null Entrevista Nota 10: o prof. interdisciplinar Daniel Camurça se aventura entre Direito, História e mais

Seg, 17 Setembro 2018 11:04

Entrevista Nota 10: o prof. interdisciplinar Daniel Camurça se aventura entre Direito, História e mais

Daniel Camurça possui graduação em História pela UFC (2000), Mestrado em História pela PUC/SP (2003) e Doutorado em História Social pela PUC/SP (2011).
Daniel Camurça possui graduação em História pela UFC (2000), Mestrado em História pela PUC/SP (2003) e Doutorado em História Social pela PUC/SP (2011).

Porque a História e o Direito se retroalimentam, o professor Daniel Camurça Correia cultivou e digeriu essa ideia desde o início de sua carreira docente. Primeiro veio a Licenciatura Plena em História na Universidade Federal do Ceará (UFC) e o esforço por compreender a dinâmica dos espaços urbanos brasileiros com ênfase no fim do período imperial e início da República. A partir daí, o desafio de arrolar Atas e Cartas de Correspondências, tanto da Presidência da província do Ceará quanto da Câmara de Fortaleza, o fez mergulhar em farta documentação cartorial essencialmente de ordem política e jurídica, desaguando no estudo dos caminhos do Direito no Brasil.

Irreversivelmente, fez-se a interseção. Tanto no Mestrado quanto no Doutorado em História, ambos na PUC-São Paulo, a análise da mecânica jurídica, política e policial relacionada aos problemas urbanos não seria possível sem contextualização histórica. Daí que a docência no ensino superior já lhe chegou assim, interdisciplinar por natureza, levando-o a lecionar em cursos tão diversos como História, Direito, Economia, Ciências Sociais, Administração, Ciências Contábeis e até Jornalismo.

De volta a Fortaleza, em 2013, Daniel Camurça ingressou no curso de Direito da Unifor, onde iniciou, no mesmo ano, os trabalhos do Grupo de Pesquisa em Filosofia do Direito. De lá para cá, são 15 anos de docência, toda uma expertise para, na Unifor, capitanear as disciplinas Filosofia do Direito, Filosofia Geral e Ciência Política, e um honrado assento como avaliador nacional e internacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi).

Experiência que deságua no Grupo de Pesquisa Justiça em Quadrinhos da Unifor, onde, desde 2014, a análise da mecânica jurídica se dá por meio da produção de mídias, tais como HQs, mangás, animações, seriados e tirinhas Aventura que, em entrevista, o leva a revelar como heróis e vilões, com suas normas, regras e comportamentos, forjam tramas para pensar criticamente e com muita imaginação códigos de leis e condutas ditadas pela Justiça.

Como se deu a descoberta dos quadrinhos e de que forma veio desaguar na docência, justo dentro de uma faculdade aparentemente tão formal como a do Direito?

DANIEL CAMURÇA: Para aprimorar meu aprendizado, principalmente na gestão acadêmica, em 2009, em São Paulo, fiz uma especialização na área de Gestão de Pessoas. A temática da minha monografia foi sobre a análise das tirinhas do Dilbert, personagem de Scott Adams. Foi meu primeiro trabalho formal com quadrinhos. Essa pesquisa rendeu muitos frutos. Tive a oportunidade de aprender como analisar a produção de imagens, em especial tirinhas e HQs, para entender como esse material retrata a sociedade do presente. Mas era muito difícil, fora da Comunicação, encontrar adeptos a pesquisar um tema pouco creditado pelo meio acadêmico. Assim que comecei meus trabalhos na UNIFOR, a direção do curso mostrou amplo interesse pela temática. Junto a alguns estudantes e professores, esboçamos as primeiras pesquisas, fizemos palestras e meses depois, em 2014, iniciamos os trabalhos com o Grupo de Pesquisa Justiça em Quadrinhos. Na verdade, O Curso de Direito da Unifor é o primeiro Curso de Direito, no Brasil, com um Grupo que tem por meta analisar a mecânica jurídica por meio da produção de mídias, tais como HQs, mangás, animações, seriados e tirinhas. É inegável a formalidade do Curso de Direito. Por outro lado, sua perspectiva holística abre precedente para interdisciplinarizar com outros saberes. Em especial, o nosso Curso de Direito, que sempre se demonstrou aberto a novas formas de pensar e pesquisar. Tenho muito orgulho dessa conquista e oportunidade.

Desde a criação do Grupo de Pesquisa Justiça em Quadrinhos, em 2014, que tipo de questões ou discussões jurídicas costumam ser pinçadas do mundo dos quadrinhos? Quais as interfaces possíveis entre a estética e a ética dos heróis e vilões, suas normas, regras e comportamentos e o código de leis e condutas ditadas pela Justiça?

DANIEL CAMURÇA: Tivemos um amplo leque de pesquisas, algumas delas já resultaram em publicações de artigos científicos, dentro e fora do Ceará. Estudamos em Homem de Ferro a questão do Direito internacional e a violação da soberania de um país, quando um “herói” invade um território sob completo desconhecimento das autoridades locais. Pesquisamos a Fable, HQ americana recentemente traduzida para o português, que aborda em um universo realista os contos de fadas. Na narrativa, o lobo mal é um detetive que tenta resolver uma série de assassinatos e desaparecimentos. Nem sempre o vilão tem cara de vilão. Em Game of Thrones analisamos a violência sexual explícita contra mulheres, que sempre eram retratadas de forma secundária, movidas apenas por paixões e desejos. Com O Cavaleiro das Trevas problematizamos a ação do herói, que se veste de justiceiro, rompendo com a mecânica da justiça para aplicar a vingança. Por fim, também analisamos as HQs dos anos de 1940 da personagem Mulher Maravilha. A meta era observar como o roteiro indicava comportamento subalterno à personagem que, inclusive, tinha seu nome na capa da revista. Para se ter uma ideia, ao ler a revista, observamos que a maioria das vezes em que Diana está diante de Steve Trevor, no mesmo quadro, independente da posição dela, ele sempre está um nível acima. Tanto no caso da Mulher Maravilha, quanto na Jean Grey (X-men) tivemos a oportunidade de observar a forma como as personagens, em especial, são desenhadas. A sexualização dos personagens chamou bastante atenção. O que o pesquisador em quadrinhos não pode esquecer, é que o foco não é o personagem. Mas o roteiro, os quadros, as cores e, principalmente, o discurso engendrado na HQ. Em consequência disso, é possível observar interesses que muitas vezes não são claros. Heróis e vilões são elaborados dentro de um repertório de exigências das agências produtoras. Isso tem de ser levado em consideração.

Pelo que li, o grupo apresenta palestras abertas ao público para divulgar as pesquisas realizadas. Entre os projetos compartilhados, alguns têm títulos convidativos, como O Sentido de Legalidade no Comportamento do Homem-Aranha, O Uso da Força e a Imagem do Herói em Batman ou A Mulher Inanimada em X-Men.

DANIEL CAMURÇA: Temos um calendário bastante amplo. A ideia é não só envolver os estudantes da Unifor, mas também chamar a atenção – da forma mais convidativa possível – para as questões da produção de HQs, filmes e seriados, assim como diversificar cada vez mais pesquisas na área. Analisar dentro dos preceitos acadêmicos, e jurídicos, é importante, já que esse material circula ao redor do globo. Milhares de crianças e adolescentes estão lendo avidamente. A questão é: estão analisando, filtrando, e questionando o que estão lendo? Como poderíamos interpretar sobre os diversos discursos legitimados neste material? Como a lei, a cidadania e a justiça são abordadas nas HQs? Em O Sentido de Legalidade no Comportamento do Homem Aranha analisamos as HQs no intuito de observar a forma como um adolescente se sente responsável ou não pelos resultados de suas ações, descumprindo com seu papel enquanto cidadão e fazendo justiça com as próprias mãos. Em O Uso da Força e a Imagem do Herói em Batman analisamos o excesso de violência praticado pelo Batman, de Frank Muller. Em muitas passagens, o material sugere extrema incompetência da polícia, em todos os níveis. A justiça só poderia ser alcançada verdadeiramente por meio da violência. Então qual seria a diferença entre justiça e violência? Em A Mulher Inanimada em X-Men analisamos as HQs dos x-men, com ênfase na personagem Jean Grey, uma das primeiras “heroínas” da década de 1960. Salta aos olhos o fato de que da mesma forma que a revista avança, ao mostrar uma heroína, recua, ao atribuir a personagem comportamentos vinculados ao da dona de casa ou secretária de um escritório. Ou seja, o roteiro poderia ter empoderado mais a personagem. Mas, por que não o fez? Isso diz respeito ao tipo de leitor da revista, que tem certo nível de expectativa. Caso esse nível não seja alcançado, existe a possibilidade de a HQ não alcançar a vendagem desejada. Vale lembrar que muitos personagens, masculinos e femininos, caíram no esquecimento por causa disso.

Os diferentes tipos de violência também vêm à tona de forma contundente quando se analisam as HQs?

DANIEL CAMURÇA: Sim. Entre o Estado e a Lei em The Walking Dead acho que os zumbies são apenas o cenário. O tema, me parece, é a violência. Nos diferentes episódios, a violência é desenhada de diferentes formas e ela aumenta de nível a cada temporada. Quando os vivos se juntam para atacar um zumbie aparece uma cena clássica de linchamento, por exemplo. A proposta da HQ e do seriado é que aquelas pessoas vivem em uma realidade sem leis, sem Estado, e, por isso, a priori, podem fazer o que quiser. Ou seja, se tirar o pano de fundo – apocalipse zumbie – o seriado fala de uma sociedade sem leis. A violência cresce desmedidamente, e todos, de alguma forma, sofrem abalos psicológicos pelo estado de alerta permanente. Já Juventude e Crime em Death Note é um mangá japonês que resultou em uma animação mundialmente conhecida. A história contada é a de um adolescente, classe média, de boa educação, excelentes notas que, ao encontrar o caderno da morte, se sente no dever de escolher quem vive ou morre. Basta escrever o nome de alguém para eliminar sua vida. Dessa forma, ele passa acreditar que é um novo Deus, capaz de eliminar o mal. O material é excelente para analisar a questão do crime entre adolescentes. A questão do fetiche, do desejo, da sexualização das ações, da soberba faz com que o personagem principal, Kira, se sinta superior, pois ele tem uma arma que permite eliminar qualquer um sem deixar rastros. Em Tartarugas Ninja: Invisibilidade Social, Repressão e Contracultura nos Anos 80, animação que é fruto de uma HQ, produzida em preto e branco, o material permitiu rastrear a forma como roteirista e quadrinista viam a cidade de Nova Iorque, em meados dos anos 80. O que chama atenção é comportamento suburbano das tartarugas, a forma como elas são obrigadas a se esconderem, permanecerem invisíveis, em uma sociedade que clama por ajuda, mas não aceita suas feições, seus rostos, sua mutação. A HQ nasceu em meio ao forte movimento da contracultura – traço marcante em muitos personagens – chamando a atenção para uma cidade caótica e um Estado desorganizado.

Além do incentivo a pesquisas e debates, o Justiça em Quadrinhos também é responsável por concretizar projetos de extensão voltados ao público infantil e jovem. Que impacto vêm tendo enquanto exercício de cidadania?

DANIEL CAMURÇA: Entre 2015 e 2017 realizamos dois importantes projetos sociais junto ao Programa Cidadania Ativa do Curso de Direito (PCA-Unifor): Cidadania Animada e Justiça em Quadrinhos na sala de aula. No Cidadania Animada trabalhamos diretamente com crianças por volta dos 5 anos de idade da Escola de Aplicação Yolanda Queiroz. A meta e o desafio - por causa da idade - era ensinar cidadania para crianças. Não é possível ensinar cidadania para crianças por meio de conceitos. É preciso aplicar no nível prático, dialogando dentro do repertório intelectual e cognitivo dela. Então, utilizamos cartolinas para as quais a criançada poderia desenhar livremente. A questão central é que teriam de dividir papel e giz de cera. Dessa, forma, quando ocorriam pequenas disputas, estimulávamos o diálogo entre elas. Não podia gritar ou bater. Foi incrível! As crianças da Escola de Aplicação rapidamente se inseriram dentro das regras. Elas se divertiram e não brigaram. Quando precisavam de algo, pediam. Foi maravilhoso. O projeto Justiça em Quadrinhos na sala de aula também foi aplicado na Escola Professor Francisco Mattos Dourado, nas turmas noturnas da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Eram estudantes entre 17 e 70 anos. Alguns deles tinham deficiências diversas, outros estavam cumprindo medida socioeducativa. Foi um grande aprendizado. Levamos algumas cenas das HQs, nas quais temas como violência, crime, desordem social estavam pautados. No começo, tiveram um pouco de dificuldade em entender a proposta das imagens. Na verdade, muitos deles nunca tinham folheado uma revista em quadrinhos. Mas estavam dispostos a aprender. Questionaram bastante o que estava retratado. Se propuseram a ler e analisar o que estava desenhado. Fizeram amplas relações com a realidade política e jurídica da vida deles. Ao final, alguns vieram pessoalmente agradecer, pois eram momentos da aula que faziam eles se sentirem bem, e ainda poderiam desabafar sobre as dificuldades que viviam e presenciavam em suas comunidades. Os estudantes do Curso de Direito da UNIFOR, que realizaram a atividade no papel de monitores, ficaram maravilhados com os projetos. Muitos dos estudantes nunca tinham experimentado trabalhar com uma realidade tão específica da cidade de Fortaleza.

Que análise crítica é possível fazer do modo como a mecânica jurídica é vista, descrita e difundida na grande mídia e pela cultura pop?

DANIEL CAMURÇA: De modo geral é importante observar como as leis, a mecânica da justiça, a lógica do Direito não é apresentada de forma correta. Muitas vezes dão força às falhas e à corrupção como se o Direito, em qualquer país, fosse extremamente lento, ou simplesmente não funcionasse. É raro a HQ que mostre a polícia como uma força eficiente do Estado. Acredito que os jovens não deveriam ter essa exclusiva imagem de justiça na cabeça, até porque, não é verdade. As HQs muitas vezes sugerem fortemente que fazer justiça com as próprias mãos é melhor ou mais eficiente. Independente de ter cometido ou não um crime, aquele que é acusado de criminoso é sempre punido. Isso não diz respeito à mecânica do Direito. Acredito que se os Cursos de Direito abordassem mais as HQs em sala de aula, os estudantes poderiam entender, de múltiplas formas, as diferenças entre justiça e vingança. Por exemplo, em minhas aulas de Filosofia do Direito, ao abordar o pensamento de Sócrates, o qual viveu na Grécia antiga uma experiência de democracia, nota-se que a mudança do Princípio da reciprocidade (injustiça se paga com injustiça) para o Princípio da anulação (injustiça se paga com justiça) ocorreu no momento em que os cidadãos teriam a oportunidade de levar suas queixas para o Estado, que deveria punir, caso fosse comprovado o crime. Para meus estudantes entenderem as diferenças entre os dois princípios uso como exemplo o comportamento de “heróis” das HQs, que muitas vezes são movidos, de acordo com o quadrinista, pelo princípio da reciprocidade.

O que mudou em sala de aula, no que diz respeito à docência, e ao próprio interesse dos alunos desde que foi criado o Grupo de Pesquisa e todos os projetos correlatos? Que avaliação em termos de ensino-aprendizagem pode ser feita?

DANIEL CAMURÇA: Senti drástica mudança nos estudantes. Os mais jovens, principalmente, têm amplo interesse no tema. Inclusive, nos últimos 12 meses, já orientei duas monografias de graduação que debatiam a questão do feminismo e do direito das mulheres a partir das HQs. Em sala de aula, os debates são acirrados. Os estudantes são fãs, muitas vezes. O que é bom, pois eles conhecem bem os materiais que admiram. O desafio é mudar o foco e analisar como pesquisador. Muitos ficam empolgados ao reverem seus pontos de vista e se propõem a aprender mais a mecânica jurídica a partir dos quadrinhos. É muito interessante vê-los retomando leituras e analisar o que não tinham visto antes nas revistas, ou nas animações.