null Entrevista Nota 10: Humberto Cunha e o papel dos Direitos Culturais na sociedade

Seg, 19 Julho 2021 10:19

Entrevista Nota 10: Humberto Cunha e o papel dos Direitos Culturais na sociedade

Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Unifor enfatiza a importância da valorização e proteção do patrimônio cultural 


Humberto Cunha é autor do livro “Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades”, resultado de mais de duas décadas de pesquisas (Foto: Ares Soares)
Humberto Cunha é autor do livro “Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades”, resultado de mais de duas décadas de pesquisas (Foto: Ares Soares)

O profícuo encontro entre Direito e Cultura marca a notável trajetória do professor e pesquisador Humberto Cunha. Das aulas de teatro na juventude ao pós-doutorado na Universidade de Milão-Bicocca (Itália), a caminhada de dedicação à preservação de um patrimônio que atravessa a História da humanidade encontrou lugar na produção científica relacionada aos Direitos Culturais

Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC), Cunha atua também como advogado da União e presidente de honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. 

Recentemente, seu trabalho de destaque à frente do Encontro Internacional de Direitos Culturais recebeu reconhecimento do curso de doutorado em Ciências Jurídicas da Universidade de Sassari (UNISS - Itália) por meio de convite para integrar o colegiado da instituição. 

Ao Entrevista Nota 10, o professor Humberto Cunha, membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas e do Instituto dos Advogados do Ceará, fala sobre a importância da valorização cultural, além de enfatizar de que forma as contribuições acadêmicas podem ajudar a solucionar os principais problemas jurídicos desse setor. Confira na íntegra: 

Entrevista Nota 10 - Quando iniciou sua trajetória de dedicação à cultura? Quais foram as motivações?

Humberto Cunha - É difícil fixar uma data, pois tive estímulo da minha avó, Maria Saraiva, desde menino, nascido na década de 1960. Depois, fui aluno da época áurea da TV Educativa – Canal 5 – hoje TV Ceará, que desenvolvia uma pedagogia toda baseada em arte-educação. Cursei Turismo na antiga Escola Técnica Federal do Ceará – hoje, IFCE – onde fiz teatro. Depois, ocupei cargos de chefia na Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, na Gestão de Violeta Arraes; em seguida fui Secretário de Cultura de Guaramiranga, na Gestão de Dráulio Holanda. Por fim, dediquei-me ao direito, sempre enfatizando os direitos culturais.

Entrevista Nota 10 -  Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Unifor, você lidera também o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC), que atua há mais de dez anos. Que trabalhos vêm sendo desenvolvidos pelos integrantes?

Humberto Cunha - Anualmente, o GEPDC renova seu planejamento de investigação e eventos para tentar contribuir com soluções para os principais problemas jurídicos que contemporaneamente afetam o setor cultural. Para você ter uma noção, ano passado estudamos os impactos da pandemia sobre o referido setor. No corrente ano, resolvemos dedicar nossos esforços para homenagear uma das expressões que mais nos ajudaram a abrandar o grande confinamento a que ficamos submetido: o humor, que é ao mesmo tempo universal e que tanto caracteriza o povo cearense. Relativamente a ele, estamos fazendo uma pesquisa bem exaustiva da jurisprudência em todos os tribunais do país, para localizar e analisar os litígios que surgem por causa da atividade humorística. Também estamos fazendo uma investigação e um conjunto de debates sobre a potencialidade de o humor cearense ser reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Município, do Estado, do Brasil e até pela UNESCO.

Entrevista Nota 10 - Outra realização do GEPDC é o Encontro Internacional de Direitos Culturais, que acontece desde 2012. Qual o principal objetivo do evento?

Humberto Cunha - Em cada ano os objetivos específicos se alteram, mas há um objetivo geral permanente, que é o de consolidação e valorização dos direitos culturais como disciplina jurídica autônoma, uma vez que esses direitos, até agora, têm ficado escondido ou inadequadamente observados em outras disciplinas, como o direito administrativo ou a antropologia jurídica. E esse problema não é só brasileiro, razão pela qual o EIDC ajuda no fortalecimento dos direitos culturais em todos os países que enviam representantes para dele participar.

Entrevista Nota 10 - O Brasil, embora saibamos que tem uma rica diversidade cultural, mostra também altos índices de desigualdade no acesso à cultura. Uma pesquisa do IBGE constatou que 44% dos pretos e pardos vivem em cidades sem cinemas, contra 34% da população branca, por exemplo. Na sua avaliação, o que é preciso para mudar esse cenário?

Humberto Cunha - De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), não há propriamente um direito à cultura, pois todas as pessoas são portadoras e possuidoras de uma dada cultura, mesmo que seja pouco difundida e valorizada. O grande direito cultural previsto na mencionada Declaração é o de cada ser humano participar livremente da vida cultural da comunidade e de fruir das artes e dos progressos científicos. As desigualdades sociais e econômicas afetam enormemente esse direito de escolhas culturais, pois se a pessoa não tiver acesso ao cinema, no exemplo por você mencionado, não se pode dizer que ela escolheu livremente não ver filme por este equipamento. Na minha avaliação, esse cenário poderá ser mudado com o cumprimento dos preceitos constitucionais sobre a temática, principalmente o que determina ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais.

Entrevista Nota 10 - Abordando um pouco a pandemia de Covid-19: quais foram os impactos dela no setor cultural e como as políticas públicas podem atuar para uma recuperação?

Humberto Cunha - Virou jargão, infelizmente verdadeiro, dizer-se que o setor cultural, sobretudo com as manifestações que demandam atividades e público presenciais, foi o primeiro a ser afetado e será o último a ser plenamente restabelecido, por motivos óbvios. As dificuldades foram generalizadas e traumáticas, com desemprego e até fome de muitos da comunidade artística. Por outro lado, este setor desenvolveu uma expertise no uso de ferramentas como a internet, gerando até mesmo novas linguagens e novas propostas criativas e de comunicação cultural em setores como a música, os museus e as bibliotecas. Mas a crise persiste gigantesca, e em casos tais, mesmo em países arraigadamente capitalistas e defensores do estado mínimo, a atitude mais inteligente, para o benefício de todos, vem dos programas de fomento estatal. É isso o que se espera.

Entrevista Nota 10 - Professor, dessa forma, qual a importância dos Direitos Culturais para a produção artística, preservação dos saberes e da memória?

Humberto Cunha - Os direitos são instrumentais que visam resguardar bens considerados importantes pelo legislador, que prevê punições para aqueles que os violem. Os direitos culturais podem definir liberdades, como as de criação e difusão; podem determinar prestações de bens e serviços, como o acesso a recursos públicos, ou estabelecer estímulos positivos e negativos para que dada atividade seja desenvolvida ou refreada, conforme ela seja favorável ou agressora de valores humanos. Os direitos culturais devem ser, portanto, asseguradores das políticas culturais nos campos das artes, das memórias coletivas e dos fluxos de saberes. A eficácia de tais direitos, como de quaisquer outros, depende do empenho social.

Entrevista Nota 10 - Sua obra “Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades” esteve entre os 20 livros mais vendidos da plataforma Amazon, no critério Direitos Humanos. A publicação foi lançada no Brasil, Uruguai e Itália. Poderia falar um pouco sobre o processo de concepção?

Humberto Cunha - Graças a Deus o livro mencionado continua em boa colocação; faz uns 3 dias, ela estava em terceiro lugar, mesmo depois de 3 anos do lançamento da primeira edição. Agora, está no mercado uma segunda edição revista e ampliada e a obra está sendo traduzida para o espanhol.

Esse livro é o resultado de tentativas e erros de mais de duas décadas de dedicação aos direitos culturais. Com ele, imagino ter desenvolvido uma teoria específica para os direitos culturais, que os enxerga de per se, com seus instrumentos, princípios e institutos próprios. Penso que ele preencheu uma lacuna acadêmica e isso foi determinante para a boa aceitação do livro até agora, e oxalá que ela persista.

Entrevista Nota 10 - Recentemente, você foi convidado a participar do Colégio do Curso de Doutorado em Ciências Jurídicas da Universidade de Sassari (UNISS - Itália), reconhecimento ímpar pela comunidade acadêmica internacional. Como recebeu o convite e como avalia essa conquista?

Humberto Cunha - Quando recebi o e-mail com o convite, quase não acreditei, pois a Universidade de Sassari tem sua origem quase ao mesmo tempo em que os portugueses chegaram ao Brasil, ou seja, no Século XVI. Precisei estudar para entender que as universidades italianas têm em seus conselhos acadêmicos professores estrangeiros, indicados em razão de sua produção acadêmica. Antes desse convite, eu já havia participado, como palestrante, de dois eventos na referida Universidade, sendo um em 2018, sobre a temática “Direitos, Arte, Direito”, e o outro em 2019, que foi uma Lectio Magistralis (Aula Magna) para o Doutorado em Direito de lá, abordando o tema “Teoria e Prática dos Direitos Culturais”, baseado no livro do qual falamos acima. Essas atividades, juntamente com a participação do Coordenador da Linha “Direito e Cultura” do Doutorado da UNISS, o Professor Domenico D’Orsogna, no Encontro Internacional de Direitos Culturais, acredito que foram decisivas para o convite, que tanto me honra, e que fortalece a perspectiva de que uma Universidade brasileira, no caso a nossa Unifor, por meio de um dos seus professores, desenvolve a solidariedade acadêmica e realiza produção de excelência, ao ponto de participar de um órgão vital para a vida acadêmica de uma universidade importante para a Itália a para a Europa.