null Entrevista Nota 10: Pedro Corrêa do Lago e o Brasil como obra de arte

Qua, 27 Março 2019 17:52

Entrevista Nota 10: Pedro Corrêa do Lago e o Brasil como obra de arte

Pedro Corrêa do Lago é escritor, editor, historiador, colecionador, curador e administrador brasileiro, com atuação destacada na história da arte (Foto: Ares Soares)
Pedro Corrêa do Lago é escritor, editor, historiador, colecionador, curador e administrador brasileiro, com atuação destacada na história da arte (Foto: Ares Soares)

Foi por meio da arte que o Brasil se apresentou originalmente ao mundo. E também foi intermediado pelo mais refinado gosto artístico que o chanceler Airton Queiroz (1946-2017) conheceu e se aproximou do editor, escritor, curador e consultor de arte Pedro Corrêa do Lago, contando com sua colaboração direta na composição de um dos mais ricos e diversificados acervos de obras de arte brasileira do Nordeste e também do país. 

Uma coleção “excepcional” formada há pelo menos 30 anos e que, sob a chancela e guarda da Fundação Edson Queiroz, é levada a público de forma permanente e gratuita por meio de exposições sistemáticas no Espaço Cultural da Unifor.

De passagem por Fortaleza no último dia 20 de março, o dono da editora Capivara e também colecionador – a ele é atribuída a maior coleção de manuscritos do mundo - participou da Semana de Arte Unifor, justamente quando parte do acervo da Fundação Edson Queiroz que ele viu nascer, passou a ser exposto no Espaço Cultural Unifor, isso após ter viajado por diferentes países da Europa. 

A vinda de Pedro Corrêa do Lago também foi para marcar a primeira edição do projeto Diálogos Constitucionais, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Unifor, onde lançou uma fotobiografia em torno da trajetória política de seu avô, o político Oswaldo Aranha.

São dois os motivos que o trazem a Fortaleza a convite da Unifor: falar sobre o político Oswaldo Aranha, no projeto Diálogos Constitucionais, ligado à pós-graduação em Direito Constitucional, e também o acervo de arte moderna da Fundação Edson Queiroz. 

Entrevista

Primeiro, queria que você falasse um pouco sobre suas motivações para recuperar a trajetória política de seu avô por meio de uma fotobiografia, gênero, aliás, diferente da biografia e não muito comum...

Pedro Corrêa do Lago - Acho que, numa era em que a informação é tão fácil e disputada, inclusive com imagens disponíveis e em abundância, a fotobiografia acabou se revelando uma maneira mais atraente para o leitor de apresentar a vida do Owvaldo Aranha, que já foi assunto de biografias e estudos numerosos. Mas, com 600 imagens ajudando e com as citações dos jornais da época, dos historiadores que vieram depois e do próprio Oswaldo Aranha, você consegue apresentar algo mais vivo. A maneira com que a gente organizou o material acho que fez diferença na maneira em que ele foi recebido. Eu escrevi textos curtos e preferi dar a palavra aos contemporâneos e aos historiadores para fazerem o julgamento.

E que face foi revelada do político formado em Direito após esse “julgamento”?

Veio à tona justamente um cara que liderou uma revolução bem-sucedida, que foi a Revolução de 1930. Ele foi Ministro da Justiça com 35 anos, sem ser filho de ninguém. Ministro da Fazenda com 36 anos. Tem um papel extremamente importante na economia brasileira, durante dois anos e meio. Aí vai para os Estados Unidos como embaixador. Descobre toda a recuperação econômica dos Estados Unidos e passa a ficar bastante impressionado com isso. Volta para o Brasil para ser Chanceler durante a guerra, que ele via que seria muito importante no governo do Estado Novo, em que tanto o Ministro da Guerra, como o Chefe do Estado-Maior do Exército e o Chefe da Polícia, todo mundo era admirador alucinado do Hitler e do Mussolini. Precisava de alguém para dizer outra coisa. 

Então, o que ele fez foi conseguir que o Brasil entrasse do lado dos Aliados, do lado certo, em 1942, na guerra. E com isso acabou se tornando um líder do continente, graças ao reconhecimento dos países Aliados. E aí ele volta para a vida privada. É convidado para representar o Brasil na ONU. Acaba eleito presidente da Assembleia Geral da ONU, que decide sobre a partilha da Palestina, que criou um estado palestino e um estado judeu. Por fim, volta ao governo Getúlio Vargas como Ministro da Fazenda em 53, e em 54 está ao lado dele quando Getúlio se suicida. Um cara que nunca foi acusado de ladrão com todo o poder que ele teve durante mais de 30 anos. Oswaldo Aranha é um exemplo de homem público como talvez os brasileiros nem sabem que existe ou que existiu.

Além de vir lançar a fotobiografia de Osvaldo Aranha, você também foi convidado a falar sobre o acervo de Arte Moderna da Unifor, da qual foi colaborador, junto ao chanceler Airton Queiroz. Como se deu esse encontro e qual o início dessa história?

Sempre me interessei pelos artistas viajantes, os que vieram na época do Maurício de Nassau. Sobretudo Frans Post, que integra a comitiva do então conde Maurício de Nassau, governador-geral do Brasil Holandês, que vem ao país em 1637. Mais tarde, veio o (Jean-Baptiste) Debret e outros artistas europeus que desejavam revelar para a Europa as novidades e cenas pitorescas que só existiam no Brasil. Só que, na época deles, os livros acabaram tendo pouco reconhecimento. E hoje têm um público muito maior. São livros com gravuras, que tornaram Debret e também Frans Post muito famosos. Editei e fui autor de alguns desses livros. 

Fiz uma pesquisa em particular sobre o Frans Post, que é um pintor mostrado com bastante destaque na coleção da Unifor, o primeiro pintor europeu a pintar nossa paisagem. Você imagina um garoto de 25 anos chegando aqui com essa luz, com a natureza e com a realidade completamente diferentes das de Haarlem, cidade holandesa onde nasceu e aprendeu a pintar. Ele chega com uma boa técnica e adapta isso ao que está vendo no Brasil. Isso é um fenômeno extraordinário da História da Arte, um caso único, talvez. 

Os Estados Unidos tiveram que esperar quase 200 anos a mais para ter a paisagem deles pintada por um bom pintor europeu. Só no começo do século XIX que isso aconteceu. E nós tivemos esse privilégio em 1630 e poucos. E foi o Nordeste brasileiro que foi pintado por ele. Maurício de Nassau teve a visão de trazer uma espécie de corte, quando ele se instalou no Recife. Então, são esses fenômenos que tornam inclusive o Brasil quase único na História da Arte e estão sendo recolocados no seu contexto: o Brasil como país marginal ou marginalizado durante muitos anos, agora está se reencontrando e tudo isso está sendo melhor entendido. Não à toa, eu e minha mulher, Bia Corrêa do Lago, trabalhamos durante oito anos para juntar todos os quadros do Frans Post, que estão em 90 lugares diferentes do mundo. São 160. E conseguimos fazer esse catálogo completo, em 2006, publicando pela Capivara, que é a nossa editora.

Você então conhece o Chanceler Airton Queiroz como editor?

Sim, mas também como autor de livros e colecionador. Expus minha coleção no ano passado nos Estados Unidos, no Morgan Library, que é o maior museu de livros em Nova Iorque. É a primeira vez que eles expunham uma coleção privada de cartas e manuscritos fora da coleção deles. Foi muito legal, porque mostraram cartas do Van Gogh, Gauguin, Napoleão, Newton, Bethoveen, Mozart, que fazem parte da coleção. Então, digamos, nessa capacidade, entre aspas, de historiador da arte, eu aconselhei bastante o chanceler Ayrton Queiroz na época da formação da sua coleção de arte. E eu sou um entusiasta da coleção da Fundação Edson Queiroz. É a maior coleção de arte brasileira do Nordeste, que por si só já é algo extraordinário. E é, provavelmente, a coleção de arte brasileira mais abrangente formada nos últimos 30 anos. Quer dizer, o Itaú Cultural e o Instituto Moreira Salles, enquanto instituições, não são exatamente comparáveis, porque são da iniciativa privada, e têm coleções importantes. Mas, assim, uma coleção que reúne desde os primeiros pintores até os mais recentes, em um panorama tão abrangente da arte brasileira, eu só conheço a da Fundação Edson Queiroz. E isso é muito importante.

Que tipo de colecionador era Airton Queiroz?

Um colecionador nato, que começou a colecionar com 15 anos de idade e adquiriu as qualidades do bom colecionador. Quer dizer, alguém que sempre confiou no seu taco, mas também esteve disposto a pedir conselhos e opiniões para depois chegar às suas conclusões. Porque há colecionadores que entregam tudo para os seus curadores. Tem outros que agem de forma contrária, que só confiam no taco deles e formam coleções muitas vezes péssimas. Por mais entusiasmo que tenham, por mais que leiam, eles não podem saber tudo e geralmente vêm de outra atividade e assim cometem erros de principiantes. Então, a situação ideal é de um colecionador que confia no seu gosto, além de confiar na avaliação do que está disponível no mercado para comprar inteligentemente, mas também ouve muito a opinião daqueles conselheiros que ele escolheu como os mais confiáveis. Nisso, acho que o chanceler foi exemplar! Ele tinha segurança na escolha dele, mas também ouvia muito.

Mas entre vocês essa troca se deu mais fortemente de que maneira e em que fase?

Mais nos últimos anos da vida dele. Ele conhecia minhas pesquisas, apreciava os livros dos quais participei e também os que escrevi e editei. Tinha interesse também por essa área “brasiliana”, que é um termo geral para as coleções ligadas ao Brasil. Eu ajudei a formar uma grande coleção para o Banco Itaú, que se chama Brasiliana Itaú e é a exposição permanente do Itaú Cultural da avenida Paulista. Ele visitou essa exposição e gostou muito. Entendeu que poderia formar uma coleção semelhante e que seria muito importante para o Nordeste e o Ceará. Entre a própria coleção do Chanceler e a coleção da Fundação Edson Queiroz, acho que ele trouxe uns oito Frans Post para o Ceará. Ou seja, já é a segunda maior coleção do mundo. E algo que me entusiasma particularmente porque eu minha mulher escrevemos um livro com a obra completa do Frans Post, o Catálogo Raisonné dele, e depois o Catálogo Raisonné do Debret. O Chanceler apreciava esses livros e foi por isso que tivemos esse contato privilegiado e pudemos colaborar mais na parte anterior ao século XX, área em que sou mais especializado, para além da arte brasileira do século XX.

Quais as joias raras dessa coleção para você?

Eu tenho um fraco, obviamente, pelos quadros do Brasil holandês, porque é uma época que eu estudei muito, então tem os Frans Post, o retrato mais importante do Maurício de Nassau, isso porque o Chanceler não hesitou em exercer a oportunidade de adquirir a obra. Afinal de contas, o Maurício de Nassau é uma figura fundamental para a história de todo o Nordeste brasileiro, todo o Brasil. Na medida em que o Brasil for conhecendo a melhor sua história essa obra será reproduzida em todos os livros didáticos, porque é o melhor retrato do Maurício de Nassau, feito pouco depois de sua volta à Holanda, depois dos anos dele no Brasil. Mas há também obras do período concreto extraordinárias, trabalhos de uma qualidade muito grande em todos os momentos, inclusive na arte contemporânea. Lembrando da Tarsila do Amaral, de quem se fala tanto, ele conseguiu um quadro da Tarsila, uma árvore, com uma qualidade já expressionista, que era rara na pintura brasileira e data de 1922, que é o ano da Semana de Arte Moderna. Mas a Tarsila ainda não tinha incorporado totalmente tudo que ela aprendeu mais tarde e que tornou a arte dela tão interessante e tão original, o que acontece entre os anos de 26 a 30, que é o período, talvez, mais rico dela. O Chanceler tem três Tarsilas na coleção. E quadros excepcionais do Lasar Segall, do Portinari. Gosto muito do “Menino com o Carneiro”, mas tem também de obras dos anos 40 que são de grande importância. Ele também comprou quadros excepcionais de (Johann Moritz) Rugendas, que é um artista muito importante do século XIX, como o quadro mais importante dele no Brasil que é “Vista para a Serra dos Órgãos”. Obviamente, ele tem obras também fabulosas do Antônio Bandeira, que é o maior artista do Ceará.

E entre os contemporâneos?

Todos grandes artistas contemporâneos também estão bem representados na coleção, começando por Hélio Oiticica e Lygia Clark, passando por Cildo Meireles, Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Tunga. É uma coleção que permite aos habitantes de Fortaleza, do Ceará e de todo o Nordeste – sem a necessidade de se deslocar para Rio ou São Paulo - terem acesso a obras originais de uma qualidade extraordinária. Muitas inclusive seriam cobiçadas pelos museus mais importantes do Rio e de São Paulo.  

Qual a importância de uma coleção desse porte estar dentro de uma instituição de ensino superior?

Um acervo desse porte inserido fisicamente num espaço com a circulação de alunos, de professores, professores convidados, especialistas, ainda mais levando em conta todos os eventos culturais que a Unifor promove, é muito mais dinâmico. E isso raramente acontece de uma maneira particularmente feliz. À medida que forem construídos os novos prédios que estão sendo planejados, o acervo vai ganhar instalações ainda melhores. E acho mesmo que existe por parte da família Queiroz a intenção de intensificar a divulgação e até a ampliação dessa coleção de arte, que já foi feita num tempo extraordinariamente curto para se ter uma qualidade tão grande. Falo isso porque geralmente os grandes museus são resultados de uma acumulação de décadas, às vezes de séculos, e aqui eu diria que foi mais nos últimos 10 anos de vida do Chanceler. É um feito notável não só para o Ceará, como para o Nordeste e o Brasil. Não conheço outra coleção com essa abrangência e com a mesma ambição – e uso essa palavra de forma lisonjeira. Foi formada uma coleção irrepetível. Se algum grande empresário quisesse hoje formar uma coleção com esse porte ele não conseguiria, porque muitas obras não estão mais disponíveis no mercado. Mesmo com o mesmo dinheiro ou mais. Então, não é só uma questão de recurso. É uma questão de oportunidade e visão. Isso, sem dúvida, o Chanceler teve. E uma coisa que me tranquiliza é que acho que é uma visão compartilhada pela família, que têm também plena consciência da importância de uma coleção cujas obras vão ser constantemente solicitadas para todas as exposições que forem feitas desses principais artistas. Uma coleção que dá uma visibilidade e um prestígio muito grandes ao Ceará.

Serviço

Exposição Arte Moderna na Coleção da Fundação Edson Queiroz
Período expositivo: 22 de março a 11 de agosto de 2019
Horário de visitação: de terça a sexta: 9h às 19h – Sábados e domingos: 10h às 18h