null Tradição e modernidade à moda do freguês

Qui, 26 Novembro 2020 14:55

Tradição e modernidade à moda do freguês

Saiba como marcas sólidas e grifes de luxo acompanham as mudanças de comportamento e as novas tecnologias


Marcas cearenses Catarina Mina e Rendá aliam tradição e inovação em suas produções (Fotos: Divulgação)
Marcas cearenses Catarina Mina e Rendá aliam tradição e inovação em suas produções (Fotos: Divulgação)

Quando a roupa da avó faz brilhar os olhos da neta em pleno século XXI a pergunta está no ar: a quantas anda o sempre revelador diálogo entre o tradicional e o contemporâneo quando o assunto é moda? Como, afinal, o mercado de marcas sólidas e grifes de luxo se mantêm na crista da onda, afirmando referências clássicas em meio à busca incessante pelo novo e às mudanças de comportamento e tecnologias? Se, a preços de hoje, há inclusive um flagrante desinteresse das novas gerações pela ostentação no vestir, quais as palavras mágicas que vêm alimentando o imaginário de quem busca ter estilo em meio a um turbilhão de influências e discursos criativos? Moda sem gênero, sustentabilidade, comércio justo (fairtrade), manualidades (handmade), propósito: eis algumas delas. 

Livre de rígidos protocolos sociais, a moda vestiu-se de fluidez, tornando-se também uma contundente ferramenta de comunicação entre o indivíduo e a sociedade. É o que observa, dentro e fora de sala de aula, a professora Priscila Medeiros, que coordena o curso de Design de Moda da Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição ligada à Fundação Edson Queiroz. “A questão do momento, que é o grande desafio para o designer de moda, remete justamente a esse alinhamento entre o local e o global – ou entre tradição e contemporaneidade. Por isso chamamos tanto a atenção dos estudantes para a vocação regional, que no Ceará se encontra na renda de bilro, no richelieu, no bordado e no filé, entre outras artesanias. Mas ao lançar mão dessas riquezas ancestrais, dos saberes e fazeres artesanais, é preciso imprimir uma cara nova e contemporânea às peças. Ressignificar, seja brincando com a modelagem, textura e usabilidade da peça ou mesmo com as cores da estação... Tecer uma conectividade entre nossas tradições e o que é tendência global na moda, como também observar os padrões de comportamento e consumo contemporâneos, a fim de promover um diálogo criativo”, ensina.

Para Priscila, inovar a partir da tradição também é uma forma de valorização e fomento da sustentabilidade cultural. “Isso faz parte de uma macrotendência que leva diversos setores a valorizarem a matéria-prima e a própria economia local, voltando o olhar criativo do designer de moda para aquilo que remete a minha identidade enquanto indivíduo e ser social. Daí a preocupação ambiental, a questão de gênero, a busca por espiritualidade, essa moda consciente e política que é tão contemporânea. Digo aos alunos e alunas: não é a criação pela criação. O que diferencia e desperta talentos únicos, aqueles que fatalmente ganharão destaque, é o processo de pesquisa, buscar o que tem de novo, ouvir o que o consumidor quer, entender como ele vive, qual a sua visão de mundo e como projeta o futuro para, assim, enaltecer uma cultura fundadora, mas com uma pegada arejada e um olhar diferenciado ou requintado. Várias marcas do Ceará operam nessa equação, agregando valor ao produto e ao profissional que está por trás de toda a cadeia criativa e sustentável”, frisa.

O fio de Catarina

Bolsas feitas à mão dão início ao desenho arrojado que culminou em um laço perfeito entre designers, artesãos e consumidores apaixonados pelo artesanato cearense e instigados a valorizá-lo. Eis a síntese do êxito da marca Catarina Mina, fundada há 12 anos no estado do Ceará pela designer Celina Hissa. Não sem propósito: o que ela tornou possível foi uma história empresarial preocupada em ser tão justa quanto criativa, tecida primeiramente em crochê e a muitas mãos, a partir de uma parceria de trabalho artesanal sustentável junto a crocheteiras do município de Itaitinga, mulheres detentoras de habilidades manuais quase em extinção e tocadas a tempo pelo desafio de unir seus saberes e fazeres ancestrais à sofisticação e arrojo típico do design contemporâneo.

Da aposta compartilhada em reavivar a produção manual de uma tipologia rara e até então subvalorizada fez-se o crescimento processual do negócio: enquanto a rede de mais de 300 artesãs saltou de uma situação de vulnerabilidade social para a conquista da renda fixa, com direito à participação nos lucros da empresa, a marca Catarina Mina ganhou projeção nacional e internacional exportando para mais de 17 países e comercializando seus produtos nas principais capitais do país. Ponto a ponto, a malha se estendeu: em 2015, ao lançar o projeto #umaconversasincera, Celina levou a Catarina Mina a ostentar o título de primeira marca de custos abertos no Brasil. Hoje, é possível constatar através do site da empresa quanto do investimento vai para cada parte da cadeia produtiva. 

Em um ano de reposicionamento e abertura de custos, a Catarina Mina quadriplicou o número de mulheres artesãs envolvidas no processo, isso sem tornar a produção seriada, respeitando e  mantendo o cuidado e o tempo próprio de feitura de cada peça. Pela façanha, já exibe premiações nacionais: os prêmios Ecoera de sustentabilidade, idealizado por Chiara Gadaleta, da Vogue, e Brasil Design (3M). “Apostamos na transparência e diálogo com o consumidor, um elemento essencial dessa cadeia. Queremos que ele se conecte com tudo o que tem por trás do produto acabado. Por isso é que também todas as nossas bolsas vêm com QR-Code, informando quem é a artesã que fez a peça, de onde ela veio e como foi desenvolvida. É nossa intenção compartilhar ainda os desafios inerentes a esse processo criativo que envolve geração de renda e sustentabilidade. Isso mostra que não somos só uma marca. Abraçamos uma causa que envolve os conceitos de fairtrade e se insere inclusive em movimentos mundiais, como o Fashion Revolution, campanha para a erradicação do trabalho escravo nas marcas de moda”, detalha Celina.  

A marca que quer atrair para si um consumidor consciente também não cansa de se perguntar como atuar de forma cada vez mais diversa unindo a tradição do artesanato com a contemporaneidade do design. Daí porque, em 2015, também passou a conceber oficinas e serviços de consultoria e capacitação junto a artesãs do município de Sobral: o projeto Fia Oficina, que beneficiou mais de 20 mulheres no distrito de Aracatiaçu, é um braço da Catarina Mina que se estendeu ao longo dos anos e vem procurando atrelar segurança financeira ao modo artesanal de trabalho que resiste do litoral ao sertão e hoje já gira em torno de diferentes peças do vestuário feminino ou mesmo decorativas feitas por quem domina o ponto do crochê, do filé e da renda - ou mesmo o entrançado das palhas.

Mais recentemente, em 2019, foi a vez da Catarina Mina colocar em prática o projeto Olê Rendeiras, em parceria e graças ao apoio da QAIR, que uniu forças para impactar socialmente a região oeste do Ceará, a partir do município de Trairi. Em foco, a renda de bilro e um tecer sobre almofadas transmitido manualmente de geração para geração, dando conta de um legado familiar e comunitário de valor simbólico inestimável, como faz questão de frisar Celina Hissa. Em torno dela e da equipe parceira, o maior tesouro: mais de 100 rendeiras hoje na ativa a ponto de, ao longo dos últimos meses de pandemia, conseguir inclusive desenvolver uma coleção previamente vendida via redes digitais de relacionamentos.

“Enquanto marca pequena com foco em sustentabilidade e handmade nós também tivemos que nos reinventar na pandemia e foi assim que apostamos no modelo de venda sob encomenda. Uma atitude tão simples, mas que é completamente transformadora nesse mercado. Uma espera de praticamente dois meses por parte de quem compra permitiu que a artesã fosse capitalizada, com matéria-prima garantida e calculada. Além disso, permitiu que o tempo de trabalho fosse respeitado, com prazos que abraçam a complexidade do fazer renda. Isso porque no projeto Olê Rendeiras cada peça demora um mês para ser feita. E foi esse o dilema: como viabilizar uma coleção de pronta-entrega no contrafluxo da crise sanitária e sem capital de giro? Aí fomos conversar abertamente com o consumidor sobre isso nas mídias sociais. Acionamos essa rede de pessoas que apostam conosco no fortalecimento do artesanato cearense. Resultado: vendemos mais de 144 peças de bilro em 15 dias. A nossa meta eram 100 peças, indo até um pouco além da capacidade de produção das artesãs, mas elas mesmas disseram: a gente consegue! E conseguimos”, comemora Celina.

Para ela, justamente por ser “pequena” e não operar em estruturas tão rígidas, a Catarina Mina pode adaptar processos internos mais rapidamente.  Mas isso será menos ou mais vantajoso conforme a capacidade de cada criador de escapar às armadilhas de um mercado de moda capitalista que insiste em tratar a criação como produto meramente estético. “Conseguimos transformar nosso produto em serviços, desenvolvemos coleções a distância, lançamos sob encomenda, estamos capacitando as artesãs para gestão de negócios e o próximo passo é abrir uma associação para elas, conectando 14 comunidades no Trairi a partir da renda de bilro, além de abrir frentes comerciais e estratégias para impulsionar o artesanato em outras regiões do Ceará. São mais de 5000 rendeiras de bilro na região do Trairi. Queremos impactar positivamente a vida de todas. Mas se é desafiante operar numa cadeia artesanal diante da voracidade e efemeridade do mercado, os novos consumidores também estão aí para entender e responder a isso conosco quando se interessam pela história por trás de cada produto e fazem suas escolhas levando em conta questões como veganismo na moda, materiais sustentáveis, impacto social. Tudo isso não é modismo passageiro, até porque sabemos que não existe fora, o mundo é um só e cada gesto interfere no todo”, conclui Celina. 

Fascínio pelo feito à mão

Data do século XVI a principal matéria-prima que empresta ares de nobreza à marca Rendá, criada pela empresária Camila Arraes, em 2016, tendo como sede sua Fortaleza natal: é a partir da renda renascença que peças do vestuário feminino e até vestidos de noivas são produzidos sob seu olhar cuidadoso, unindo a tradição do trabalho secular das rendeiras nordestinas à estética contemporânea expressa nas ruas dos grandes centros urbanos e chancelada, a cada nova temporada, pelo mercado globalizado da moda. Para Camila, no entanto, não há transformação ou renovação que possa vir a colocar em risco a atemporalidade contida no laborioso trabalho artesanal que, segundo ela própria afirma, chegou ao Brasil através das freiras portuguesas.

“A renascença é uma renda manual sofisticadíssima e infelizmente estamos assistindo ao fim desse legado, já que jovens artesãs e artesãos não parecem ter interesse em dar continuidade a esse processo criativo. Fiz uma minuciosa pesquisa até me aproximar de algumas comunidades rendeiras no interior do Nordeste e identificar rastros de um trabalho artesanal de valor inestimável, para mim próximo da arte. Hoje, trabalho com um grupo de mulheres experts em renda renascença em Fortaleza e quero vir a capacitar, em curto prazo, outras herdeiras dessa habilidade única que infelizmente vem se perdendo com o tempo – e não porque haja desinteresse por parte dos novos consumidores, mas pelo tempo que a sociedade e o mercado contemporâneos parecem não mais querer dar ao que é feito à mão e de forma não seriada”, reflete Camila.

Para ela, no entanto, insistir na possibilidade de reinvenção da tradição é escolha de vida sem volta. Daí porque sequer gosta de se referir às suas criações como peças de uma coleção. “Brinco com minhas clientes e colaboradoras dizendo que não fazemos moda, justamente porque eu detestaria viver nesse mundo da efemeridade, onde se lança uma coleção e daqui a poucos meses ela já entra em saldo de promoção. A gente não faz promoção. Isso porque nossas peças não saem de moda. Elas realmente têm um caráter de arte e um viés clássico, por isso não passam. Você pode tirar do guarda-roupa uma peça nossa daqui a cinco anos e ela vai estar megamoderna e super usável. O feito à mão tem esse valor agregado: a renda renascença, o bordado richelieu, o bilro, tudo isso permanece como técnicas centenárias. E o que a gente dá é um toque de modernidade através de modelagens arrojadas com caimentos perfeitos ou quando casamos o tradicional com materiais nascidos modernos, como o couro e as franjas. Ou ainda quando adotamos as cores da estação e as aplicamos sobre a renda renascença, que é originariamente branca”, ilustra Camila.

E que passem os modismos. Porque a criadora da Rendá garante: a renda renascença, anteriormente também utilizada sobre as mesas de famílias abastadas em seus clássicos jantares, vai continuar gerando fascínio ao ocupar os guarda-roupas contemporâneos. “Como se trata de uma roupa atemporal quem compra a peça não só usará em diversas circunstâncias como irá vê-la perpassar de geração para geração. A mãe verá a filha usando e isso já foge completamente ao modelo de consumo voraz imposto pelo capital, até porque toda a nossa produção é 100% algodão, o que garante ainda mais a durabilidade. Assim, não há porque ficar surpresa se você acessar o nosso site e encontrar peças do início de nossa trajetória, ainda em 2016, com o mesmo frescor e toque contemporâneo das mais recentes criações, vendendo tanto quanto a produção mais recente”, observa Camila. 

Não há fio solto. Através da Rendá, uma rendeira do Nordeste do Brasil ensina ao mundo todo como tradição e modernidade podem vir a namorar. “Você sabe quanto tempo de trabalho é consumido até o término de uma toalha de mesa ou vestido de renda renascença? Não menos que oito meses. Então valorizamos sim o movimento das ruas, estamos atentas aquele jeans descolado que é lançado nas passarelas em Nova Iorque, não temos pudor sequer em nos inspirar em arabescos de igrejas européias para misturar tudo isso ao nosso DNA, mas queremos estar antenadas com o mundo sem abrir mão de nossa artesania, que é singular e cai bem em qualquer mix de tendências. A ordem é perpetuar esse fazer tão nobre e manter viva a ideia da moda como expressão da nossa identidade”, defende Camila. 

Moda que, para ela, também diz sobre o desejo universal e demasiado humano de ser visto. “Muitas clientes falam que jamais passam despercebidas nos eventos em que usam as nossas peças. Entendo isso como se a peça Rendá fosse um espelho para olharmos para dentro de nós, um elo de ligação entre contemporâneos e antigos, a partir dessa renda tão antiga mas reapresentada de cara nova, justamente para afirmar uma beleza que não passa”, festeja a criadora da marca que, em tempos de pandemia, se viu fazendo videochamadas para tirar medidas da clientela fiel que se somou às novas apaixonadas por renda, responsáveis inclusive pelo flagrante aumento de vendas virtuais.