null Entenda como a Comunicação Não Violenta (CNV) ajuda a dialogar com quem pensa diferente de você

Qui, 3 Setembro 2020 15:31

Entenda como a Comunicação Não Violenta (CNV) ajuda a dialogar com quem pensa diferente de você

Profissionais de diferentes áreas do conhecimento destacam os benefícios que a prática pode trazer na condução de situações difíceis


A Comunicação Não Violenta estimula a diversidade na troca de ideias e experiências (Foto: Getty Images)
A Comunicação Não Violenta estimula a diversidade na troca de ideias e experiências (Foto: Getty Images)

A conversa azedou e qualquer possibilidade de entendimento foi por água abaixo, acirrando conflitos de toda a ordem. Quem já não viveu esse tipo de impasse no ambiente de trabalho, em sala de aula, entre refregas familiares ou mesmo nos mais despretensiosos papos com amigos? No ambiente acadêmico, refletir sobre imbróglios e confrontos entre indivíduos ou grupos é também se deparar com o desafio de fazer valer aquilo que o americano Marshall Rosenberg classificou como Comunicação Não Violenta (CNV). E por que o termo, bem como as técnicas atreladas a ele, têm gerado interesse em organizações de todas as naturezas, inclusive a ONU? 

Na Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição da Fundação Edson Queiroz, docentes de diversas áreas de conhecimento e atuação profissional ensaiam respostas, tudo porque os modos não violentos de comunicação se tornaram um caminho possível de aproximação e empatia, algo capaz de revolucionar os relacionamentos e contornar ou evitar situações conflitantes no âmbito dos negócios ou na vida pessoal de quem busca chegar pacificamente a consensos, usando como ferramenta a linguagem. Sob a perspectiva do Direito, a coordenadora do curso de Especialização em Mediação e Gestão de Conflitos da Pós-Unifor, Gabriela Lima, vaticina: é através de diálogos construtivos e claros canais de expressão que o espírito de cooperação pode prevalecer sobre os conflitos, solucionando-os ou mesmo se antecipando a eles. 

“A gestão de conflitos é uma habilidade necessária a profissionais de todas as áreas de conhecimento – e não só pata o advogado e bacharel em Direito. E pode se apresentar no mundo de diversas formas: pela negociação direta entre duas pessoas que têm um problema ou desafio a resolver, sem a necessidade de um terceiro imparcial para facilitar o diálogo; ou pela mediação, que inclui um terceiro imparcial para facilitar o diálogo entre as partes. É aí que entra a comunicação não violenta como procedimento fundamental para a gestão de conflitos, por possibilitar a construção de um diálogo transparente e agregador, contribuindo não só para a efetiva resolução do conflito como para o fortalecimento dos laços entre as pessoas que estão em conflito, gerando confiança. Ou seja, a comunicação não violenta prioriza os relacionamentos, leva em consideração o interesse de todos, para que no final se chegue a alguma forma de consenso, a uma solução final em que todas as partes ganhem”, explica a professora.

Segundo Gabriela, pesquisas vêm demonstrando que a advocacia do futuro vai ser muito mais consultiva e preventiva, buscando agregar e não distanciar as pessoas. Daí a importância crescente da comunicação não violenta. “O advogado, a partir de seu conhecimento jurídico, aliado à análise sistêmica e aos interesses de seu cliente, vai conseguir gerenciar os conflitos para evitar que eles aconteçam, o que é diferente do que simplesmente litigar, ser visto como um cão de briga. Hoje, os excelentes mediadores, negociadores ou gestores de conflitos assim o são porque pouco têm que mediar um problema instalado – e sim prevenir, a partir de práticas diárias e cotidianas. Exemplo: uma empresa que tem muitos problemas trabalhistas. Se chefes e colaboradores fossem capacitados e sensibilizados para uma comunicação não violenta talvez esses conflitos não existissem. Falo de uma comunicação mais aberta, que escuta cada um dos indivíduos, entende os seus interesses e me faz ser entendido por todas as pessoas envolvidas no problema. É um procedimento capaz de tratar o dilema de forma técnica, sem pessoalizar as ações, nem atribuir culpas ou desferir ofensas. Tudo é tratado de forma imparcial e acessível, mostrando o que deve ser mostrado, pontuando o que deve ser pontuado, a fim de que todos os envolvidos entendam o que está em negociação e possam tirar igual proveito das soluções apresentadas”, ilustra.

Dizer e escutar, eis a questão. Para a professora, a prevenção de conflitos pode estar simplesmente na construção de sistemas de feedbacks contínuos a partir dos quais os colaboradores e a gestão superior de uma empresa, por exemplo, receberão críticas pontuais para a melhoria do relacionamento. Pesquisa de clima, ela aposta, seria uma outra forma de gerenciar conflitos, evitando demissões. “A ideia norteadora da comunicação não violenta é sempre a mesma: aproximação para fortalecimento dos laços, já que a maior parte dos conflitos pode ser evitada quando as pessoas entendem o que há de errado e assim se dispõem a melhorar para que todos sigam mais felizes. Isso vale para relacionamento conjugal, profissional ou entre chefes de Estados. Compor um canal aberto de comunicação, uma comunicação clara, objetiva, transparente e não violenta já previne vários conflitos. O objetivo, portanto, é adquirir as habilidades de falar e ouvir genuinamente, falar e ouvir de forma pacífica e agregadora”, defende Gabriela.

Calar o ódio, ouvir o outro

Perceber a comunicação como mediação, troca, polifonia de vozes. A professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade de Fortaleza (Unifor), Alessandra Oliveira, retoma autores como Jesus Martín Barbero e Nestor Garcia Canclini para enfatizar e valorizar a ideia central de todo o processo comunicacional, aquela que diz respeito à alteridade ou percepção do outro. “Quando nos comunicamos com alguém o que está em jogo não é só a emissão pura e simples de um comunicado, ou seja, não se trata de apenas transmitir informes, mas perceber e respeitar o interlocutor, alguém que também compõe a sua narrativa. Portanto, aos buscarmos e defendermos uma comunicação não violenta é preciso estarmos abertos à pluralidade de opiniões, ouvir e acessar diferentes versões e argumentações, como prega o jornalismo. Minha opinião não é única e o outro, aquele que pensa ou fala diferente de mim, não é meu inimigo, mas um formador da minha própria identidade, já que a gente se forma a partir da diferença”, observa.

Para ela, se a comunicação não violenta precisa necessariamente ser dialógica os modos violentos de expressão e interação, sobretudo na web, vêm dizer sobre uma sociedade ainda bem pouco tolerante diante do que não é espelho. “Sempre converso com os alunos sobre a necessidade de deixar fluir as diferentes vozes na internet. O algoritmo já nos lança numa bolha, de forma que na maioria das vezes só falamos com os iguais. Como se não bastasse, ainda temos a tendência de bloquear quem vota ou pensa diferente de nós. Isso só gera intolerância ou estranhamento diante da diferença, quando não violência. Claro que também há um traço cultural nessa agressividade que vemos tão abertamente nas redes, por isso é tão importante criar mecanismos legais de regulação do uso da internet capazes de desfazer a confusão que fazem sobre o que é liberdade de expressão e respeito ao outro”, opina. 

É a partir de diferentes repertórios e ferramentas de mediação que a professora também analisa a complexidade dos próprios veículos e mede sua carga virulenta de comunicação. “Quando o filósofo Byung-Chul Han, a partir da obra “No Enxame”, analisa os porquês de atacarmos tanto o outro nas redes sociais, disseminando ódio e criando polaridades, uma das razões cogitadas é o suposto anonimato, assim como a sensação de distanciamento forjada no meio virtual. Ali, é como se a gente não assinasse embaixo, não houvesse o compromisso do feedback imediato, como se não afetássemos e fossemos afetados pelo que falamos. Então, sem o olho no olho, não se estabelecem certos filtros e muitas vezes é aí que se perde o respeito. Inclusive, o autor faz questão de rever a etimologia da palavra respeito, que é olhar de novo. Nas redes sociais, ao que parece, não temos tempo para olhar de novo. E outro parece distante, desvinculado de nossa fala ou ação”, problematiza.

Para Alessandra, é essencial conhecer os caminhos de navegação na web e entendê-la por dentro para que a comunicação não violenta encontre eco nas redes sociais. Entre as estratégias já em curso, celebra a “limpeza” que as próprias empresas proprietárias das plataformas digitais foram levadas a fazer diante das violências geradas e disseminadas via fake news, assim como o combate aos robôs deliberadamente forjados para prejudicar pessoas e enterrar reputações em larga escala. “Os meios de comunicação oficiais também podem contribuir muito para disseminar normas de comportamento pacificadoras na internet, que privilegiam a transparência e a pluralidade de vozes, evitando o que Byung-Chul Han chama de comportamento de enxame, aquele que segue certa tendência e surfa na onda do momento, que pode ser a do ódio”, alerta.

E se a comunicação não violenta deve levar em conta a singularidade do sujeito, dando vazão à diversidade e à peculiaridade das histórias de vida de cada indivíduo, vem do campo específico da Psicologia a proposta de oferecer lugares de escuta inclusive – ou sobretudo – para os que deflagram mensagens violentas.  É o que pensa a psicóloga e membro do Laepcus - Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade da Universidade de Fortaleza (Unifor), Evilene Abreu, citando Freud, o criador da Psicanálise e defensor da premissa de que “a cura vem da fala”.  “A agressividade, disse Freud, é intrínseca, faz parte da constituição de todos nós. Mas a violência é o fenômeno que a cultura tenta amainar ou apaziguar, sem dar conta. Há violências de todas as formas no mundo e o processo civilizatório traz esse sofrimento manifestado nas diversas falas do sujeito. Daí porque a psicologia vem trazer a escuta singular e qualificada para tratar particularidades, inclusive do sujeito que transmite a mensagem violenta. Não à toa, a máxima da Psicologia é escutar sem preconceitos ou julgamentos, independente da sua atitude. Todo sujeito precisa de um espaço de acolhimento para ser ouvido e refletir sobre sua fala”, enfatiza. 

Para Evilene, ofertar grupos terapêuticos dentro das diversas instituições a fim de dar voz às diferenças, é, portanto, um caminho possível para se cultivar uma comunicação não violenta. Tudo porque acolher e perceber o outro em suas singularidades diz também sobre uma matéria do sensível a ser esculpida em sociedade. Citando Rosemberg, o pioneiro na sistematização teórica da comunicação não violenta, ela reflete: “o autor escreveu sobre nossa capacidade de nos mantermos compassivos e o papel crucial da linguagem e do uso das palavras nisso. E se antes dele Freud já alertava para a cura através da fala uma das formas de sermos compassivos com o outro então seria pelo viés da fala. Mas tecendo uma visão mais macro, como sermos compassivos em uma sociedade normatizadora que é tão preconceituosa, onde há tantos julgamentos morais? Como abrir canais de fala e escuta em uma sociedade violenta como a contemporânea que silencia e ainda não acolhe a contento a diversidade?”, questiona.

Atentar e combater a violência estrutural do Estado e suas ramificações nas diversas camadas da vida social tem sido, portanto, o desafio crucial daqueles que se arvoram a fazer ecoar a fala e compor uma escuta livre de estereótipos para indivíduos e grupos marginalizados. “Dentro da própria Saúde Mental nos valemos dos diagnósticos, o que não deixa de ser violento, já que estamos enquadrando aquele sujeito em um nome, classificando e dizendo algo dele - e não dando voz. Como inserir pessoas em risco social e dar vazão aos seus desejos em uma sociedade normatizadora que no mais das vezes pretende silenciá-las ou anulá-las? A proposta de uma inserção social mediada pela comunicação não violenta é um caminho possível capaz de dar voz a esses personagens segregados que dizem sobre violências que não dizem respeito só a eles enquanto indivíduos, mas dizem da nossa cultura, do nosso tempo. Daí a importância de escutar para refletir e transformar”, conclui.

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