null Entrevista Nota 10: Doutora em Psicologia Social, Luana Souza fala sobre minorias sociais, exclusão e desigualdade no Brasil

Qua, 16 Dezembro 2020 18:25

Entrevista Nota 10: Doutora em Psicologia Social, Luana Souza fala sobre minorias sociais, exclusão e desigualdade no Brasil

“Só conseguiremos avançar enquanto sociedade quando reconhecermos os nossos problemas”, afirma Luana, docente da Universidade de Fortaleza.


A Psicóloga Luana Souza coordena o Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES) (Foto: Arquivo Pessoal)
A Psicóloga Luana Souza coordena o Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES) (Foto: Arquivo Pessoal)

Nos últimos anos, o mundo tem debatido uma série de transformações no que diz respeito aos direitos sociais dos indivíduos. Em 2020, por exemplo, o movimento Black lives matter (“Vidas negras importam”, em tradução livre) provocou comoção internacional, voltando a atenção dos indivíduos para o racismo estrutural presente nas sociedades. Outras questões muito presentes no dia-a-dia dos noticiários envolvem violência contra a mulher, direitos de populações LGBTQ+, inclusão de pessoas com deficiências e outros muitos assuntos no âmbito dos grupos denominados como minorias. 

Para trazer luz ao assunto e ao seu impacto no campo da Psicologia, o Entrevista Nota 10 conversou com a Profa. Dra. Luana Elayne Cunha de Souza. Luana possui Doutorado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba e é docente da Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, no curso de graduação em Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Além disso, é coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES) e membro da Associação para o Desenvolvimento da Psicologia Social (ADEPS). Também integra o Grupo de Trabalho "A Psicologia Social e sua diversidade teórico-metodológica" da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

Confira a entrevista a seguir.

Entrevista Nota 10 - Quais são os tipos de exclusão social presentes e mais fortes em nosso país?

Luana Souza - A exclusão social está alicerçada em diferentes formas de preconceito existentes em nossa sociedade. “Preconceito” tem sido uma palavra muito utilizada no senso comum e, embora seu sentido esteja correto na maioria das vezes, ela também aparece como sinônimo de outras palavras com sentidos próximos, como estereótipos e discriminação, mas que na verdade têm outros significados. A definição clássica mais consensualmente adotada pela psicologia social é aquela de Gordon Allport (1954/1979), que define preconceito como uma atitude aversiva ou hostil contra um indivíduo que pertence a um grupo socialmente desvalorizado, simplesmente porque ele pertence a esse grupo.

A partir dessa definição podemos fazer algumas considerações: a primeira é que o preconceito é um fenômeno situado no campo das relações intergrupais dentro de um contexto social. Ou seja, um indivíduo não sofre preconceito por qualquer característica ou situação aleatória, mas sim por ter determinadas características (como ser negro, ser gordo, ser afeminado, ser mulher) que lhe identificam como membro de um grupo que é socialmente desvalorizado pela sua cultura.

(Imagem: Getty Images)

Uma segunda consideração provém do fato do preconceito ser uma atitude. Atitude é outro conceito clássico da psicologia social que pode ser definida como uma avaliação de pessoas ou objetos sociais composta por três componentes: um cognitivo (que diz respeito aos estereótipos, ou seja, crenças errôneas socialmente compartilhadas sobre um grupo de pessoas, por exemplo, o estereótipo de que todos os gays são pervertidos), um afetivo (que se refere aos sentimentos e emoções que esses grupos de pessoas despertam [em alguns indivídos,] por exemplo, [aqueles que dizem] não gostar ou ter aversão a homossexuais) e um comportamental (que corresponde a uma intenção de se comportar de acordo com as crenças [pessoais] e emoções sobre esse grupo de pessoas; por exemplo, querer xingar ou bater em um homossexual).

A terceira consideração, e aqui eu respondo diretamente a pergunta, é que existem diversos grupos que são socialmente desvalorizados em nossa cultura (como negros, mulheres, população LGBT+, gordos, idosos, pessoas com deficiência, pessoas com transtornos mentais, indígenas e nordestinos). Portanto, existem diversos tipos de preconceito que são construídos com bases em valores humanos, normas sociais e estereótipos diferentes sobre os grupos sociais. Todos esses grupos socialmente desvalorizados podem ser chamados de minorias sociais; são minorias não em termos numéricos, mas sim devido à posição de desprestígio social e até mesmo pela negação de direitos humanos fundamentais.

Entrevista Nota 10 - De que forma a saúde mental dessas pessoas que são marginalizadas cotidianamente é atingida?

Luana Souza -  A saúde mental dessas pessoas é atingida de várias formas.  Primeiro, de um ponto de vista mais individual, os estereótipos que são compartilhados socialmente de que esses grupos sociais são inferiores repercutem diretamente na autoestima das pessoas em questão. Muitas mulheres, por exemplo, não se acham capazes de serem bem sucedidas em determinadas áreas de exatas ou de gestão porque desde pequenas não foram estimuladas a gostar e praticar matemática e raciocínio lógico. Elas também foram ensinadas que precisam ser “salvas por um príncipe” para ter um “final feliz”, e assim vemos muitas mulheres que acham que só conseguem ser felizes se tiverem um homem ao seu lado.

Em segundo lugar, não só os estereótipos errôneos que são compartilhados sobre os grupos sociais, mas a própria experiência de viver a discriminação afeta drasticamente a saúde mental de minorias sociais. Ser recorrentemente vítima de racismo, homofobia, transfobia, gordofobia, ser uma vítima de violência contra a mulher, dentre outras formas de discriminação, mina não só a autoestima dessas pessoas, mas compromete sua saúde física e mental. Existem diversos dados na literatura mostrando que os índices de depressão e suicídio entre indivíduos membros de grupos minoritários, como a comunidade LGBT+, por exemplo, são muito mais elevados.

Com relação à comunidade LGBT+, já existe, inclusive, uma teoria - a Teoria do Estresse de Minoria [conceituada pelo pesquisador Ilan H. Meyer em 2003 no artigo “Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: Conceptual issues and research evidence”] que especifica uma série de diversos estressores que somente essas pessoas vivem e que afetam drasticamente sua saúde mental.

Em terceiro lugar, cabe salientar que muitas vezes indivíduos membros de grupos minoritários não têm acesso adequado aos serviços de saúde, o que pode acarretar em um agravamento das condições de saúde mental dessas pessoas. Por exemplo, pessoas de classe social baixa - e no Brasil não podemos esquecer que a maioria dessa parcela é negra - têm um acesso limitado e, muitas vezes, inexistente aos serviços de saúde públicos. Assim, pessoas sofrendo com os mais diversos problemas de saúde física e mental podem não ser tratadas em função do acesso limitado aos seus direitos fundamentais. Mulheres lésbicas e homens transexuais têm dificuldade de ir a uma consulta ginecológica e ter um atendimento adequado e respeitoso. Do mesmo modo, mulheres transexuais e travestis também podem encontrar dificuldades para acessar o sistema de saúde.

As repercussões na saúde mental dessas pessoas são muitas, e eu só elenquei aqui algumas possibilidades de como a exclusão social e a saúde mental estão inversamente relacionados.

Entrevista Nota 10 -  Dados recentes da ONU revelam que com a chegada da pandemia de Covid-19 a pobreza extrema irá dobrar no Brasil neste ano de 2020. Devemos terminar o ano com 9,5% na condição de pobreza extrema. Essa taxa era de 5% em 2019. O que isso mostra em relação à necessidade de políticas públicas e mudanças de comportamento do próprio brasileiro acerca da questão da desigualdade?

Luana Souza - A pandemia de COVID-19 escancarou o grave problema social que o Brasil já vivenciava: uma série de extremas desigualdades sociais. Neste caso, o problema que fica mais evidente é o racismo. Historicamente, a população negra no Brasil tem sofrido, desde o período da escravidão até os dias atuais, com uma série de direitos humanos fundamentais negados, como o direito à moradia, à saúde, à educação e à comida. Por muito tempo, a sociedade brasileira acreditou, e ainda há quem acredite, no mito da democracia racial, ou seja, de que somos um povo miscigenado e que não há tratamento diferenciado para brancos e negros nesse país. Mas esse mito é facilmente desfeito quando se observam, por exemplo, os dados do IBGE sobre a proporção de brancos e negros com acesso à educação e principalmente acesso ao ensino superior; a proporção de brancos e negros empregados e também a média salarial desses dois grupos. Não por acaso, e como resultado da má atuação do Estado na garantia desses direitos humanos a essa parte da população, o número de presidiários negros é muito maior nas penitenciárias brasileiras.

Assim, essa situação mostra que o racismo é real e que o Estado deve sim promover políticas públicas mais eficientes para reparar a dívida histórica que esse país tem com os negros. Somos um país onde, segundo dados do IBGE, a maioria da população é negra, mas não vemos muitos professores, médicos, engenheiros e políticos negros, por exemplo. E isso é resultado de uma estrutura social que não permite as mesmas oportunidades para todos. Prova disso é que, após algumas ações afirmativas para negros no campo do ensino superior, já conseguimos visualizar uma parte dessa população ocupando espaços antes não ocupados. O acesso à educação é um dos passos necessários para reduzir as extremas desigualdades sociais existentes em nosso país.

(Imagem: Getty Images)
 

Entrevista Nota 10 -  Qual é o papel da psicologia social nesse contexto?

Luana Souza - Considero que a Psicologia tem um papel central nesse contexto. A este respeito, um dos princípios fundamentais do Código de Ética do psicólogo é “trabalhar visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuir para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A Psicologia Social é uma área que tem como norte principal justamente o estudo e a atuação do psicólogo nas dinâmicas que acontecem na relação do indivíduo com a sociedade. E, quando estudamos essa relação, fica muito evidente o quanto a forma como as sociedades estão organizadas, quais suas normas e valores, repercutem diretamente em aspectos psicológicos dos indivíduos. Deste modo, o psicólogo social tem as ferramentas para entender que muitas vezes a forma de atuar e intervir no sofrimento de um indivíduo não é intervindo só nele diretamente, mas sim intervindo em toda a sociedade. Por exemplo, quando se está diante de um caso de violência contra a mulher, não é só a vítima ou o agressor que precisam de intervenção. Combater a violência contra a mulher implica uma intervenção também no nível macrossocial, pois historicamente homens e mulheres têm sido ensinados erroneamente que homens são superiores e donos das mulheres. Ao psicólogo social, juntamente com outros profissionais que também estão preocupados com essas questões, cabe pensar formas de levar informação e reflexão para a sociedade.

Entrevista Nota 10 -  Professora, como coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (Lepes), como você avalia as contribuições da pesquisa científica para quebrar tantos tabus e preconceitos arraigados em nossa sociedade?

Luana Souza - Coordenar o LEPES juntamente com a minha querida colega Luciana Maia tem sido motivo de extremo orgulho e realização profissional! O objetivo máximo da ciência deve sempre ser a produção de conhecimento científico para a promoção de uma sociedade melhor. Considero que as pesquisas que temos realizado dentro do LEPES têm sempre esse objetivo e que o conhecimento que temos produzido e compartilhado é sim um dos subsídios para a princípio compreender como se estruturam essas formas de preconceitos. Uma vez que somos capazes de, enquanto cientistas, compreender onde se ancoram e como são construídos esses preconceitos, conseguimos desenvolver e refletir sobre a forma de combatê-los. Portanto, considero que a ciência tem um papel imprescindível na luta contra diversas formas de preconceito e exclusão social.

Entrevista Nota 10 -  Para finalizar, gostaria de tocar na questão do racismo. Como podemos explicar tantos brasileiros serem negacionistas em relação a esse tipo de discriminação? 54% da população brasileira é negra e ainda assim vemos poucos espaços sociais e de visibilidade ocupados por essas pessoas.

Luana Souza - Podemos tentar compreender esse fenômeno por meio de um campo de estudos dentro da Psicologia Social que explica a legitimação das desigualdades sociais. Tentando explicar de uma forma mais simples, há teorias que mostram que todos os indivíduos, sejam eles membros de grupos socialmente valorizados (como, por exemplo, homens, brancos, ricos) ou mesmo aqueles membros de grupos socialmente desvalorizados (por exemplo, mulheres, negros, pobres), tendem a não só aceitar a forma como a sociedade se organiza e sua estrutura de desigualdade, mas também buscam formas de justificar essas desigualdades para assim mantê-las. Em outras palavras, as pessoas são altamente motivadas para acreditar que o mundo é justo, e que coisas boas acontecem a pessoas boas e coisas ruins acontecem com pessoas ruins.

Essa motivação psicológica na verdade atua como um mecanismo protetor do bem-estar dos indivíduos, pois está mais do que comprovado na literatura científica que quanto mais os indivíduos tendem a perceber as desigualdades sociais existentes, mais eles sofrem. Desse modo, é muito mais simples e, de um ponto de vista psicológico, protetor para o bem-estar e saúde mental dos indivíduos aceitar a sociedade tal como ela está e não reconhecer os problemas nela existentes, ou seja, não refletir sobre essas questões. Assim, frases como “Deus quis assim”, “cada um tem o que merece” e “Deus ajuda a quem cedo madruga” são bons exemplos de como as pessoas buscam formas de justificar as desigualdades que observam, de modo a aceitá-las e naturalizá-las.

Por mais difícil e doloroso que seja admitirmos que vivemos em uma sociedade extremamente desigual, esse passo é necessário. Só conseguiremos avançar enquanto sociedade quando reconhecermos os nossos problemas para então o encararmos de frente e cobrar do Estado que faça sua parte com a execução de políticas públicas adequadas para diminuir os efeitos dessas tão diversas e nefastas desigualdades.