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Ter, 22 Agosto 2023 12:05

Entrevista Nota 10: Juliana Mamede e o efeito das facções criminosas na crise de segurança pública

Doutora e mestre em Direito Constitucional, ela contextualiza a crise de segurança pública no Ceará, aponta a influência dos grupos criminosos e fala sobre perspectivas para o futuro do país


Juliana é professora e coordenadora do curso de Direito e do Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV) da Unifor (Foto: Ares Soares)
Juliana é professora e coordenadora do curso de Direito e do Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV) da Unifor (Foto: Ares Soares)

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), Fortaleza é a terceira capital do país em número absoluto de homicídios, registrando 827 casos. Empatada com o município do Rio de Janeiro, a cidade ficou atrás apenas de Manaus (976) e Salvador (1.125). Já o Ceará ocupa o 5º lugar nacional em mortes por violência, tendo contabilizado 2.913 homicídios no último ano.

Para a professora Juliana Mamede, o aumento da violência no estado está diretamente relacionado à mudança da dinâmica criminal, patrocinada especialmente pela chegada dos grupos criminosos vindos da região Sudeste do Brasil. Esse movimento promoveu, então, a implantação de um novo modelo de governança criminal.

“A partir da instalação de um novo modelo, as facções criminosas aproveitam-se das fragilidades sociais e das fissuras estatais, tecendo novas teias, se infiltrando e aderindo ao tecido social, contaminando sorrateiramente as instâncias de poder, articulando-se nacional e internacionalmente”, explica a coordenadora do Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV) e do curso de Direito da Universidade de Fortaleza.

No início de 2023, Juliana lançou o livro “A Crise da Segurança Pública e as Facções Criminosas: origens, contexto e alternativas”, que aconteceu na inauguração do NAVV. A obra visa aprofundar a compreensão dos reais motivos do surgimento, entranhamento e expansão das facções criminosas em todo o território nacional, focando no domínio exercido por esses grupos.

Doutora e mestre em Direito Constitucional pela Unifor, a docente participa do grupo de pesquisa “Tutela Penal e Processual Penal dos Direitos e Garantias Fundamentais”, vinculado ao Laboratório de Ciências Criminais (Lacrim) da Universidade.

Também é pesquisadora no “História do Direito, Jurisdição Constitucional e Teoria Política Internacional” na mesma instituição, onde coordena o Centro Judiciário de Solução de Conflitos. Juliana atua ainda como Mediadora e Conciliadora de Conflitos, sendo certificada pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). 

Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela contextualiza a crise de segurança pública no Ceará, aponta a influência dos grupos criminosos no problema e fala sobre as perspectivas para o futuro do Brasil, além de comentar sobre a importância do Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV) da Unifor.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Segundo o Monitor da Violência, do portal G1, o Ceará é o quinto estado do país com o maior índice de crimes violentos, atrás apenas de Bahia, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Só em 2022, 2.971 cearenses foram vítimas de crimes violentos letais e intencionais (CVLI). O que vem acontecendo em nosso estado nas últimas décadas para chegarmos em tais números? 

Juliana Mamede — O aumento da violência no Ceará encontra-se diretamente relacionado à mudança da dinâmica criminal, patrocinada especialmente pela chegada das facções criminosas do Sudeste, promovendo a implantação de um novo modelo de governança criminal. Outros fatores que ainda se apresentam como determinantes para o incremento da violência se relacionam à vocação turística do Ceará, que intensifica o trânsito de milhares de pessoas de todo o mundo, e ao estabelecimento de novas rotas para o tráfico internacional de drogas, que fez do estado ponto estratégico para o escoamento de entorpecentes.

Há que se pontuar ainda que até 2016, ano do surgimento da facção local mais antiga, o crime na cidade de Fortaleza, em grande medida, estava relacionado à atuação das gangues e suas disputas por territórios e poder. Com o efetivo ingresso e atuação das duas maiores facções do sudeste no Ceará, que aconteceu em meados da década de 2010, as “gangues” terminaram sendo absorvidas pelos referidos coletivos do crime, que as conformou segundo os seus respectivos interesses.

Inconformismos e dissidências, advindos da percepção da rentabilidade do tráfico de drogas, emergiram e potencializaram-se nessa nova dinâmica. Esse contexto favoreceu o surgimento da facção local mais antiga, estando ela atrelada à ideia de um “nativismo criminoso”, tendo por propósito fazer frente à “exploração” dos seus integrantes, insatisfeitos com a cobrança da contribuição mensal praticada por uma facção paulista, com atuação em todo o território nacional.

Inobstante o surgimento de uma facção local em 2016, observou-se em Fortaleza um fenômeno que ficou conhecido como “pacificação”, sendo este marcado por um pacto de não-agressão entre os grupos do crime, que visavam estabelecer um ambiente propício ao desenvolvimento de seus “negócios”.
 
Em virtude desse fenômeno, as facções tomaram medidas conjuntas, voltadas a conter a criminalidade nas periferias e favelas, como a proibição de furtos e roubos e a autorização do livre trânsito em espaços até então conflagrados, provocando uma acentuada queda dos homicídios dolosos — tal como se vê nos dados extraídos do Monitor da Violência, que indica que, em 2015, o Ceará contou com 3.948 homicídios dolosos, observando-se uma redução para 3.331 em 2016.

Ao final do ano de 2016, com o rompimento das facções do Sudeste com atuação nacional, teve-se a conflagração de uma guerra entre referidos grupos criminosos, sendo contabilizados no Ceará 5.005 homicídios dolosos em 2017 e 4.412 homicídios dolosos em 2018. Vale lembrar que, no ano de 2017, Fortaleza foi considerada a capital mais violenta do Brasil ao alcançar uma taxa de 87,9 homicídios a cada 100 mil habitantes.

Em 2019, observou-se uma certa acomodação dos interesses, o que fez com que os homicídios dolosos caíssem para 2.169. Contudo, em 2020, uma nova facção local (dissidente de uma organização do Sudeste) despontou no município de Caucaia, provocando outro aumento de homicídios dolosos, que atingiram a marca de 3.961 segundo o Monitor da Violência. Uma pesquisa realizada pelo IPEA, que teve por base a taxa média de homicídios dolosos verificados entre 2018 a 2020, apontou Caucaia como a segunda cidade mais violenta do Brasil.

Percebe-se, pois, que o aumento da violência encontra-se atrelado ao protagonismo das facções na cena criminal local e à incapacidade do Estado de reagir tempestiva e adequadamente às investidas de tais grupos criminosos.

Entrevista Nota 10 — Ainda de acordo com o Monitor de Violência, apesar dos números estarem em queda tanto no Brasil quanto no Ceará, o cenário ainda é preocupante. Nas últimas semanas, alguns bairros de Fortaleza vivenciaram momentos de tensão e insegurança em razão de uma guerra entre facções rivais: de carros incendiados e estabelecimentos fechados a homicídios e prisões. Como as organizações criminosas vêm influenciando os problemas na crise de segurança pública no país e no estado? 

Juliana Mamede — A partir da instalação de um novo modelo de governança criminal, as facções criminosas aproveitam-se das fragilidades sociais e das fissuras estatais, tecendo novas teias, se infiltrando e aderindo ao tecido social, contaminando sorrateiramente as instâncias de poder, articulando-se nacional e internacionalmente.

Com efeito, as questões relacionadas à atuação das facções criminosas extrapolam o âmbito da segurança pública e avançam para o campo social à medida em que tais grupos cultivam o sentimento de pertença, de valorização e de respeito por seus pares em uma parcela de jovens e adolescentes vitimados pelas barreiras impostas por uma sociedade estruturalmente excludente.

Padrões de consumo e de sucesso são apresentados democraticamente, contudo, os meios para o seu alcance são altamente seletivos e escassos. Nesse contexto, a promessa de vida fácil e farta proporcionada pelo ingresso em uma facção do crime, ainda que episódica, passa a se apresentar como atrativo em um país de miseráveis, onde os direitos básicos das pessoas — tais como segurança alimentar, educação, saúde, trabalho digno e moradia — são reiterada e vergonhosamente violados.

Aliando-se ao já pontuado, tem-se que as políticas nacionais de segurança pública, concebidas após a restauração do regime democrático em 1988 e seus respectivos desdobramentos, são, em regra, reativas, “cosméticas” e efêmeras. Elas apresentam-se tão somente enquanto instrumentos de gestão de crises, reproduzindo-se em um punhado de aspectos notáveis na percepção das causas sociais do crime e da violência, na compreensão da necessidade de conceber-se políticas intersetoriais que abranjam e conectem os entes federativos, com órgãos e entidades governamentais e não governamentais.

Outro elemento a ser considerado é o falido sistema penitenciário brasileiro, tal como reconhecido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (ADPF 347), apresentando-se este como o berço das facções criminosas brasileiras e como espaço de cooptação de novos membros.

Em recente discurso, enfatizou a Ministra Rosa Weber, Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF): “Chamar atenção para a urgência que o sistema prisional reivindica de todos nós, em benefício dos apenados, sim, mas em benefício, sobretudo, da própria sociedade em que eles têm de ser reintegrados, para segurança da própria sociedade, não para o retorno à prisão e para a retroalimentação do crime e o fortalecimento das diferentes facções".

Ao que parece, enquanto não forem implementadas políticas públicas no sentido de promover-se uma efetiva inclusão social, todo o empenho estará fadado ao insucesso, uma vez que uma das questões intrigantes em relação à dinâmica das facções é a capacidade de se reinventar e autorregenerar. Isso se dá a partir de uma mobilidade de lideranças que lhes concede a suficiente estabilidade para permanecer em plena atuação e do fascínio que exercem sobre crianças, adolescentes e jovens — o que lhes garante um permanente e robusto exército, com armas em punho para digladiarem-se em nome dos interesses das suas respectivas facções.

Isto posto, é oportuno destacar que não há ineditismos significativos no tocante ao surgimento e ao modus operandi das facções criminosas, havendo, pois, que se pensar conjugadamente em estratégias concretizáveis de investimentos sociais e de segurança pública.

Entrevista Nota 10 — No início do ano, você lançou o livro “A Crise da Segurança Pública e as Facções Criminosas: origens, contexto e alternativas”. Quais são as perspectivas para o futuro e as possíveis soluções para esta discussão, especialmente no Brasil? 

Juliana Mamede — A eleição presidencial trouxe um novo alento, renovou as esperanças. Contudo, até o presente momento, não se vislumbra a concretização de ações voltadas ao efetivo enfrentamento das facções criminosas, sendo esta agravada pela “especulação” de uma possível atuação conjunta entre milícias e grupos criminosos.

Inobstante a reunião realizada em 26 de janeiro deste ano entre o Ministro da Justiça e os Secretários de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, com o propósito de fortalecer nacionalmente ações integradas de segurança pública, persiste o discurso do governo federal de que a competência para o combate às facções criminosas é atribuição constitucional dos estados e que não haverá interferência nesta.

A ênfase recai sobre a proposição de uma política federal de atuação conjunta para combater as organizações criminosas a partir do uso da inteligência e da informação, bem como a descapitalização das organizações criminosas, o que é estratégico e urgente. Contudo, até agora, simples retórica.

De outro lado, a truculência e letalidade policial, que se mostram de forma expressiva em alguns estados da federação — como Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo —, terminam por desacreditar a polícia, fortalecendo as facções criminosas. Diante desse cenário, no dia 14 de agosto, postou Flávio Dino em suas redes sociais: “Nesta semana teremos reunião com os Secretários de Segurança Pública dos Estados. Vamos conversar sobre prioridades: investigações contra facções criminosas e mortes violentas intencionais. Desde o início do ano, temos trabalhado com os Estados e vamos continuar nesse caminho de diálogo com todos (SUSP e sociedade civil)”. Aguardemos...

Ante o exposto, tem-se como premissa necessária a qualquer tentativa de superação do quadro anômico que reveste a segurança pública no Brasil a adoção do federalismo cooperativo para a segurança pública. Isso permite, de fato, a articulação efetiva de uma política de segurança pública combinada com as necessárias políticas sociais — com vistas à família, à educação e à construção de um adequado e representativo sistema de inclusão e participação políticas — de forma consistente e duradoura, a permitir o resgate das dívidas sociais que oneram as comunidades carentes e estimulam a conquista de braços e espaços para as facções criminosas.

Entrevista Nota 10 — O evento de lançamento da sua obra também coincidiu com a inauguração do Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana (NAVV), em funcionamento no Escritório de Práticas Jurídicas da Unifor (EPJ) da Unifor. O que esse equipamento representa para a sociedade? Como tem sido esses primeiros meses de funcionamento?

Juliana Mamede — O Núcleo de Apoio às Vítimas de Violência Urbana não apenas corrobora o compromisso social da Universidade de Fortaleza, mas também revela a preocupação com uma formação discente diferenciada, sensível às problemáticas do cotidiano, ao desenvolvimento de múltiplas habilidades necessárias à atuação profissional, ao pleno entendimento e efetivação dos direitos humanos.

A partir de um acolhimento multidisciplinar, o NAVV objetiva cuidar das vítimas diretas da violência nas esferas jurídica e psicossocial, amenizando a dor, proporcionando um mínimo de conforto ao ofertar um lugar de fala. Também viabiliza a tutela de direitos a partir de orientações jurídicas e judicialização de demandas, fortalecendo, assim, a rede de amparo e assistência às vítimas e familiares da violência.

Até o momento as ações estão sendo desenvolvidas em parceria especial com o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência do Ministério Público Estadual, revelando-se esta frutífera e enriquecedora. Nos atendimentos realizados até agora, o que tem se evidenciado de forma contundente é o medo das vítimas de acionarem as instâncias competentes, face às possíveis represálias. O sentimento de desamparo, de vulnerabilidade e de impotência se sobressai em praticamente todas as falas, o que ressalta a relevância da iniciativa institucional.