null Entrevista Nota 10: Sidarta Ribeiro fala da importância da coletividade em tempos de pandemia

Qui, 22 Abril 2021 12:13

Entrevista Nota 10: Sidarta Ribeiro fala da importância da coletividade em tempos de pandemia

O neurocientista avalia que precisamos sair da fase de constatação da falência do rumo atual e partir para a ação coletivamente 


"Precisamos de um projeto de nação inclusivo e generoso, em que os mais fortes cuidem dos mais fracos e o amanhã seja melhor do que ontem", diz o pesquisador. (Fotos: Luiza Mugnol)

Um papo sobre como nosso cérebro reage à pandemia, como esse momento requer mudanças individuais e coletivas e sobre a importância da ciência. São temas sobre os quais o neurocientista Sidarta Ribeiro, convidado da “Live do Conhecimento” no dia 27 de abril, às 19h30, vai conversar na próxima terça-feira. A iniciativa realizada pela Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz, contará com a mediação da estudante de Medicina da Universidade de Fortaleza, Raquel Queiroz

Professor titular de Neurociências e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Sidarta tem abordado como a pandemia de Covid-19 tem afetado a população brasileira e como isso repercute, por exemplo, no funcionamento do cérebro, nos sonhos e na qualidade do sono. "Ainda estamos na fase de constatação da falência de nosso rumo atual – e precisamos passar logo para a ação", avalia o cientista sobre a crise sanitária causada pelo novo coronavírus em entrevista ao unifor.br. "Ou nos adaptamos à abundância criada pelo aumento de produtividade que nosso desenvolvimento científico criou, distribuindo as riquezas de modo mais equitativo, com oportunidade genuína para todos, ou nos arriscamos a um colapso civilizacional retumbante", analisa.

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Em seu segundo livro, “O Oráculo da Noite”, o autor traz informações históricas, antropológicas, psicanalíticas e literárias para compor uma narrativa sobre a ciência e a história do sonho. "Se o tempo é sempre escasso, se despertamos diariamente com o toque insistente do despertador, ainda sonolentos e já atrasados para cumprir compromissos que se renovam ao infinito, se tão poucos se lembram que sonham pela simples falta de oportunidade de contemplar a vida interior, quando a insônia grassa e o bocejo se impõe, chega-se a duvidar da sobrevivência do sonho. E, no entanto, sonha-se", diz o autor no livro de 2019. A seguir veja as considerações do neurocientista sobre os efeitos da pandemia no nosso cotidiano e sobre a importância de ainda sonharmos.

Entrevista Nota 10 - Estamos há mais de um ano enfrentando uma situação totalmente atípica, a pandemia de Covid-19. À luz da neurociência, sua área de atuação, como nós leigos podemos compreender os impactos principais desse momento para o sistema nervoso de um indivíduo?

Sidarta Ribeiro - Privação de convívio social, ansiedade quanto ao futuro e medo crônico da contaminação, adoecimento e morte impactam nosso organismo de muitas maneiras diferentes. O cérebro é muito sensível a situações de estresse, reagindo com modificações bioquímicas e fisiológicas que podem impactar negativamente a atenção, a consolidação de memórias, o processamento emocional e outras funções psicológicas.

Entrevista Nota 10 - Você falou em entrevista recente que “é muito claro no Brasil que temos um problema para sonhar o coletivo”. Como a ciência, mais especificamente a neurociência, tem contribuído para que os efeitos dessa crise sejam de alguma forma menos devastadores?

Sidarta Ribeiro - A primeira frase diz respeito a uma dimensão política de nossa crise sanitária: não há saída para a pandemia na base da competição e falta de solidariedade. Nesse momento o protagonismo é da epidemiologia e da saúde coletiva, mas a neurociência também contribui ao elucidar os mecanismos neurais que permitem mitigar a ansiedade e a depressão, seja através de práticas meditativas, seja através de substâncias como a ayahuasca (“hoasca”, “chá do santo daime”, “vegetal”).

Entrevista Nota 10 - Em 2019 você lançou o livro O Oráculo da Noite - a história e a ciência do sonho, que aproximou ciência e ancestralidade em torno do tema. Por que sonhamos? Pode comentar como a pandemia tem impactado nossos sonhos?

Sidarta Ribeiro -  Sonhar evoluiu na linhagem dos mamíferos como um processo neurobiológico capaz de simular futuros possíveis, um “oráculo probabilístico”. Por esta razão, muitas pessoas estão sonhando com situações que representam direta ou indiretamente o uso de máscaras, o medo do contágio e a morte, bem como outras consequências da pandemia, como o maior convívio com familiares para a parte da população que conseguiu fazer o distanciamento social.

Entrevista Nota 10 - Que efeitos a qualidade do sono pode trazer para o cotidiano?

Sidarta Ribeiro - O sono é um santo remédio para inúmeros desequilíbrios fisiológicos. A má qualidade do sono, quando experimentada cronicamente, pode levar a déficit atencional e cognitivo, irritação, problemas cardiovasculares, obesidade, diabetes e mal de Alzheimer.

Entrevista Nota 10 - Um trecho de Oráculo da Noite diz que “narrar sem inibições ajuda a navegar a trajetória de frustrações e a mitigar a dor”. Como vê o Brasil que vem sendo narrado especialmente desde março de 2020, quando foi declarada a pandemia de Covid-19?

Sidarta Ribeiro - Nos encontramos fragmentados, com escassez de vacinas e sem aderência consistente às práticas que poderiam reduzir os danos causados pela Covid-19. Por ações nefastas e omissões imperdoáveis do governo federal, estamos desgovernados e vulnerabilizados, incapacitados de realizar de modo realmente coeso uma ação coletiva contra a doença - e desprovidos dos meios materiais para fazê-lo. Essa situação lastimável e preocupante decorre da condução irresponsável do governo federal e do analfabetismo científico de parte da população.

Entrevista Nota 10 - Em entrevista à revista Trip (em março de 2021), você destacou que “a tela não é ruim. O excesso de tela, sim”. Como buscar esse equilíbrio em um momento que precisamos garantir o distanciamento social, executar atividades remotamente, mas sem deixar de cuidar de nossa saúde mental?

Sidarta Ribeiro - O hábito de assistir conteúdos audiovisuais em telas ativa o mesmo sistema cerebral de recompensa e punição que é ativado por outros estímulos que também causam dependência, como drogas, jogo e sexo. Nada disso é intrinsecamente nocivo, pois depende da dose. Vale portanto o mesmo preceito de moderação que considera que a diferença entre remédio e veneno é a dose.

Entrevista Nota 10 - Como avalia a repercussão da pandemia da Covid-19 na educação? Houve uma aceleração do uso das tecnologias na área. O que destaca como positivo desse processo?

Sidarta Ribeiro - Em uma parte das escolas, sobretudo instituições privadas voltadas para o público de alto poder aquisitivo, houve avanços substanciais na utilização educacional das tecnologias da informação. Entretanto, para inúmeras escolas, sobretudo na rede pública, o que houve foi uma paralisação completa do ensino, muitas vezes por falta de acesso à internet de banda larga.

Entrevista Nota 10 - Você é vice-diretor do Instituto do Cérebro, instituição de ponta sediada em Natal (RN), qual a relevância de descentralizar a pesquisa científica numa nação de dimensões gigantescas como o Brasil? Isso pode ajudar a enfrentar o negacionismo científico?

Sidarta Ribeiro - Se existe consenso de que um país só consegue se desenvolver plenamente através da ciência, é evidente que a desigualdade regional da produção científica se reflete na desigualdade regional do desenvolvimento. Por essa razão, é crucial para um país continental como o Brasil que existam centros de pesquisa de ponta em todo o território nacional.


"Sem a capacidade de sonhar e de narrar sonhos, estamos desprovidos das imagens de onde queremos chegar e da capacidade de coletivizar nossas trajetórias, unindo esforços para mudar positivamente o futuro", Sidarta Ribeiro

 

Entrevista Nota 10 - Você trouxe no livro Limiar a reflexão de que “Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisaremos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de um upgrade em nosso software". Avalia que estamos em atualização?

Sidarta Ribeiro - Sim, uma dolorosa atualização que precisa ser concluída logo, sob pena de que a demora leve a uma devastação irreversível. Ainda estamos na fase de constatação da falência de nosso rumo atual – e precisamos passar logo para a ação. A sociedade que acelera cada vez mais na direção do consumo de mercadorias supérfluas, este capitalismo desenfreado, predatório, competitivo e não colaborativo, é produto de instintos de acumulação e violência evoluídos por nossos ancestrais em situação de escassez e que possuem uma base neurobiológica antiga, o que leva a uma enorme inércia comportamental. Existe por exemplo um hormônio, a ocitocina, que induz um aumento de empatia entre pessoas afins, ao mesmo tempo em que induz agressividade entre pessoas não-afins. Ao longo da evolução, foram selecionadas duas atitudes opostas, de tal forma que muitas pessoas cuidam dos parentes e amigos no círculo íntimo, ao mesmo tempo em que ignoram ou mesmo prejudicam as pessoas fora deste círculo. Hoje não existe mais escassez e sim abundância com desigualdade distributiva, o que torna mais adaptativas a partilha e a colaboração. Evidentemente, a persistência inercial da exclusão e da opressão colocam em risco nossa espécie e muitas outras. Ou nos adaptamos à abundância criada pelo aumento de produtividade que nosso desenvolvimento científico criou, distribuindo as riquezas de modo mais equitativo, com oportunidade genuína para todos, ou nos arriscamos a um colapso civilizacional retumbante. Qualquer semelhança com o cotidiano pandêmico não é mera coincidência.

Entrevista Nota 10 - Em uma declaração recente, você disse que não podemos ver o Brasil como um país em ruínas e sim em construção. Isso é um indicativo de que devemos e precisamos sonhar?

Sidarta Ribeiro - Com certeza. Sem a capacidade de sonhar e de narrar sonhos, estamos desprovidos das imagens de onde queremos chegar e da capacidade de coletivizar nossas trajetórias, unindo esforços para mudar positivamente o futuro. Precisamos de um projeto de nação inclusivo e generoso, em que os mais fortes cuidem dos mais fracos e o amanhã seja melhor do que ontem.