null Com dendê e com afeto: Unifor e a política da boa vizinhança

Qui, 19 Novembro 2020 14:45

Com dendê e com afeto: Unifor e a política da boa vizinhança

Conheça histórias de vizinhos que compartilham atitudes de gentileza e solidariedade


Raimundo Severo da Silva, líder comunitário do Dendê, localizada no bairro Edson Queiroz (Foto: Ares Soares)
Raimundo Severo da Silva, líder comunitário do Dendê, localizada no bairro Edson Queiroz (Foto: Ares Soares)

Feito vizinhas de porta e janela, a Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, e a comunidade do Dendê, situada no bairro Edson Queiroz, estão atentas uma à outra e deixam rastros em comum. Cruzadas, as linhas de suas mãos contam sobre destinos que se tocam e se transformam desde 1973, ano em que a Unifor iniciou suas atividades de ensino, pesquisa e extensão deliberadamente marcadas por uma política da boa vizinhança. De tão próximas, ambas jamais pouparam esforços para derrubar muros e diminuir distâncias reais e simbólicas em nome de um bem-estar comum. E é assim que, a cada ano, estreitam laços de respeito e troca recíproca.  

Em 2020, o compromisso de olhar para as fragilidades e potencialidades de quem “mora” ao lado em condições desiguais se reafirma: a Unifor encerra o semestre anunciando a criação da disciplina Responsabilidade Social e Ambiental, ofertada, a partir de 2021, a todo e qualquer graduando interessado em saber mais sobre empoderamento comunitário e desenvolvimento local por meio da gestão de pequenos negócios e microempresas com visão empreendedora. “Vamos envolver mais diretamente os corpos docente e discente no mapeamento de demandas prementes na comunidade do Dendê para que, por meio de um compartilhamento de saberes e fazeres, possamos encontrar soluções e apoiar projetos capazes de melhorar o IDH daquele território, que ainda é muito baixo”, adianta o vice-reitor de Extensão da Unifor, Randal Martins Pompeu.

Geração de emprego e renda, empreendedorismo, qualificação profissional, gestão ambiental. Unindo ensino, pesquisa e extensão a ações planejadas e viáveis de melhoria da qualidade de vida no Dendê, a Universidade de Fortaleza, por meio da Fundação Edson Queiroz, se propõe ainda a responder pelo acompanhamento pedagógico e técnico de projetos e empreendimentos que venham a ser desenvolvidos individual ou coletivamente no Dendê, ampliando o impacto positivo de uma rede de equipamentos institucionais já voltados à responsabilidade social e que também funcionam como campo de atividades práticas para os alunos e alunas da Unifor.

Do campus, como acenos contundentes em prol do desenvolvimento comunitário, se propagam além-muros o Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI), que realiza atendimentos multidisciplinares junto aos mais de 16 mil moradores do Dendê; o Centro de Formação Profissional (CFP), que por meio de cursos técnicos profissionalizantes atende parte da demanda de formação profissional da comunidade e sua inserção no mercado de trabalho; o Escritório de Prática Jurídica (EPJ), que presta atendimento jurídico gratuito a quem precisa por meio do encaminhamento de processos e orientações de natureza legal; e a Escola de Aplicação Yolanda Queiroz, que promove educação gratuita para cerca crianças e adolescentes dos bairros do entorno em situação de vulnerabilidade social. 

“A criação de uma disciplina de Responsabilidade Social e Ambiental é outro marco da Fundação Edson Queiroz e Universidade de Fortaleza no cumprimento da missão de fortalecer a economia local e afirmar o desenvolvimento econômico da região Nordeste. Capacitar o micro-empresário e o gestor de pequenos negócios, para a Unifor, é estimular a geração de emprego formal e agregar apoio técnico, contábil, jurídico e sanitário aos negócios que virão se firmar no Dendê, movimentando a economia local. Uma forma de atender às demandas da comunidade sem o viés assistencialista e com ações continuadas e não pontuais”, complementa o chefe da Divisão de Responsabilidade Social da Unifor, Marcus Mauricius Holanda.  

O investimento continuado e responsável da Unifor junto à comunidade vizinha que hoje também enfrenta as limitações e dificuldades atreladas à pandemia da Covid-19 é motivo de orgulho para o gestor. “Em 32 anos de existência, já passaram mais de 16 mil crianças pela Escola de Aplicação Yolanda Queiroz, são 540 vagas por ano e 99% delas vai para o Dendê; no Centro de Formação Profissional (CFP) contamos mais de 36 mil formados. Só esse ano mais de 1600 vagas foram criadas, com cota específica para o residencial Yolanda Queiroz, que fica numa área de maior fragilidade no Dendê. Agora criamos mais 50 vagas para cursos voltados a pessoas com deficiência auditiva. Ou seja, inclusão da inclusão. Toda essa formação está sendo online, de acordo com a legislação vigente, enquanto a escolinha está funcionando só parcialmente de forma presencial, em sistema de rodízio. Mas mantemos as aulas remotas do infantil até o 5º ano e distribuímos 500 chips para que os matriculados possam continuar estudando, dispositivo que na verdade beneficiou toda a comunidade”, garante Marcus.

Para ele, a principal devolutiva que vem do Dendê e já faz valer a pena qualquer investimento feito ou porvir da Unifor está na rápida e total adesão demonstrada a cada inscrição aberta. “Os moradores do Dendê valorizam muito o que vem da Unifor, o feedback sempre é o melhor em termos de rendimento e aplicabilidade na prática dos conhecimentos adquiridos. Muitos, aliás, acabam sendo incorporados à Unifor, em funções diversas que vão desde o agente varejista, aquele que tem permissão para vender guloseimas ou lanches no campus até os que se engajam no projeto Tô de Olho, voltado aos vigilantes de carros. Esse interesse e também o cuidado e respeito que demonstram com o patrimônio material e natural da Unifor são provas dessa virtuosa política da boa vizinhança. Ganhamos todos”, conclui.

A vizinha dos sonhos

“É uma relação de mãe para filho”, afirma o educador físico, mestre capoeirista e líder comunitário da comunidade do Dendê, Raimundo Severo da Silva, quando perguntado sobre o que anima o espírito de vizinhança entre a Universidade de Fortaleza e seu entorno mais próximo. Há exatos 21 anos, ele procurou a Unifor pela primeira vez para pleitear apoio para o Grupo de Capoeira Redenção, que coordena até hoje. Teve o sinal verde e, nesse ínterim, seja como ex-presidente da associação de moradores do bairro Água Fria ou membro do conselho comunitário de defesa social do bairro Edson Queiroz, afinou uma parceria que nasce com o início das atividades de ensino, pesquisa e extensão da primeira universidade privada local, ainda em 1973.

Saúde, educação, esporte. Eis as principais áreas em que, para Severo, a vizinha Unifor faz toda a diferença e impacta positivamente na comunidade do Dendê. “A situação de vulnerabilidade social seria muito mais grave não fosse empreendimentos como o NAMI, onde temos acesso prioritário e gratuito a consultas, exames e tratamentos especializados em saúde. O que dizer também dos empregos gerados através dos cursos técnicos profissionalizantes gratuitos do Centro de Formação Profissional da Unifor, que já chegou a funcionar dentro do Dendê, para depois ganhar maior e melhor estrutura no campus? A Escolinha Yolanda Queiroz é outro presente, com informática, artes plásticas, música, educação física, além de material escolar gratuito, refeições e fardamento para 540 crianças ao ano. Tudo isso gera oportunidades de uma vida melhor e combate inclusive um dos nossos maiores problemas hoje, que é a violência. Ações inclusivas como as que a Unifor desenvolve, até assumindo um papel que deveria ser do Estado, são as que geram transformações socioeconômicas e oferecem outras perspectivas de vida às pessoas”, defende.  

Cúmplice dos problemas que se avizinham, mas também das alegrias e conquistas, a vizinha Unifor vem se fazendo íntima. Para o educador físico Severo, ver crianças e adolescentes do Dendê acessando gratuitamente as mais diversas modalidades de esportivas através da Escola de Esportes e na superestrutura do ginásio poliesportivo do campus é uma injeção de ânimo para que ele e outros da comunidade continuem se sentindo motivados a sonhar, mesmo na fase madura. O sonho dele era ter o diploma do curso superior em Educação Física nas mãos. À custa do próprio suor e de boas notas que geraram descontos nas mensalidades da Unifor venceu. Hoje, aos 48 anos, sempre que convidado pela universidade, dá aulas e palestras para educadores físicos e esportistas em formação, além de dirigir o próprio grupo de capoeira em Fortaleza e outros no interior do estado. 

Na memória de quem vive há 40 anos no Dendê há ainda momentos de festa e leveza compartilhados com a vizinha Unifor, como o dia do casamento coletivo realizado anualmente e sem custos para casais da comunidade que buscam apoio junto ao Escritório de Práticas Jurídicas (EPJ), selando suas uniões com as bênçãos de um juiz de paz. Severo também festeja em alto e bom som a reforma da estrutura física e o upgrade nos equipamentos das rádios comunitárias Dendê Sol e Salinas FM. “Os nossos radialistas passaram por capacitações com professores da Unifor nessa pandemia e foi mais um presente que ganhamos, porque eles não só incrementaram suas programações como se tornarem agentes comunitários capazes de gerar informações de utilidade pública e difundir medidas de proteção e autocuidado indispensáveis ao período difícil da pandemia da Covid-19. Tudo isso nos faz ter laços afetivos com a Unifor. E ao invés de olharmos para o lado com rancor ou revolta nos sentimos parceiros de um processo de crescimento e valorização mútuos”, reforça.

Em 2021, com a chegada da disciplina Responsabilidade Social e Ambiental na grade curricular dos alunos e alunas da Unifor, Severo vê a clara oportunidade de implantação de pequenos negócios e consequente geração de empregos e renda dentro do Dendê. Ele que sonha com uma fábrica de confecção na comunidade que pudesse fornecer jalecos aos profissionais da saúde; ele que quer ver mais crianças e adolescentes hoje em situação de vulnerabilidade social tendo igual oportunidade de acessar o ensino superior na Unifor para trazer de volta para o Dendê, em forma de projetos, ações ou empreendimentos, a transformação social necessária e tão potente quando se pode unir o saber ao fazer. “Ganhamos nosso presente de Natal antecipado. Somos muito gratos e vamos fazer por onde merecer”, comemora.    

Aldeia-Aldeota: somos todos vizinhos

Da caverna aos arranha-céus. Desde que o homem criou para si o espaço habitável, a ideia de vizinhança, enquanto problema e solução, veio junto. Para expandir seu sonho de morar, mas também conviver, a porta e a janela foram os inventos que tornaram possível a reclusão sem abrir mão da convivência – o dentro e o fora estavam, enfim, delimitados, mas em comunicação.  E assim criou-se a rua, aquela que transformou o aldeamento e suas casas distanciadas umas das outras em aldeia com habitações próximas. Lado a lado, os indivíduos passaram a se ver como vizinhos, colocando em xeque o desafio existencial de proximidade e alteridade: viver harmoniosamente com o outro, preservando a endeusada privacidade, cara aos tempos modernos, ao mesmo tempo em que diversas formas de abertura e diálogo com o mundo passaram a se experimentadas.

Vizinho ou vizinhança, portanto, é conceito amplo para quem estuda e pratica a arquitetura, observando de perto como o urbanismo cria hábitos e formas de habitar para fins de isolamento ou agrupamento. Caso da egressa de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Fortaleza (Unifor), Rachel Medina, que, aos 28 anos e junto a duas amigas com quem também se formou, vem tornando possível o Ateliê Tracejar, um escritório que abraça projetos sociais e demonstra na prática como a profissão ainda muito atrelada à estética e à ostentação material pode afirmar uma ética biossustentável e um espírito democrático que também diz sobre implicação com o outro. “Procuramos não delimitar e nem enxergar como vizinho somente o nosso entorno. Olho para os territórios como unidades de vizinhança que se retroalimentam: quando melhoramos a estrutura de um isso pode impactar no outro e melhorar a conectividade entre todos”, observa. 

Assim é que, a partir do que chama de arquitetura afetiva, Rachel assumiu mais recentemente - e sem remuneração imediata -, o projeto de reforma da Casa de Apoio dos índios Pitaguary, em Pacatuba, tomando para si o desafio de tornar mais confortável e potente um projeto original desenhado pelos próprios indígenas no chão de areia da aldeia. “Venho de um bairro nobre de Fortaleza e mesmo como profissional especializada não poderia simplesmente chegar ali e derrubar o que construíram artesanalmente sem entender as reais necessidades e modo de vida do povo Pitaguary. Optei por uma imersão e entendi que todo aquele território era de acolhimento e resistência, usado para reuniões, celebrações, rituais e até hospedagem de outras etnias. Então tinha que valorizar e potencializar esses usos, tornando o espaço mais confortável e permeável às pessoas que habitam e visitam o lugar. A ideia ampliada de vizinhança, aquela que a própria arquitetura às vezes perde de vista, pulsa ali”, vibra Rachel. 

Abertura de janelas, aplicação de cores vivas em paredes para contemplar a juventude, uso de materiais biossustentáveis para garantir conforto térmico e iluminação natural. O auxílio técnico fez Rachel criar vínculos com a aldeia Pitaguary a ponto de mobilizar outros profissionais para abraçar a empreitada, ampliando um raio de conectividade e colaboração que pode vir a ser dar em projetos similares e noutros territórios marcados pela vulnerabilidade social e onde a arquitetura, muito centrada nas grandes metrópoles, normalmente não chega. 

“Bem antes de ser estudante de arquitetura e durante toda a minha formação na Unifor estive ligada a projetos sociais e colaborativos, exercitando a responsabilidade social. Como espírita, dei aulas e ajudei no acolhimento de crianças e adultos em situação de rua, na Casa da Sopa, centro de Fortaleza; fiz intercâmbios para o Leste Europeu para também trabalhar em prol de famílias em extrema pobreza e cheguei aos índios Pitaguary através de vivências espirituais ligadas ao xamanismo, onde conheci Benício Pitaguary, um jovem ativista indígena que se destaca pelo seu trabalho com pintura corporal. Ele me trouxe à aldeia e hoje me sinto em conectada com o povo e o lugar, mesmo morando na Aldeota. Ou seja, somos todos vizinhos e estamos ligados de alguma forma. E nossa tarefa comum é nos tratar bem e nos ajudar a melhorar”, concluiu a arquiteta. 

O carinho mora ao lado

Egressa do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza, a jornalista Ian Gomes até já morou em pensionato quando, bem jovem, veio de Senador Pompeu, município-natal, para estudar em Fortaleza. Mas nem aquele aglomerado de moçoilas em um mesmo ambiente a fez romper a barreira da privacidade para cultivar uma relação de vizinhança cúmplice ou aconchegada. Acontece que a pandemia da Covid-19 e seu imperativo para reclusão ainda mais severa mudaram essa história: foi diante de um diagnóstico positivo e a necessidade de ter que ficar em casa, mesmo sendo assintomática, que acabou por conhecer a vizinha Maria Auxiliadora Gurgel, com quem hoje mantém uma relação de gratidão e troca fraterna irrenunciável.

“Moro há 28 anos no mesmo prédio mas só devo conhecer pelo nome umas quatro pessoas. Eu e Dodora somos vizinhas porta com porta, ela com mais de 70 anos e aposentada, mas eu ainda vivia aquela correria de trabalho, trabalhando fora o dia todo. Portanto, não nos conhecíamos até o dia em que testei positivo para Covid-19 e fui avisar à síndica e aos vizinhos mais próximos por interfone. E qual não foi minha surpresa quando ela, mesmo sendo grupo de risco, se prontificou imediatamente a fazer compras para mim no supermercado e colocar na minha soleira, caso eu precisasse. Aquilo foi como um aceno da minha mãe, falecida há 3 anos. E a partir daí, mesmo mantendo a distância e sempre de máscara, eu e Dodora cultivamos um afeto ímpar e são muitas as trocas: das guloseimas à horta e plantinhas que cultivamos juntas no corredor contíguo a nossos apartamentos”, vibra Ian.

Receita vai, receita vem, a amizade entre vizinhas hoje tem gosto de pudim e bolos com pitadas de hortelã e cresce sob o tom amarelo-esverdeado da Pingo de Ouro, plantinha recém-chegada ao canteiro comum. Entreabertas, as portas seguem dando abertura para demonstrações de carinho e troca de outras tantas habilidades. A jornalista Ian foi quem ajudou Dodora a acessar as lives que lhes preenchem com mais animação os dias de isolamento social. A pedagoga aposentada Dodora, fã de forró e de cerveja, foi quem despertou em Ian a vontade de envelhecer como ela: fazendo churrasquinho no apartamento para receber filhos e netos ou plugada aos seus shows, sozinha, mas nunca solitária – e solidária sempre

Dodora diz que Ian é a sua “vizinha famosa” e a chama de “minha filha”. Ian diz que Dodora é ela amanhã, se seguir seus exemplos e cultivar as mesmas virtudes. “Minha vizinha tem me ensinado muito, mesmo sem nem imaginar. Tanto que virou minha entrevistada de estimação, eu a convido para muitas das pautas de meus programas de rádio e TV, que estou produzindo remotamente. Está sempre disposta e dizendo: 'me use!'. Essa alegria que vaza da porta dela até a minha, mesmo sem podermos frequentar uma a casa da outra, é contagiante. Se peguei uma doença como a Covid, quero dizer que Dodora me contagiou com doses de saúde. E é uma descoberta saudável, ainda que tardia, esse sentimento de afeto mas também de respeito à privacidade entre vizinhas”, credita Ian.