null Entrevista Nota 10: Joanne Ximenes e a arquitetura salva-vidas

Ter, 25 Agosto 2020 15:43

Entrevista Nota 10: Joanne Ximenes e a arquitetura salva-vidas

Formada pela Universidade de Fortaleza, arquiteta trabalha na linha de frente do combate à Covid-19


Egressa da Unifor, Joanne Ximenes é especialista em arquitetura hospitalar (Foto: Arquivo pessoal)
Egressa da Unifor, Joanne Ximenes é especialista em arquitetura hospitalar (Foto: Arquivo pessoal)

Uma entrevista a conta-gotas, nos intervalos de uma rotina supersônica de trabalho no Hospital Leonardo Da Vinci, aquele que foi requisitado pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), para ser unidade de referência no atendimento exclusivo de pessoas diagnosticadas com coronavírus na capital cearense.  Egressa da Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição da Fundação Edson QueirozJoanne Ximenes está na equipe da linha de frente do combate à Covid-19 como arquiteta hospitalar, mas quando se paramenta com EPIS e pijama verde toma para si funções de cuidado e atendimento que vão muito além da engenharia, manutenção e organização dos fluxos e contrafluxos daquele complexo espacial reativado em tempo recorde e que hoje comporta até 210 leitos, sendo 150 de UTI e 60 de enfermaria. 

Ora por meio de áudios, ora relatando por escrito, Joanne conta um pouco sobre a rotina de mais de 100 dias de quem ajudou a colocar um hospital inteiro para funcionar em inacreditáveis duas semanas, contando com o ímpeto de 150 profissionais dispostos a encarar uma “guerra” em nome da vida. Em linhas e entrelinhas, também narra como a multidisciplinaridade, a doação pessoal e a empatia foram fundamentais para a reinvenção de um novo conceito de atendimento e cuidado hospitalar, capaz de salvar, até agora, mais de 1.300 vidas, apesar das perdas e desafios que ainda estão postos enquanto a esperança de descoberta de uma vacina não se faz realidade, pondo fim à pandemia.

Entrevista Nota 10 - Joanne, queria começar pela sua formação. Foi ainda no curso de Arquitetura da Universidade de Fortaleza que você acabou se direcionando para a arquitetura hospitalar? Como se deu a aproximação e profissionalização nessa área? 

Joanne Ximenes - Em 2010, entreguei meu TCC na Unifor, voltado para área de acessibilidade. A entrada na área hospitalar veio na convivência com meu pai, Ernani Ximenes, que é médico cirurgião coloproctologista. Então, desde pequena, ouvia muito falar em hospitais, sempre acompanhando o trabalho dele nas gestões na saúde. Fui então me direcionando e buscando especializações nessa área até que um dia ele me chamou para um trabalho voluntário no Hospital de Messejana, onde atuava. Como necessidade imediata, queria um projeto de Agência Transfusional de custo reduzido, reutilizando alguns mobiliários pré-existentes e melhorando os fluxos. Fiz, foi submetido à aprovação da diretoria do Hemoce, que aprovou e, assim, fui convidada a prestar serviços esporádicos, para tempos depois acabar sendo contratada. Foi quando passei a atuar dentro da manutenção do Hemoce, atendendo na sequência todos os hemocentros do estado na área de manutenção predial e pequenas intervenções em prédios históricos que tinham Postos de Coleta, como no IJF – Instituto José Frota, que tem uma agência Transfusional interna na unidade próxima ao centro cirúrgico e em sua área externa um Posto de Coleta, em prédio anexo. Foi amor à primeira vista quando entendi que através daquele “simples” serviço de manutenção predial eu estava salvando vidas. Comecei a me envolver com a humanização dos serviços através da melhoria das estruturas, que era condição indispensável para uma melhor recuperação dos pacientes e uma maior eficiência nos fluxos das atividades daqueles que estavam ali na linha de frente com os pacientes, os tão respeitados doutores, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, serviços gerais, assistentes sociais, dentre tantos outros que fazem a vida do hospital acontecer. Sem dúvida, juntos somos mais fortes e aptos a superar todos os desafios.

Entrevista Nota 10 - Então, foi principalmente na prática que você buscou para se especializar na área? 

Joanne Ximenes - Sim, mas após a gradução na Unifor tive oportunidade de iniciar viagens internacionais e a curiosidade de fazer visitas técnicas em unidades da saúde, isso enquanto participava de congressos e seminários na área da saúde. As viagens eram, portanto, de conhecimento e lazer, sempre com vistas à avaliação de novos usos para edificações da saúde em diversos países como Argentina, Uruguai, Portugal, Espanha. E assim se passaram sete anos. Até que, no final de 2018, já de olho no mestrado no exterior, tendo finalizado uma especialização em Arquitetura de Hospitais, Clínicas e Laboratórios, pelo INBEC, veio a pandemia e me obrigou a postergar os planos, além de ressignificar muitas escolhas e criar novos aprendizados, vivendo um por vez. Era contratada pelo Hemoce e não poderia deixar de colocar a mão na massa e fazer acontecer para salvar vidas naquele momento. Compreendi como propósito tudo que eu tinha vivido até aqui, inclusive meus problemas de saúde pessoais, que me levaram por diversas vezes a estruturas hospitalares até vencer um câncer.

Entrevista Nota 10 - Como passou a ser o trabalho no Hemoce na pandemia? E como acabou se integrando à equipe da Secretaria da Saúde do Estado no Hospital Leonardo Da Vinci? 

Joanne Ximenes - Através do Hemoce e das agências transfusionais as portas se abriram para o mundo da arquitetura hospitalar, lembrando que elas são vitais para qualquer hospital, afinal temos o sangue como premissa para qualquer procedimento cirúrgico. Assim tive acesso aos hospitais da rede do estado, conhecendo uma realidade de aprendizado contínuo e desafios operacionais para humanizar, ambientar, qualificar, e possibilitar propostas mais dignas de trabalho e atendimento de pacientes, doadores e funcionários. O ambiente estruturado auxilia na recuperação mais célere desses pacientes, gerando assim a desospitalização e a rotatividade dos leitos. Então, quando a pandemia estourou, eu estava justamente em uma feira de São Paulo me atualizando. E fui chamada de volta para Fortaleza. Já de quarentena, de casa mesmo, comecei a trabalhar no projeto da Agência Transfusional para o Hospital Leonardo Da Vinci, que iria abrir em poucos dias. Uma semana depois estava lá dentro ajudando a equipe de engenheiros da Secretaria de Saúde, e como arquiteta do Hemoce, chegava para colaborar nas mudanças. Assim tudo começou... E os projetos e soluções foram aparecendo ali, na prancheta mesmo, no meio dos corredores, no calor da hora, numa corrida avassaladora para aprovar e solicitar orçamentos e fazer tudo acontecer em tempo recorde. Ainda hoje não conseguimos compreender como tudo nasceu e aconteceu dessa forma, o que nos faz ter a sensação de que fomos espiritualmente escolhidos. 

Entrevista Nota 10 - Qual a rotina de trabalho que passou a experimentar?

Joanne Ximenes -  Em homeoffice, na minha quarentena, já estava projetando a Agência Transfusional do Hemoce para o Da Vinci. E posteriormente o laboratório geral também. Entrei no hospital com a equipe da Secretaria de Saúde do Estado, coordenada por Dr. Cabeto, secretário de saúde, e Dr. Ernani Ximenes, sendo assessor do Dr. Cabeto. Quando cheguei lá ainda não tinha paciente. Era um hospital privado sendo transformado em público, onde eu já entendia que teríamos muitas necessidades de avaliação após ocupação para ajustes e melhorias dos fluxos, embora o número de profissionais fosse bem maior do que o convencional. Fiz o mapeamento mental e comecei a trabalhar com a equipe de manutenção e engenharia clínica. Em três dias já tínhamos o primeiro paciente com Covid-10 no hospital e os profissionais a postos com EPIs e que tinham seus usos ajustados conforme os protocolos de segurança da Anvisa e OMS diariamente. Eram os pacientes mais graves, com perfil feito pela triagem do setor de regulação do Estado, vindos das unidades básicas de saúde, como as UPAS (Unidades de Pronto Atendimento). Em dez dias, o Da Vinci já se encaminhava para vir a ser um hospital com 210 leitos, sendo 150 leitos de UTI e 60 de enfermaria. Tudo foi se transformando e se adaptando em tempo real, junto com a equipe de engenharia e manutenção da SESA. As horas de trabalho foram triplicadas, aprendi a dar plantão, como os profissionais da Saúde e só tínhamos horário na verdade para começar o dia, atuando muitas vezes ao longo de mais de 60 horas semanais, com pouquíssimas folgas. E abracei a causa como missão ainda com muito por fazer. 

Entrevista Nota 10 - Então foi muito além das funções de uma arquiteta hospitalar...

Joanne Ximenes - Sim. Setor de compras: aquisição de material. Setor de almoxarifado: distribuição de material. Setor de patrimônio: equipamentos permanentes do hospital, como camas, respiradores, tudo o que tivesse que ser tombado. E mais tudo da competência da engenharia clínica: se a ligação elétrica estava funcionando, o fluxo de material, a montagem dos leitos. Comunicação: executando papel de realizar registros e enviar conteúdos para assessorias de imprensa. E fazendo a inspeção da arquitetura hospitalar em paralelo, entendendo o manuseio que o técnico iria fazer dos equipamentos para o paciente chegar com tudo no lugar.  E a rotina passou a ser de se deparar com paciente entubado, com dor ou até entrando em surto psíquico. Atuei até mesmo dentro do time de comunicação com os psicólogos e assistentes sociais, fazendo o elo de comunicação entre familiares e pacientes em ligações online para tranquilizá-los. Na verdade, eu me predispus a tudo isso. Podia simplesmente sentar na minha cadeira e esperar as coisas acontecerem. Mas eram vidas sendo salvas ali enquanto se estruturava o hospital, entende? Então, esqueci de mim, me equipei como tinha que fazer e encarei a rotina estressante de trabalho, respaldada pela instituição: diariamente, a gente tinha uma troca de protocolo de biossegurança porque se tratava de uma doença nova. Imagina o nível de tensão e insegurança. E era mudança de mobiliário de lugar o tempo todo, troca de leitos, inserção de novos equipamentos, implantação de gás medicinal com instalação de tubulações externas... E a gente dormiu muitas noites assustados com medo de parar a elétrica e o gerador não entrar, o gás não rodar porque não deu tempo do hidrogênio chegar ou não saber a demanda precisa daquilo que os pacientes iam usar, até porque eles estavam chegando. Fazer isso no meio de uma pandemia, onde está todo mundo precisando de tudo ao mesmo tempo, foi algo inacreditável mesmo. No final, vejo muito como ganho para o Estado, que vai ganhar novos leitos de UTI há muito demandados, assim como um novo parque tecnológico com equipamentos que irão suprir posteriormente diversas unidades de saúde. E a partir dessa experiência penso que agora também vamos ter novos hospitais com novos perfis. 

Entrevista Nota 10 - Que cenas foram mais marcantes e já não saem da memória?

Joanne Ximenes - Olha como é louco: botar um banco na calçada para que o familiar espere seu paciente que veio a óbito é humanização, você concorda? Mas não podia botar um banco na calçada do hospital porque o familiar não podia esperar o paciente saindo do hospital de óbito. É pandemia, eu não podia juntar pessoas, não podia criar pontos de apoio. Na calçada oposta ao hospital já tinha um banco pré-existente e ali passou a ser banco de apoio. Mas se a gente colocasse a gente estaria aglomerando de forma errada, entende? Quer dizer, a arquitetura dizia uma coisa, mas a experiência dizia o contrário. Eu olhava pela janela e baixava a cortina e ali na frente havia um familiar sentado no chão da calçada do outro lado chorando, soluçando alto. E eu dizia: ele está na área mais contaminada e o máximo que eu posso fazer é passar a metros de distância e pedir a ele que, por favor, se levante porque temos que pensar na segurança dele. Fiz isso centenas de vezes... Eles de álcool na mão, de máscara e às vezes de luva achando que estavam protegidos. Não estavam. Era a área mais suja, porque era por ali que chegava o paciente doente e saía o paciente de óbito.  Era massacrante pra gente como profissional ver isso e não poder minimizar, porque tinha que olhar primeiro para quem ainda estava internado lá em cima e precisava ser salvo... 

Entrevista Nota 10 - E o que ficou na lembrança como estimulante ou mesmo comovente? 

Joanne Ximenes - Muita gente e muitas empresas fizeram doação na porta do hospital, de tudo o que você puder imaginar: comida para os profissionais, material, móvel, cama, colchão, ao ponto de termos que relocar para outras unidades. Ganhamos 450 ovos de páscoa, éramos 450 e conseguimos distribuir, desde o zelador ao médico. Um chocolate fazia toda a diferença naquele Dia da Enfermagem. Um sorriso por diversas vezes começava o dia de alguém de forma diferente naqueles domingos que antes eram um dia de família e descanso.  E teve o piano e tudo o que aconteceu em torno dele. É um piano de 80 mil reais e que pertence ao ex-dono do hospital, o Dr. Boghos Boyadjian. Por causa da pandemia, ele deixou o piano no hospital por entender a importância da música para os profissionais e pacientes. Sou do coral do Hemoce.  E também acredito na cura da música. Um belo dia, descobri que a nossa diretora, Dra. Maria Helena Chen, que chegou a ficar internada na UTI do Da Vinci, ao se recuperar abriu o piano e tocou. Pensei: a música vai curar e vamos superar tudo isso. Foi quando juntamos as pessoas e descobrimos os talentos um do outro: tinha um técnico de enfermagem que tocava piano e cantava, Efrain Efésio, e a técnica de enfermagem Vitória Rocha, que cantava. E assim, até hoje, se faz música no hospital, seja na troca de plantão do dia ou da noite. Em torno do piano é que a gente passou a se conhecer melhor, mesmo que somente no olhar, já que todos estão com seus EPIs. Era tudo ao vivo sem ensaio ou mesmo repertório montado e tem sido uma política de humanização para o profissional e o paciente. Tem depoimentos de pacientes que passaram 30, 40 dias internados, alguns na UTI, dizendo ouvir as músicas, lembrando trechos e o os nomes delas. Porque são músicas de igreja, além do repertório clássico. Havia uma orientação psiquiátrica para ser assim, ou seja, não podia ser aleatória essa seleção... e depois foi aparecendo violão, cantores e até uma arquiteta que canta em coral... Por fim, o que também já ficou fortemente marcada na lembrança foi a milésima alta do hospital: a de uma idosa - e justamente no Dia da Avó.