidade urbana precária afeta desproporcionalmente grupos vulneráveis, como indivíduos de baixa renda, idosos e pessoas com deficiência, agravando as desigualdades sociais já existentes.



Tráfego intenso e falta de infraestrutura adequada para transporte público podem estar relacionados a problemas respiratórios e ansiedade (Foto: Getty Images)


Principalmente em áreas periféricas, a falta de transporte público eficiente pode dificultar o acesso a serviços de saúde, por exemplo, resultando em atrasos no tratamento médico. “Se aquele grupo de indivíduos tem menos saúde que um outro, temos que tentar compensar isso por meio de iniciativas mais dirigidas”, complementa Antônio.

Avanços

Para o professor, Fortaleza tem uma boa experiência recente em relação à promoção de mobilidade urbana em parceria com a Fundação Bloomberg, entidade sem fins lucrativos que atua em 480 cidades em mais de 120 países do mundo.


 

Desde 2015, a política de segurança viária da capital é apoiada pela organização com consultoria e apoio técnico nas áreas de dados, fiscalização, comunicação e desenho urbano. “Há bons avanços na diminuição dos acidentes de transporte terrestre em geral dentro da cidade, com novos traçados urbanos e planejamento”, celebra o docente.

Dados divulgados pela Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) confirmam redução de 12,8% no número de vítimas fatais entre 2018 e 2019, quantitativo que vem sendo reduzido desde o ano de início da parceria entre prefeitura e fundação.

Antônio diz que existe a tentativa de fazer com que as pessoas morem mais perto de onde trabalham, para que não precisem se deslocar por tão longas distâncias. Também há o estímulo ao uso de bicicletas e até caminhadas nesse percurso, porém isso depende de como a cidade se organiza. 

“Se a população tem que recorrer ao transporte público, que ele seja de qualidade, com preço acessível, proveniente de uma energia mais limpa – que diminua a emissão de carbono – e que faça as pessoas optarem por ele, em detrimento de um veículo individual”, conclui.