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Ter, 22 Dezembro 2020 20:53

De volta ao começo: o que narram os jovens médicos após oito meses de Covid-19

Egressos da Universidade de Fortaleza compartilham relatos sobre suas experiências no combate à pandemia ao longo 2020.


Em retrospectiva ao desafiador ano de 2020, Unifor Notícias Mobile revisitou egressos entrevistados no ínicio da pandemia. (Foto: Ares Soares/Acervo Pessoal/Divulgação)
Em retrospectiva ao desafiador ano de 2020, Unifor Notícias Mobile revisitou egressos entrevistados no ínicio da pandemia. (Foto: Ares Soares/Acervo Pessoal/Divulgação)

Em maio último, jovens recém-formados egressos do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza, instituição ligada à Fundação Edson Queiroz, contaram sobre seus “batismos de sangue” na linha de frente do combate à Covid-19 em Fortaleza e interior do estado.

Agora, vencida a estreia e findo o desnorteante 2020, voltam a relatar como têm enfrentado a maior crise sanitária do século XXI em meio a dúvidas e preocupações que permanecem, mas também às voltas com incontestes avanços da Ciência e toda a esperança depositada nas vacinas já desenvolvidas.

O “morde” e “assopra” do coronavírus

“Tô voltando pro atendimento, não poderei mais responder agora, desculpa”. São meio-dia e meia de 21 de dezembro de 2020 e enfim se conclui uma troca de áudios via WhatsApp que se desenrola há três dias com repetidos hiatos de tempo entre perguntas e respostas. A semana de trabalho no posto de saúde do município de São Gonçalo do Amarante já havia começado cedo para a médica Vívian Mota e foi no intervalo de almoço daquela segunda-feira pré-natalina que ela encontrou brecha para relatar mais detidamente como vem sendo sua rotina diária de pelo menos 10 horas de trabalho entre o interior e a capital, Fortaleza, onde hoje também cumpre plantões de final de semana no setor de emergência do hospital Antônio Prudente. 

Aos 25 anos, a jovem egressa da Universidade de Fortaleza se diz cansada, mas não desestimulada, por estar desde o início de 2020 combatendo uma mesma doença sobre a qual a Medicina admite ainda ter muito o que aprender. Em maio último, quando Vívian passou a experimentar uma pesada rotina de trabalho distribuída entre os hospitais de Solonópole e Maranguape, além da UPAS de Fortaleza, o cenário lhe parecia bem mais “assustador”, dado o desconhecimento absoluto da comunidade científica mundial frente à Covid-19. Mas o que ela não imaginava é que, no apagar das luzes de 2020, mesmo já segura com relação à profilaxia e o tratamento adequado para casos leves, moderados e graves, ainda estivesse se surpreendendo com o alto poder de contágio e um gráfico crescente de notificações e mortes causadas pelo novo coronavírus na maioria dos estados brasileiros.

No país, já são mais de 180 mil óbitos por Covid-19 desde o início da pandemia, sendo quase 10 mil só no Ceará, segundo informa o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde. De olho nos números e estudos científicos, o que a jovem médica mais lamenta é que hoje sejam os jovens os principais vetores de transmissão da doença. “Ainda há muito casos de Covid-19 aparecendo, mas pela minha experiência em pronto-atendimentos e emergências hospitalares, como agora, eles parecem ter menor gravidade hoje. A Medicina também já conhece melhor a doença e se preparou para enfrentá-la, descartando o que se comprovou que não funciona [...]. Com isso, os profissionais de saúde estão mais tranquilos. Mas o problema é que a população relaxou muito nos cuidados e assim a Covid-19 passou a acometer não só idosos debilitados pela idade, mas também – e agora principalmente – a juventude. Já é possível perceber nos hospitais da capital e interior: ao circular em excesso e sem a devida proteção, a moçada é que mais tem se infectado, além de levar o vírus para dentro de suas casas”, observa Vívian.

Para a médica, se esse é o dado novo mais recente, ele, sozinho, não explica a alta taxa de transmissibilidade e o rastro de morte que a Covid-19 tem deixado no país. “Vimos pela televisão e redes sociais o quanto houve aglomeração durante as últimas eleições. Esse, com certeza, foi um dos fatores que resultou na piora do quadro. Ou seja, os próprios dirigentes públicos infringem as regras de biossegurança recomendadas por eles. Desse jeito, a população não se conscientiza da gravidade da doença e só vai entender a real situação quando precisar de um leito hospitalar e não conseguir, por superlotação. Isso aconteceu lá no início da pandemia e pode acontecer novamente depois dos encontros natalinos familiares, caso não reforcemos os cuidados.  Portanto, a notícia boa é que nós, profissionais de saúde, estamos com mais preparo para lidar com a doença, mas o descaso em geral, que é público e notório, coloca todo esse esforço em risco”, alerta Vívian.

Se antes a sensação de impotência imperava frente à virulência da doença e a falta de estrutura ou maquinários nos hospitais para lidar com ela, agora o sentimento é de frustração por entender que, mesmo aprimorando cada vez mais os tratamentos, o comportamento preventivo não se consolidou em paralelo. “Revelado está que a Medicina sozinha não irá vencer a doença, porque ela também está profundamente ligada à sociedade, seus hábitos, valores e até ao senso de cidadania. Daí porque, talvez, o nível de civilidade hoje pudesse ser medido pelo número de pessoas que usam máscara ou não, porque isso indica o quanto eu me preocupo com o coletivo e tenho consciência de que não estou e nem vivo sozinha no mundo”, sustenta Vívian.

Para além das críticas, a jovem médica percebe que, no Ceará, há um avanço em particular que merece destaque quando o assunto é pandemia: “a vigilância em saúde sempre me pareceu o ponto fraco da Medicina. Mas a crise sanitária causada pela Covid-19 nos fez evoluir quanto a isso. Tivemos que aprender a notificar e fazer isso bem feito, porque só assim poderemos evitar a propagação de doenças similares ou novas que ainda virão. Identificando e notificando a doença, antes que ela possa se alastrar descontroladamente, é que temos chance de preventivamente criar e fazer valer um plano de contenção”.

O elogio maior, no entanto, vai mesmo para o desenvolvimento e liberação das vacinas contra a Covid-19 que cientistas de todo o mundo vieram a anunciar em menos de um ano. “São inquestionáveis o empenho e a seriedade da comunidade científica e não há razão alguma para polêmica quanto à eficácia dessas vacinas descobertas e desenvolvidas em tempo recorde, já que todas elas passaram por todas as fases e testes necessários. Foi exatamente como aconteceu com a vacina para a gripe H1N1, que foi liberada rapidamente e se mostrou adequada com o tempo. O que querem fazer descredenciando as vacinas é jogo político e não aceitamos isso. O queremos é ver toda a população vacinada, embora saibamos que no Brasil isso será um feito bem desafiador, dada a falta de ações planejadas e executadas conjuntamente entre governos, instituições e sociedade civil”, sublinha Vívian.

E, se a vacina já é o presente de Natal mais cobiçado de 2020, que venham os desejos para 2021: para Vívian, poder voltar a conviver com a família e os amigos da forma como era antes está entre as prioridades. “Aprendemos que a vida é um sopro. E que cada momento com quem amamos é único e inesquecível. Então, precisamos cuidar da saúde física sim, mas também da emocional, que se alimenta justamente dos afetos. Por conta da minha profissão e do grau de exposição a que me exponho ao tratar pacientes com Covid-19 tive que sair da casa dos meus pais e morar no interior. Então, passei a vê-los somente aos finais de semana, mantendo todos os cuidados que os mais jovens deveriam ter com os mais velhos. Assim, sonho com o dia em que esse medo não vai mais estar entre nossos relacionamentos e aí vou querer aproveitar cada minuto dessas companhias”, suspira a médica que, levando a sério o uso de máscara e distanciamento social, já se permite ir a restaurantes sem aglomeração e praticar exercício físico ao ar livre três vezes por semana, decidida a perder os quilinhos a mais que vieram, sem culpa, junto com a pandemia.

É preciso estar atento e forte

De médico de UTI móvel, passando pela UPA de Caucaia e Hospital do Coração de Messejana até finalmente pisar o eixo vermelho do hospital Antônio Prudente, em Fortaleza. De maio para cá, o jovem médico egresso da Universidade de Fortaleza, Luiz Sucupira, olha para trás como se um único ano profissionalmente dedicado à Medicina valesse mais do que uma vida inteira. Ele que, aos 24 anos, adiou a prova de Residência, só recentemente retomada, para colar nos médicos com mais experiência e aprender sobre como superar uma crise sanitária tão grave como a gerada pela pandemia da Covid-19. Passados oito meses, já pode dizer com alívio que a maioria dos casos atendidos na porta da emergência do único hospital em que trabalha hoje não é de extrema gravidade. Ainda assim, não se rende a comemorações antecipadas, ciente de que, em se tratando de coronavírus, tudo ainda se mostra volátil e incerto.

“Estamos passando por um segundo pico de casos de Covid-19 em Fortaleza, isso não há dúvida. E o que preocupa mais no momento é que todos relaxaram nos cuidados e pode haver uma alta ainda maior do que a registrada no começo, principalmente depois dos encontros de final de ano. O cenário que se agrava também volta a preocupar seriamente quando somos arrebatados pela recente notícia de que diversos países da Europa e de outros continentes aderiram às medidas de proteção contra a disseminação de uma nova cepa do coronavírus, que os britânicos do Reino Unido disseram estar em circulação em seu território. Falam que seria até 70% mais transmissível, o que já levou até a restrições de voos para o Reino Unido. Quer dizer, estamos ainda tateando a doença, a reinfecção também intriga, mas na primeira queda dos números as pessoas aqui já esquecem da importância do isolamento social e do uso contínuo de máscaras sempre que sai às ruas. Então, eu ainda vejo o vírus como uma caixinha de surpresas e por isso não podemos deixar de atentar para o seu poder de virulência”, sugere, precavido, o jovem médico.

Medidas extremas de isolamento social sim, caso necessário. Eis o que defende o também médico recém-formado e egresso da Universidade de Fortaleza, Daniel Cardoso, 24. Depois de atuar durante seis meses na linha de frente do Hospital Leonardo da Vinci, em Fortaleza, único integralmente voltado a pacientes com Covid-19, ele acha que vale tudo, inclusive fechar fronteiras, para controlar uma nova onda de transmissão do coronavírus pelo mundo. “Não queremos prolongar o que estamos passando, muito menos viver isso novamente. Por isso é preciso que os Governos evitem a todo custo novos colapsos de seus sistemas de saúde até as vacinas chegarem. Estou confiante em relação a elas e acredito que quando estiverem amplamente disponibilizadas, arrisco dizer que a partir do segundo semestre de 2021, poderemos enfim voltar a ter paz”, acredita.

Enquanto deposita esperança no porvir e faz uma pausa nos atendimentos emergenciais para fazer sua prova de Residência em São Paulo, Daniel relembra os regimes de plantões diários de 12 horas de trabalho no Hospital Leonardo da Vinci para comemorar inclusive o fato de que os jovens médicos recém-formados já não estão sendo chamados  com a mesma frequência para substituir os veteranos que, no início da pandemia, foram acometidos pela doença e precisaram se afastar. “Em maio eu já estava atendendo pacientes graves com Covid-19 e acredito que esse início quase que às cegas, mas de muito sangue no olho de todos os profissionais de saúde, nos deixou 'alertas' do que poderia vir a acontecer caso não houvesse cada vez mais investimento em infraestrutura, EPIs e pesquisa. Tive oportunidade de atuar em um momento bastante delicado, onde várias pessoas estavam desacreditadas, mas saio mais instigado do que cansado. Começaria tudo outra vez, mas rezo para que não seja necessário”, ri-se o médico que hoje se divide entre os estudos, o surf e a família.