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Seg, 23 Janeiro 2023 15:54

Entrevista Nota 10: Daiane Neutzling e a consciência sustentável no desenvolvimento econômico

Mestre em Agronegócio e doutora em Administração, Daiane fala sobre trajetória na carreira acadêmica, além de explicar o funcionamento das cadeias de suprimentos no desenvolvimento sustentável


Daiane é docente do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)
Daiane é docente do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Fortaleza (Foto: Ares Soares)

Autodenominando-se “cearucha”, uma gaúcha cearense, a pesquisadora Daiane Mülling Neutzling já vive no Ceará há seis anos. O principal motivo da mudança para a Terra do Sol foi seu interesse nas possibilidades de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Administração de Empresas (PPGA) da Universidade de Fortaleza, ligada à Fundação Edson Queiroz.

Segundo ela, o PPGA é um dos poucos do Brasil que possui a área de concentração em Fundamentos e Processos Estratégicos para a Sustentabilidade, contando com três linhas de pesquisa: “Estratégias e Competitividade”, “Organizações e Sociedade” e “Operações e Mercados” — essa última sendo sua linha de atuação enquanto docente e orientadora do Programa.

Graduada em Ciências Econômicas, Daiane é mestre em Agronegócios e doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral sanduíche na Universidade de Kassel, na Alemanha. Ela é líder do Núcleo de Estudos em Estratégia e Sustentabilidade (NESS) da Unifor desde 2017, além de ministrar a disciplina “Negócios de Impacto Social” do Mestrado Profissional em Administração (MPA) da Universidade.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, a professora fala sobre a carreira acadêmica, além de explicar o funcionamento das cadeias de suprimentos no desenvolvimento sustentável e compartilhar os resultados de sua última pesquisa, publicada em uma revista científica internacional.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Você é graduada em Ciências Econômicas, mestre em Agronegócio e doutora em Administração. Poderia explicar como essas três esferas inicialmente distintas se uniram em sua carreira? De que forma elas se complementam e influenciam sua competência enquanto profissional? 

Daiane Neutzling – O tema da sustentabilidade foi transversal a toda a minha formação acadêmica. Na graduação, trabalhei com viabilidade econômica de culturas alternativas para produção de biodiesel na região sul do Rio Grande do Sul. Já no mestrado, fiz uma análise sobre as estratégias que as empresas produtoras de biodiesel aplicavam em toda a cadeia produtiva. Na época havia um incentivo do Governo Federal para o desenvolvimento do mercado de biodiesel e esse era um tema de grande interesse para a academia e o mercado no RS. Então eu explorei a temática da sustentabilidade nas áreas de economia e administração rural.

Já no doutorado, analisei como as empresas desenvolviam estratégias de sustentabilidade aplicadas aos seus processos internos e ao longo das suas cadeias de suprimentos, focando em relacionamentos com fornecedores e parceiros. Absolutamente todos os produtos que adquirimos vêm de uma cadeia de suprimentos, ou seja, uma sequência de processos de transformação com diferentes empresas e/ou organizações atuando. Logo, um entendimento muito claro nessa área é o de que uma empresa não consegue ser sustentável sozinha. É fundamental que ela se engaje com seus fornecedores, e até mesmo com os seus clientes para que conheça os seus impactos negativos e busque soluções para reduzi-los ou até mesmo extingui-los. A inovação é uma grande aliada das organizações para pensar, implementar e até mesmo criar processos e produtos mais sustentáveis.

Portanto, a minha formação foi interdisciplinar e me possibilitou adquirir um conhecimento bastante amplo em sustentabilidade sob a perspectiva da gestão.

Entrevista Nota 10 — Sua área de concentração abrange Gestão de Inovação, Tecnologia e Sustentabilidade, sendo ainda uma das docentes que atuam na linha de pesquisa sobre Operações e Mercado no PPGA. Como surgiu o interesse pelo mundo acadêmico e, principalmente, por esses ramos da administração?

Daiane Neutzling — Eu sempre gostei muito de fazer pesquisa, desde a graduação era uma das coisas que gostava. Acabei me aproximando mais de professores que eram mestres e doutores, que falavam como essa área da pesquisa funcionava. Na metade do meu curso de Economia, fui estagiar na Embrapa e passei dois anos na área de economia rural, em um ambiente que é primordialmente de pesquisa agrícola.

Eu trabalhava com estudos de viabilidade econômica, estagiava nesse âmbito e meu orientador era quem fazia esses estudos, em diferentes áreas. Então lidava com pesquisador de melhoramento genético de plantas, de produção de frutíferas — como pêssego, amora e mirtilo, porque era a Embrapa Clima Temperado. Essa minha experiência como estagiária foi muito importante porque também me tornei bolsista na iniciação científica e escrevi alguns artigos iniciais na Embrapa mesmo. Foi daí que eu tive o interesse de seguir estudando e fazer mestrado e doutorado, inclusive por muito incentivo dos professores que trabalhavam lá.

Entrevista Nota 10 — Em diferentes trabalhos seus, os assuntos abordados costumam perpassar um ponto em comum ao falarem sobre cadeias de suprimentos. O que esse termo significa e qual a sua importância para a manutenção da sociedade como a conhecemos?

Daiane Neutzling — É uma cadeia de processos onde se envolvem diferentes empresas e organizações e eles trocam informações e recursos nesse processo de transformar um bem. Então para fazer um lápis, fazer coisas muito simples até às mais complexas, hoje em dia, as organizações não internalizam todas as funções, todos os processos de transformação. O que acontece: cada empresa se torna especialista em uma parte de transformação.

Vamos pensar em produtos bem mais complexos, como um automóvel. A gente chama essas empresas — como Ford, Peugeot, Hyundai — de montadoras porque elas são as responsáveis por montar um produto final, que é o carro. Mas as peças não são produzidas por elas. Elas têm um design, uma tecnologia de motor, por exemplo, que vai determinar como isso funciona, mas elas têm um grande número de fornecedores que são responsáveis por produzir partes específicas e que, no final, vão fazer parte deste carro. Mais uma vez: ela é uma montadora. Então ela tem que lidar com diferentes fornecedores, de diferentes peças, que estão em diferentes locais do mundo. Isso é uma cadeia de suprimentos. É um fluxo contínuo de processos de transformação onde há troca de materiais, de informação e de conhecimento, sobretudo.

E a importância é que absolutamente tudo que a gente consome, tudo que a gente compra, está inserido em uma cadeia de suprimentos. Seja um produto ou até mesmo um serviço. Se você vai num restaurante e pede um prato de comida, tem uma cadeia de suprimentos ali que é organizada de forma que os alimentos que dão base para produção daquele prato específico, eles estão inseridos nessa cadeia. Mais uma vez, o dono do restaurante tem um grande número de fornecedores que ele tem que se relacionar e fazer contratos. Então, as cadeias de suprimentos fazem parte do nosso dia a dia.

Por que é importante estudar sustentabilidade no contexto de cadeias de suprimentos? Porque a gente, enquanto consumidores e de uma forma geral na sociedade, está mais preocupado com o que está chegando até nós. Então tenho certeza que qualquer pessoa, de uma forma consciente, não quer comprar produtos ou ter acesso a serviços de empresas que não são conscientes, não são responsáveis. Que, por exemplo, vão usar produtos tóxicos, colocar pessoas em condições insalubres de trabalho, colocar crianças para trabalhar na sua cadeia. A gente quer que as empresas tenham consciência da responsabilidade delas e que busquem informações sobre quais são os seus fornecedores, quem são seus parceiros, em que condições de trabalho esses fornecedores estão operando.

Então, trabalhar com sustentabilidade em cadeia de suprimento nada mais é do que buscar informações mais precisas, mais claras, buscar transparência para que isso seja entregue a todos nós — sociedade, consumidores em geral — e a gente possa consumir nossos produtos e serviços de uma forma também mais tranquila. Sabendo que, para isso, a gente não está agredindo, destruindo o meio ambiente, não está vulnerabilizando sociedades ou comunidades.

Entrevista Nota 10 — Cada vez mais, as indústrias são cobradas por suas ações e consequências na natureza. Essas responsabilização e monitoramento acontecem não só por parte dos governos e organizações mundiais, mas também tem ocorrido como cobrança de posicionamento por parte da sociedade. De que forma a sustentabilidade socioambiental vem se alinhando com a sustentabilidade comercial das empresas?

Daiane Neutzling — Antes de mais nada eu gostaria de esclarecer um ponto que vejo onde muitas pessoas se equivocam. Sustentabilidade e Desenvolvimento Sustentável não são sinônimos, são palavras cujos significados se complementam. Sustentabilidade é uma condição, uma característica do que é sustentável, ou seja, que se mantém por mais tempo, se sustenta. Essa é a definição do dicionário. Quando a gente traz essa palavra para um contexto, ela adquire um significado um pouco diferente, que é justamente o contexto do Desenvolvimento Sustentável: uma definição política, que surge em um documento das Nações Unidas, como uma proposição de desenvolvimento econômico que deveria contemplar a preservação do meio ambiente e a melhoria das condições sociais das populações (sustentabilidade ambiental e social). O termo Desenvolvimento Sustentável se tornou um marco para os países discutirem a condução das suas políticas de desenvolvimento e crescimento econômico e como poderiam afetar as condições de sustentabilidade ambiental e social. Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e seus 169 indicadores, hoje em dia, servem como um guia para que governos, empresas, universidades e outros tipos de organização possam adotar ações de redução de impactos negativos e metas de impacto positivo.

Então, de forma resumida, sustentabilidade é uma condição: podemos ter uma economia baseada em uma sustentabilidade fraca — em que se desmata, em que se polui de todas as formas sem uma devida preocupação, em que se mantém estruturas sociais muito desiguais etc — ou uma sustentabilidade forte — onde as instituições investem no desenvolvimento de tecnologias menos poluentes, carros elétricos, matriz energética renovável, por exemplo, políticas públicas para reduzir desigualdades sociais. Já o Desenvolvimento Sustentável é uma proposta de ser um meio. Os ODS são mecanismos para se adotar e buscar a condição da sustentabilidade forte.

Daí agora a minha resposta: Existem empresas que desenvolvem seus modelos de negócios tendo a sustentabilidade como um pilar fundamental. Ou seja, desde a sua concepção, a sustentabilidade ambiental e/ou social são objetivos primordiais, junto à busca pelo lucro. Estas geralmente são as mais inovadoras porque elas se preocupam em usar matérias primas que têm menos impacto ambiental, são empresas que buscam relacionamentos diferenciados com fornecedores, buscam adotar certificações sustentáveis etc. Já para as empresas convencionais, a gestão de práticas de sustentabilidade é também uma estratégia de gestão de riscos. Lembra da cadeia de suprimentos? Pois bem, a adoção de práticas de sustentabilidade nas organizações requer, antes de mais nada, a compreensão dos impactos negativos. Isso faz com que as empresas busquem informações detalhadas sobre quais as principais atividades que geram impacto negativo, se estão nos seus processos internos ou nos processos que envolvem fornecedores. Uma vez que se tem esse conhecimento, é possível traçar planos de ação para minimizar os impactos.

Dessa forma, uma empresa pode melhorar os seus processos, ser mais inovadora, conhecer melhor os seus fornecedores, desenvolver projetos conjuntos, inclusive. Com isso a empresa pode minimizar os riscos de ter seu nome envolvido em algum escândalo porque um fornecedor usou um produto poluente proibido ou se está poluindo uma região ou se não paga os direitos trabalhistas dos seus colaboradores ou, pior, têm trabalho infantil nas suas atividades. Além disso, todo o discurso de ESG hoje em dia é sobre ter uma agenda clara de práticas de sustentabilidade e o monitoramento dessas práticas para suprir o mercado investidor de informações. Os investidores não irão apostar o seu capital em empresas que não gerem os seus riscos relacionados à sustentabilidade.

Portanto, investir na gestão da sustentabilidade é um fator determinante para a sobrevivência das empresas no mercado no médio e longo prazo. Essa é uma exigência da sociedade cada vez maior e que agora toma força com o mercado financeiro/investidor adotando a agenda ESG como exigência.

Entrevista Nota 10 – Em seu último estudo, publicado na revista International Journal of Operations & Production Management junto com outros pesquisadores, você analisa os impactos da Covid-19 em cadeias de suprimentos ao redor do mundo. As consequências da pandemia sinalizam algum tipo de problema ou pontos fracos no esquema de organização e manutenção do mercado, principalmente pelo fato de vivermos em uma economia global?

Daiane Neutzling – Sendo bolsista da Capes durante o doutorado, também tive a oportunidade de fazer um doutorado sanduíche na Universidade de Kassel, na Alemanha no departamento de Supply Chain Management, coordenado pelo professor Stefan Seuring, que é uma das referências mundiais em pesquisas sobre gestão da sustentabilidade em cadeias de suprimentos. Desde 2012, ano que fui estudar com ele, mantemos contato e atuamos em projetos de colaboração. O docente já visitou a Unifor duas vezes, já tivemos alunos de doutorado do PPGA que cursaram o doutorado sanduíche no seu departamento e até mesmo aluno de mestrado nosso que foi fazer o doutorado completo, recebendo inclusive premiação de distinção pelo uso de métodos inovadores na sua tese. Ou seja, é uma relação de trabalho que já dura 10 anos. A colaboração mais recente foi justamente esse artigo sobre o impacto da covid em cadeias de suprimentos ao redor do mundo.

Com o início da pandemia, um dos temas principais de discussão na academia foi sobre todos os problemas que as empresas estavam sofrendo. Por exemplo, presenciamos a subida nos preços de diversos alimentos nos supermercados. Isso é fruto da falta de fornecimento de insumos em tempo hábil, ou ainda na indústria automotiva, onde pudemos observar a falta de carros novos no mercado — em muitos casos, os clientes esperaram meses para receber o veículo novo e, consequentemente, houve uma valorização dos carros usados. Estes exemplos são resultados do que chamamos de “disrupções nas cadeias de suprimentos”, que é o fenômeno de uma influência severa de eventos externos às cadeias e que não podem ser inteiramente controlados.

Diante deste cenário e dado o fato de que o professor Seuring mantinha a rede de contatos com ex-alunos em diversas partes do mundo, surgiu esse objetivo de fazer uma pesquisa para analisar os impactos da pandemia do Covid-19 em cadeias de suprimentos em diferentes partes do mundo.

Um estudo Delphi foi conduzido, que consiste em rodadas de perguntas feitas a especialistas do setor/contexto investigado, sendo eles acadêmicos pesquisadores da área e pessoas que atuavam no mercado. Desta forma, especialistas das seguintes regiões participaram do estudo: África, Brasil, China, Europa, América do Norte, Índia, Paquistão e Irã. Como resultado da pesquisa, exploramos as dez principais questões apontadas pelos especialistas que foram relacionadas a vulnerabilidades e gerenciamento das cadeias de suprimentos, além das estratégias específicas das cadeias de acordo com as regiões.
 
Os resultados mostram que as diferenças regionais são particularmente evidentes em três construtos: logística, governo e agilidade da cadeia de suprimentos. Com relação às análises sobre o Brasil, identificou-se as dificuldades em infraestrutura de telecomunicações e transportes, além de desafios de sustentabilidade e deficiências na força de trabalho. Comparado às demais regiões, é interessante observar que embora o Brasil e a Índia/Paquistão compartilhem muitas condições estruturais de economias emergentes e semelhanças em vulnerabilidades, identificou-se uma capacidade maior nas medidas de resposta e resiliência das cadeias de suprimentos. A observação final foi de que o Brasil se destaca como um único cluster no que diz respeito às operações de restauração que se assemelham, em partes, às condições das cadeias na Europa e América do Norte.

Entrevista Nota 10 – Para encerrarmos, gostaria de compartilhar uma mensagem conosco?

Daiane Neutzling – Gostaria de dar destaque ao trabalho que fazemos no PPGA da Unifor. O curso é um dos poucos do Brasil que possui a sua área de concentração em "Fundamentos e Processos Estratégicos para a Sustentabilidade", com três linhas de pesquisa: Estratégias e Competitividade, Organizações e Sociedade e Operações e Mercados – essa última, a minha linha de atuação. Ou seja, a sustentabilidade está na base de todas as nossas disciplinas e orientações de trabalhos de mestrado e doutorado. E é este o motivo que me fez mudar para Fortaleza há 6 anos. Hoje já me considero uma "cearucha" (risos). 

Este é um tema que me faz brilhar os olhos todos os dias porque vejo a possibilidade de dar a minha singela contribuição para construir um mundo melhor, seja através de pesquisas ou trazendo essa perspectiva para a formação de futuros gestores de organizações privadas e públicas. Nossos alunos são futuros tomadores de decisão, formuladores de políticas públicas. A minha esperança é que eles lembrem das discussões que fizemos em aula, reflitam sobre os impactos que as suas organizações estão causando e também decidam contribuir para um mundo com instituições mais responsáveis e preocupadas com a sustentabilidade do planeta.

Um último comentário sobre as minhas pesquisas no PPGA/Unifor junto a alguns colegas é sobre Negócios de Impacto Socioambiental, que contemplam esses novos modelos de negócio que possuem o propósito de gerar impacto social e/ou ambiental positivo ao mesmo tempo que geram lucros. Há um grande movimento no fortalecimento de um ecossistema de impacto na cidade de Fortaleza e a Unifor está engajada muito fortemente nesse trabalho junto às instituições públicas locais e organizações da sociedade civil (OSC). Este tem sido o tema que eu tenho trazido muito fortemente para as minhas aulas na graduação, assim como para as orientações de mestrado e doutorado.