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Seg, 15 Janeiro 2024 15:00

Entrevista Nota 10: Andréia Moreira Pires e a influência das artes cênicas no audiovisual

Mestre em Artes, ela aprofunda a relação entre cinema e teatro e explica como as artes da presença impactam na direção de arte no contexto cinematográfico 


Andréia Moreira Pires é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)
Andréia Moreira Pires é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

O teatro tem raízes antigas na tradição humana de contar narrativas ao vivo, utilizando a conexão com a audiência como condição fundamental para sua existência. Já o cinema nasce apenas no final do século XIX e, com ele, novas formas de contar histórias, usufruindo da magia das telas para transportar espectadores para mundos imaginários.

A influência entre teatro e cinema foi se tornando cada vez mais recíproca com o passar dos anos. Ao mesmo tempo em que as duas linguagens se diferenciam no aspecto da presença e do tempo — o teatro proporciona uma experiência imediata e efêmera, o cinema utiliza dispositivos para registrar e depois transformar em arte —, elas carregam um ponto em comum: a presença do corpo que se movimenta. 

De acordo com Andréia Moreira Pires, professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza — instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz —, o corpo não precisa ser necessariamente uma pessoa. Pode ser o movimento de um objeto, uma luz, uma sonoridade e até mesmo uma música. 

“Tudo isso pode se tornar um corpo na cena. É o movimento de um corpo, uma coreografia, uma dança, que vai transformar a cena em arte. Então, o teatro e cinema só têm a aprender um com o outro. Quanto mais eles se alimentam, mais as obras, os trabalhos, as criações se tornam fortalecidas”, pontua a docente, que também é graduada em Artes Cênicas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

À Entrevista Nota 10, a também diretora, performer e mestre em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC) aprofunda a relação entre cinema e teatro, explica o que são protagonismos que emergem dos acontecimentos e pontua como a pesquisa sobre as artes da presença impactam a direção de arte no contexto cinematográfico. 

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 – Considerando tanto a estética quanto as narrativas e abordagens artísticas, pode-se observar uma influência mais significativa do teatro sobre o cinema ou vice-versa? Como essa dinâmica tem evoluído ao longo das décadas?

Andréia Moreira – O teatro e o cinema têm uma relação aproximada e não linear, não existe isso de evolução. A história do teatro e a relação dele com o cinema não conseguem ser uma trama de acontecimentos que vão e voltam, e a coisa mais importante que existe em uma linguagem e na outra é a composição de cena, a mise en scène. Tanto no teatro quanto no cinema, temos a criação da cena, e com isso e para isso contamos com a presença da atuação, do ator, da atriz, do performer.

Além disso, contamos com o espaço. A relação mais intrigante que existe entre o teatro e cinema está na atuação, na composição da cena. E poderíamos falar que essa relação existe na narrativa, nos roteiros, na composição de tempo, mas tudo isso já está presente na composição de cena.

O teatro e o cinema são duas linguagens que se diferenciam, porque o teatro é uma arte da presença, a qual é preciso ter o público presente para que aquele trabalho exista. Se não tiver um espectador emancipado, pronto para participar junto, o trabalho não existe. Já o cinema tem a câmera, o olho que registra e depois transforma em arte. Então, o cinema tem um tempo diferente do teatro.

No entanto, é a presença do corpo que se movimenta que faz gerar um acontecimento. É um corpo que não precisa ser apenas uma pessoa, mas às vezes um movimento de um objeto, um movimento de uma luz, uma sonoridade, uma música. Tudo isso pode se tornar um corpo na cena. É o movimento de um corpo na cena, uma coreografia, uma dança na cena que vai transformar aquilo em arte. Então, o teatro e cinema só tem a aprender um com o outro. Quanto mais eles se alimentam, mais as obras, os trabalhos, as criações se tornam mais fortalecidas.

Por mais que eu tenha diferenciado e colocado pontinhos que fazem com que o teatro se diferencie do cinema, existe esse ponto do movimento em comum que faz com que essas obras e essas linguagens diferentes possam se encontrar. Eu poderia dizer que é no corpo, na atuação e no movimento, que a gente permite que um acontecimento exista. Ele se transforma em arte.

A partir disso, essa arte será compartilhada com um conjunto de pessoas que não serão as mesmas ao se depararem com uma obra de teatro ou de cinema. Então, os diversos elementos que são ali dirigidos no teatro e no cinema para criar uma cena são muito parecidos. O movimento no quadro, o corpo no espaço, o desenho de luz, as sonoridades, a atuação – sobretudo a atuação – são elementos que fazem com que essas linguagens estejam sempre lado a lado, embora com as suas diversas diferenças.

E no campo estético, o ponto mais importante que pode existir entre essas linguagens é a lida com o tempo. Tanto no teatro quanto no cinema, existe um mistério que se materializa, deixando de ser mistério na trama, na composição cênica, nas atuações, no jogo de movimento que poderíamos chamar de forma, e a gente pode transformar o que é forma em significado, em signo, em filosofia. A partir disso, conseguimos ter um encontro muito rico e frondoso entre o teatro e o cinema. 

Então, pensar o tempo e o que faz os tempos serem estendidos ou multifacetados, tanto no teatro quanto no cinema, ao invés de ver o que é diferente de tempo, é ver o que existe em comum entre o tempo dessas duas linguagens.

Entrevista Nota 10 – De que forma as tecnologias contemporâneas, como a digitalização e a realidade virtual, têm afetado a interação entre o cinema e as artes cênicas? Você diria que essas ferramentas promovem novas possibilidades criativas ou desafios inéditos para os profissionais dessas áreas?

Andréia Moreira – Costumo chamar o cinema também de artes cênicas, porque eu acho que o cinema é a arte da cena também. Mas o teatro, a dança e performance são artes da presença, porque eu preciso do público e dos artistas presentes ao mesmo tempo, no mesmo espaço. E com a pandemia, as tecnologias contemporâneas foram, de certo modo, um dispositivo de suporte para todas as artes da presença. 

Entretanto, já existia muito antes da pandemia uma troca impressionante entre as diversas mídias, as possibilidades de multitelas, as projeções diversas, os mappings, todas essas gravações e realidades virtuais. Tudo isso já existia como pesquisa de linguagem dentro das criações contemporâneas das artes da presença. Com a pandemia, tivemos um aceleramento e uma participação muito rápida, muito intensa desses movimentos digitais com as artes da presença, porque só foi possível construir presença por meio desses dispositivos durante aquele período. 

Depois da pandemia, conseguimos seguir no avanço da pesquisa e da relação de aproximação entre essas linguagens e as composições com dispositivos. Nos festivais de artes cênicas pelo mundo, já víamos, mesmo antes do coronavírus, uma diversidade de composições que já tratavam dessas investigações, a pesquisa de linguagem nesse campo. A dança também esteve conectada e pensando jogos e movimentos de criação cênica a partir de dispositivos. 

Existem muitos estudos e experimentos vivos de cena e de grupos que trabalham com esses diversos dispositivos. No Brasil, temos o Cena 11, um grupo de Florianópolis que trabalha muito com uma investigação cênica digital. Temos, em São Paulo, a Janaína Leite, que tem trabalhado muito com mapping, projeções diversas. Enfim, tem muitos grupos de artes da cena e artes da presença que tem pensado e trabalhado nessas composições.

Entrevista Nota 10 – Você já dirigiu alguns filmes e espetáculos, nos quais procura dar destaque para narrativas com protagonismos que emergem dos acontecimentos. Poderia explicar um pouco mais sobre isso? 

Andréia Moreira – Quando eu falo de protagonismo do acontecimento, eu falo da coletividade, onde as pessoas se conectam para realizar algo. E aquele acontecimento, aquilo que acontece devido à conexão entre as pessoas, se torna mais importante do que quem faz a coisa acontecer. Fazer uma substituição do centro, da pessoa que faz estar no centro da coisa, pela coisa em si, tornando-a a protagonista.

Me interessa muito pensar em trabalhos nos quais não existe apenas um protagonismo, mas sim diversos protagonismos. Trabalhos no qual existem diversas participações que formam e fazem aquele projeto ser todo voltado para o acontecimento. 

Na vida, eu tive uma experiência com a composição em tempo real de um coreógrafo português chamado João Fiadeiro. A partir dessa experiência que tive no campo da criação, passei a pensar e criar a partir desse espaço aberto, desse campo expandido, onde a criação se interessa menos por expor uma pessoa e mais por expor um conjunto de pessoas, porque a partir delas emerge um acontecimento.

É um lugar que tem me interessado e eu tenho pesquisado e investido cada vez mais em entender e experimentar as coletividades. E por causa da coletividade, dos grupos, das comunidades, compreender e notar o acontecimento.

Entrevista Nota 10 – Professora, você é graduada em Artes Cênicas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Como a pesquisa e os estudos sobre as artes do espetáculo impactam a direção de arte no contexto cinematográfico? 

Andréia Moreira – Essa relação entre a criação da cena e o teatro, que é uma linguagem do fazer, da ação, a linguagem a qual você precisa colocar a mão na massa, ter um trabalho braçal para a realização das coisas, tem tudo a ver com a criação e com a observação necessária para composição e direção de arte de um filme, por exemplo. 

No teatro, temos menos recursos do que no cinema, e isso forma pessoas em campos mais abertos, mas você segue aprendendo a estar em diversos lugares. Então, a partir da minha relação com o teatro e com as teatralidades, fui aprendendo a notar as coisas e aprendi também a ser uma sublime observadora. Acredito que eu entro muito nas coisas por meio da observação, da sensação e da experiência. 

Isso permite com que a direção de arte também se torne um recorte de experiência, onde, por meio da observação, você passa a gerir e gestar planilhas e você gere ali uma certa organização da criação. Porque direção de arte não é apenas ser criativa ou ser criativo, mas é aprender a notar o que a cena precisa. Eu sou muito conectada nas visualidades da cena e foi o teatro que me permitiu ter um pouco disso. 

Direção de arte é aprender a gerir a observação, a gerir as materialidades que a cena te pede. Então, além da parte de invenção e criação, você tem que fazer uma espécie de administração de recursos que são dados e que não podem faltar na hora que a cena te pede. Então, a direção de arte tem tudo a ver com as visualidades que a cena foi ensinando.

Entrevista Nota 10 – Como o curso de Cinema e Audiovisual da Unifor prepara profissionais capazes de entender e aliar elementos das artes cênicas às produções audiovisuais? E quais são os diferenciais da graduação para quem deseja seguir no ramo de direção de arte?

Andréia Moreira – [O curso de Cinema e Audiovisual da Unifor] produz muitas experiências. Ao invés de ser apenas um curso teórico, é um curso que conta com equipamentos, espaço, profissionais e dispositivos capazes de reunir pessoas em torno de experiências e realizações. E é a partir da experiência que a gente aprende a fazer as coisas. 

Não é por meio de uma aula que se ensina o formato pelo qual os estudantes sairão fazendo filmes. É por meio da experiência de poder notar o que for acontecendo nos exercícios que as pessoas vão entendendo qual caminho elas querem seguir suas vidas e suas escolhas dentro da arte e da cinematografia. 

Com relação ao ramo da direção de arte, eu acredito que o curso tem potencial ainda a ser investido nas produções, nos próprios espaços de trabalho, para que os estudantes tenham contato com a criação e com o manuseamento de criação cênica. 

Eu acredito, sim, que o curso tem uma trajetória e um horizonte muito bonitos a serem seguidos. E confio também que, ao longo dos anos, haverá um crescimento ainda maior nesse campo de estudo das visualidades da cena, considerando que todas as áreas do cinema têm uma relação muito próxima com a produção de imagem. Portanto, acredito incrivelmente no potencial que o curso possui e na importância de investirmos nesse domínio das visualidades.