null Entrevista Nota 10: Karla Patrícia Martins e a relação da psicologia ambiental com a proteção da Amazônia

Seg, 30 Outubro 2023 14:43

Entrevista Nota 10: Karla Patrícia Martins e a relação da psicologia ambiental com a proteção da Amazônia

Ela fala sobre a relação da psicologia ambiental com o bem-estar humano e a importância de eventos como o “Banhos de Amazônia” para a conscientização sobre o meio ambiente


Karla é coordenadora do Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) da Unifor e vice coordenadora do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental da ANPEPP (Foto: Ares Soares)
Karla é coordenadora do Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA) da Unifor e vice coordenadora do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental da ANPEPP (Foto: Ares Soares)

Considerada um dos principais centros de biodiversidade do planeta, a floresta amazônica desempenha um papel crucial na manutenção do clima global. O bioma também é lar e subsistência de milhões de pessoas, que sofrem junto à Amazônia com sua destruição. Tal sofrimento da população se torna quase indistinguível do lugar onde vivem, já que viver e ser também é sobre estar.

Essa relação pessoa-ambiente, objeto de estudo da psicologia ambiental, é intrínseca à nossa existência. É o que explica Karla Patrícia Martins Ferreira, docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade de Fortaleza — instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz —, onde coordena o Laboratório de Estudo das Relações Humano-Ambientais (LERHA).

“Somos seres ambientais, não existimos fora de um contexto. O que acontece é que é tão parte da nossa existência que não pensamos muito sobre essa relação, como nosso comportamento impacta os ambientes e como somos impactados por estes”, afirma.

A pesquisadora diz que os lugares com os quais nos relacionamos são formadores do nosso psiquismo e têm forte influência sobre quem nós somos, sobre nossa saúde e a forma como agimos no mundo.

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Karla é mestre em Psicologia e doutora em Educação pela mesma instituição. Realizou um doutorado sanduíche na Université de Nantes, na França, e possui pós-doutorado em Psicologia pela Unifor.

No início de outubro, a professora representou o LERHA no evento “Banhos de Amazônia - floresta, rio e cidade”, em Manaus. A ocasião faz parte das atividades do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), iniciativa da qual é vice-coordenadora.

Membro da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Ambiental e Relações Pessoa-Ambiente, Karla fala à Entrevista Nota 10 sobre a relação da psicologia ambiental com o bem-estar humano e a importância de eventos como o “Banhos de Amazônia” para o meio ambiente.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Professora, como se dá a relação do ser humano com o meio ambiente, especialmente no aspecto psicológico resultante dessa interação? 

Karla Patrícia — A relação pessoa-ambiente é intrínseca à existência. Somos seres ambientais, não existimos fora de um contexto. O que acontece é que é tão parte da nossa existência que não pensamos muito sobre essa relação, como nosso comportamento impacta os ambientes e como somos impactados por estes.

Os ambientes com os quais nos relacionamos, principalmente com os quais crescemos — casa, bairro, escola — e também mais nos relacionamos na vida adulta — local de moradia e local de trabalho —, são formadores do nosso psiquismo e têm forte influência sobre quem nós somos, sobre nossa saúde e a forma como agimos no mundo.

Entrevista Nota 10 — A psicologia ambiental surge, ainda sob o nome de psicologia da arquitetura, após a Segunda Guerra Mundial para dar suporte ao processo de reconstrução das cidades. De que forma essa disciplina segue sendo cada vez mais necessária para o desenvolvimento e bem-estar humano e natural? 

Karla Patrícia — Bom, antes acho importante esclarecer que a Psicologia Ambiental se dedica a fazer pesquisas e intervenções em diferentes ambientes e em situações diversas, podendo colaborar, por exemplo, com o planejamento  urbano, ambientes educativos e os processos de ensino e aprendizagem, ambientes hospitalares e os diversos fatores envolvidos nesse contexto — como adesão ao tratamento, relação entre paciente e equipe de saúde (que são parte do ambiente hospitalar) —, ambientes rurais e os impactos das variações climáticas na saúde do trabalhador rural. Enfim, temos um olhar amplo sobre essas relações, e as possibilidades de intervenção são inúmeras!

No entanto, gostaria de destacar aqui a importância dessa relação mais direcionada às questões de sustentabilidade ambiental e impactos climáticos, discussão tão necessária nesse momento, pois temos testemunhado fenômenos climáticos incomuns para determinadas regiões. Catástrofes como grandes enchentes ou secas, tempos frios demais ou quentes demais, trazendo diversos prejuízos para as populações e muito sofrimento devido aos desabamentos, com perdas de lugar de moradia, mortes e consequente adoecimento de diversos tipos, sobretudo, adoecimento psíquico.

E o que nós, pessoas comuns que não têm acesso às tomadas de decisões governamentais, podemos fazer em relação a isso? Como somos impactados, mesmo que não estejamos em áreas de risco?

É importante que nós observemos e que vejamos como estamos nos relacionando cotidianamente com o ambiente, desde nossas casas, bairros e cidade até as questões planetárias. É importante que tomemos consciência da relevância do nosso papel, desde revendo hábitos de consumo — uma das principais formas de individualmente ajudarmos o planeta — até na escolha dos políticos que nos representam. É importante que pensemos na pauta ambiental no momento das nossas escolhas.

A Psicologia Ambiental, desta forma, tem como preocupação colaborar nesse processo de reconhecimento por parte das populações sobre a sua força, responsabilidade e possibilidades para amenizar os impactos negativos de nossa existência sobre o ecossistema, evitando, assim, tanto adoecimento e sofrimento da sociedade atual e também das gerações futuras.

Entrevista Nota 10 — A floresta amazônica vem vivendo os efeitos de uma seca histórica causada por um rol de fatores ambientais, a maioria derivada de ações humanas. Além da morte da fauna e flora local, a Defesa Civil do Amazonas afirma que 450 mil pessoas já foram atingidas pela estiagem. De que forma essa tragédia vem afetando o bem-estar psicológico da população?

Karla Patrícia — A seca histórica que está acontecendo no Amazonas tem entristecido a todos nós e tem deixado mais à mostra a grande vulnerabilidade das populações ribeirinhas e indígenas às variações climáticas. Percebemos a falta e/ou inadequação de políticas públicas que fortaleçam essas comunidades, deixando-as menos dependentes das condições climáticas, que podem variar e que, devido às ações agressivas por parte do ser humano ao longo dos anos, têm variado de forma inesperada e drástica em diversas partes do mundo.

Como consequência temos impactos negativos sobre o trabalho e a geração de renda, sobretudo, dos que dependem da pesca e agricultura, sobre a qualidade e quantidade de água potável e de alimentos, além da mobilidade dessas comunidades, fator que também fica prejudicado. Com tantos fatores negativos sobre questões tão básicas, como o sustento de si e de sua família, é praticamente inevitável que haja adoecimento psíquico.

Uma outra coisa para a qual eu gostaria de chamar a atenção é sobre as constantes queimadas que acontecem na floresta, que se tornam mais perigosas e com efeitos mais desastrosos durante esse período de estiagem.

Nos dias em que estivemos em Manaus, pudemos vivenciar, de forma clara e direta, os impactos negativos das queimadas sobre a saúde da população. A fumaça chegava até a cidade e já nos causava desconforto respiratório e nos olhos. Então, de forma mais imediata, a fumaça das queimadas afeta a princípio a saúde respiratória das populações, principalmente dos mais frágeis como crianças e idosos. Depois, até mesmo como consequência, há uma evolução do adoecimento físico e algumas pessoas terão sua saúde psíquica também afetada.

No caso das populações que moram em zonas de floresta, estas são impactadas de forma mais cruel. Além das consequências negativas sobre a sua saúde física, há prejuízos sobre o sustento de suas famílias e a percepção de perigo iminente, de vulnerabilidade e, muitas vezes, de impotência diante dos fatos. O que gera sofrimento e adoecimento psíquico.

É muito importante que a sociedade como um todo discuta e perceba a importância de debatermos a sustentabilidade ambiental. E, inevitavelmente, que seja feito junto disso a discussão sobre justiça social e políticas públicas que deixem as comunidades menos vulneráveis às variações climáticas.

Entrevista Nota 10 — No início de outubro, o Laboratório de Psicologia Ambiental (Lapsea) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) promoveu o evento “Banhos de Amazônia - floresta, rio e cidade”, na cidade de Manaus, uma iniciativa do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental da ANPEPP. Qual a importância dessa ocasião para conscientizar a sociedade, especialmente por ter coincidido com o ápice dos efeitos da estiagem? Como a psicologia ambiental analisa a situação? 

Karla Patrícia — O evento “Banhos de Amazônia” teve como objetivo central proporcionar a vivência e a reflexão sobre o ambiente amazônico em suas múltiplas dimensões, como forma de apropriação e compromisso para a preservação desse patrimônio socioambiental brasileiro.

Esse encontro do GT de Psicologia Ambiental na Amazônia já era um sonho que alimentávamos há alguns anos, justamente pela importância da região para o país e para o mundo. No entanto, a pandemia colaborou para o adiamento do encontro, e acho que o fato de ter acontecido justamente nesse período, após o encerramento de emergência da pandemia e durante a um período de grave estiagem na região, já nos deixou mais sensíveis e atentos à vulnerabilidade das comunidades mais carentes dali. Ambos eventos jogaram luz sobre a necessidade de discutirmos as questões climáticas, sustentabilidade ambiental, justiça social e políticas públicas como temas completamente entrelaçados. Não se pode discutir um sem levar o outro em consideração.

Estarmos junto dos pesquisadores do INPA — sobretudo dos integrantes do Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental (LAPSEA), coordenado pela professora Maria Inês Gasparetto, também integrante do nosso GT, e do Laboratório de Manejo Florestal, coordenado pelo professor Niro Higuchi —, conhecendo de perto suas pesquisas, podendo visitar a floresta na companhia de pesquisadores apaixonados e comprometidos com seu trabalho, foi uma experiência ímpar, que nos enriqueceu muito como pesquisadores e cidadãos comprometidos em desenvolver pesquisas e promover ações que colaborem para a sensibilização da sociedade civil para a importância da proteção da floresta e de todos os recursos naturais.    
 
O GT congrega os pesquisadores da área no Brasil. Todos nós dirigimos pesquisas e muitos coordenam também ações de extensão nas universidades das quais fazem parte. Acredito que, a partir do que vimos, discutimos e aprendemos com os pesquisadores do INPA, em pleno contexto de desenvolvimento de suas pesquisas, e a floresta amazônica, podemos esperar bons frutos nas pesquisas e intervenções futuras realizadas de forma colaborativa.

Entrevista Nota 10 — Durante o evento, o Laboratório de Estudos das Relações Humano-Ambientais (LERHA), vinculado ao PPGP da Unifor, participou do encontro do GT em Psicologia Ambiental da ANPEPP, que neste ano foca as discussões na Amazônia e o papel da floresta no equilíbrio climático. Poderia explicar como essa colaboração surgiu e qual a relevância dela para os estudos na área?

Karla Patrícia — O LERHA tem um papel importante no desenvolvimento de pesquisas em Psicologia Ambiental no Brasil. Criado há mais de 20 anos pela professora Sylvia Cavalcante, professora aposentada da Unifor, o laboratório tem participado das reuniões do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental da ANPEPP desde o nascimento do GT, colaborando de forma ativa no desenvolvimento de pesquisas, na produção científica e nos eventos.

Desde 2017, quando a professora Sylvia se aposentou, tenho a honra e o desafio de coordenar o Laboratório, mantendo o legado deixado por ela e buscando o crescimento e fortalecimento do LERHA no cenário nacional e internacional no contexto da pesquisa em Psicologia Ambiental. Atualmente também estou na coordenação do GT de Psicologia Ambiental, junto com o professor Gustavo Massola, da Universidade de São Paulo (USP), e integro a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Ambiental e Relações Pessoa-Ambiente, presidida pelos professores Camila Bolzan (Universidade La Salle) e Mário Martins (UFScar).

Então, nós somos parte do GT, o que muito nos honra e alegra. E em todas as possibilidades de encontro, que geralmente acontece apenas durante as reuniões da ANPEPP a cada dois anos, é sempre uma grande oportunidade de troca de conhecimentos, de planejamento de ações colaborativas, de crescimento e fortalecimento da pesquisa em psicologia Ambiental no país. 

O encontro “Banhos de Amazônia” teve um caráter especial, pois aconteceu entre os eventos da ANPEPP — o último foi em 2022 e o próximo será em 2024 —, devido a importância da floresta para o Brasil e para o mundo, e estávamos em uma situação muito especial: pesquisadores de diversas regiões do país, aprendendo sobre a Amazônia com os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e hospedados nas instalações do Instituto, em plena área de floresta. Foi muito especial e temos a expectativa de que bons frutos sejam colhidos dessa experiência.