null Sonhos, acredite neles: não há idade para investir na busca por conhecimento

Qui, 29 Outubro 2020 15:28

Sonhos, acredite neles: não há idade para investir na busca por conhecimento

Conheça histórias de quem realiza o sonho de começar uma nova formação profissional


Aos 60 anos, Rita Vânia aposta no sonho de ser escritora: é aluna da Especialização em Escrita e Criação da Pós-Unifor (Foto: Arquivo pessoal)
Aos 60 anos, Rita Vânia aposta no sonho de ser escritora: é aluna da Especialização em Escrita e Criação da Pós-Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Em alto e mineiríssimo som, Milton Nascimento e seu Clube da Esquina cantaram até nos fazer crer: “os sonhos não envelhecem”. E não há quem duvide. Demasiado humano, o ato de sonhar é o grande disparador das mudanças e dele depende todo o prazer que emana da realização pessoal ou coletiva. Por isso, sonhar é verbo para se conjugar no presente e no infinitivo, sob pena de ver a vida desbotar ou enrijecer.

Diploma de sonhadora

Na Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, o sonho foi para a aula. E quem sonhou com uma segunda graduação ou mesmo pós-graduação encontrou no campus a chama de uma paixão adormecida pelo conhecimento. É o caso da hoje aspirante a escritora Rita Vânia Moreira Gomes, aluna da Especialização em Escrita e Criação da Pós-Unifor. Aos 60 anos, ela retorna ao ambiente acadêmico para “estudar e fazer o que gosta”, isso depois de uma graduação em Informática e de pelo menos 16 anos de dedicação profissional à área, somados à carreira de servidora pública precocemente interrompida. 

Sou mãe de três filhos e quando meu casamento acabou corri atrás da estabilidade financeira para poder criá-los sozinha. Foi o que aconteceu e tenho muito orgulho de ter conseguido, mas depois de me aposentar resolvi buscar aquele sonho que guardei desde muito jovem, que era escrever. Fui então fazer cursos de português e como, na época, não encontrei nada além disso em Fortaleza, acabei passando uma temporada no Rio de Janeiro só para fazer um curso da Márcia Tiburi. Nesse meio tempo, já tinha feito um Mestrado em Administração e me preparava para um doutorado. Mas quando voltei de lá havia sido fisgada: não queria outra vida que não fosse aquela ligada à literatura, à leitura e às publicações. Foi quando me aproximei da escritora Socorro Acioli e passei a fazer todos os cursos ministrados por ela, o que me trouxe felizmente à Unifor”, conta. 

O estímulo encontrado na professora hoje é receita de felicidade e também de saúde. Ano passado, justo em meio à Especialização em Escrita e Criação, Rita Vânia se viu acometida por um câncer no ovário. Entre sessões de quimioterapia e intervenções cirúrgicas, só tinha uma certeza: queria voltar às aulas, às leituras, à escrita, às crônicas interrompidas. “Voltei graças ao apoio da Socorro Acioli, alguém que me ajudou a entender sobre a importância de não abrirmos mão de nossos sonhos. Hoje estou aqui estudando, lendo e com muita alegria de viver também graças à paixão pela literatura. Minha vida é outra: aos 60 anos, tenho uma nova turma de amigos e amigas, aulas remotas toda semana e um blog para alimentar, além de um livro de crônicas sobre violências contra a mulher em andamento. É com muita intensidade, portanto, que tenho vivido essa nova fase de estudante e futura escritora”, diverte-se. 

Para Rita Vânia, quem nunca sonhou perdeu o melhor da vida. E quem pensa estar “velho” para sonhar perde a chance de conhecer outras facetas de si mesmo, assim como outras dobras do mundo. “Envelhecer é algo muito difícil para algumas mulheres da faixa etária. Por isso, escrevo muito sobre o avançar da idade no meu blog 'A partir dos 50'. Acho que a mulher com 60 em nada difere da mulher de 40 hoje, ou seja, continua com a cabeça a mil e cheia de energia para continuar criando e tocando novos projetos, às vezes até com mais propósito do que quando jovem. Maduras, colocamos muito mais verdade e sentimento nas nossas escolhas e é por isso que quero ajudar outras mulheres, através da leitura e da escrita, a não perder a gana pelo novo e por aquilo que está ali latente, mas ainda pode ser realizado”, sublinha.

O doce sabor de sonhar

A primeira graduação foi em Comércio Exterior, a pós em Gestão de Finanças, mas o sonho mesmo, aquele interrompido lá na juventude, era cursar Engenharia. Aos 41 anos, Andersson Stanley Bezerra Wenzel está, enfim, dando asas ao seu primeiro desejo enquanto estudante. Graduando do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Universidade de Fortaleza (Unifor), o apicultor e empresário do ramo de venda e exportação de mel lembra bem o motivo “besta” que o fez dar voltas em torno de si: “ao fazer 18 anos entrei para Engenharia. Acontece que fui reprovado numa disciplina de cálculo, algo que sempre tive dificuldade mas não a ponto de reprovar. Foi minha primeira reprovação e não consegui lidar com isso, já que minha memória era considerada tão boa que nem para as provas eu estudava. Imaturo e orgulhoso, abandonei o curso e fui buscar outro”, admite. 

Ao pedir revanche, no entanto, Wenzel tem a inesperada e prazerosa sensação de que está na hora e no lugar certo, apesar do estranhamento inicial. “Comecei fazendo duas disciplinas por semestre, ainda meio envergonhado e receoso por me achar enferrujado e de certa forma “velho” para voltar à graduação. Tive e ainda tenho dificuldade em cálculo, mas com a ajuda dos professores, tenho conseguido desenrolar e me sair bem, apesar de ter melhores notas em outras disciplinas. De qualquer forma, sinto que minha atenção está mais refinada com a experiência que trago na bagagem. É como se aproveitasse melhor cada ensinamento já que também posso vislumbrar sua aplicação na prática como empresário do ramo de apicultura. Ou seja, eu, que já amo o que faço, estou encontrando na universidade ainda mais sentido para seguir adiante e entusiasmado”, sustenta. 

Como integrante da quinta geração de uma família de apicultores que traz o sobrenome no produto comercializado, o estudante que hoje encara de seis a sete disciplinas por semestre, tamanha empolgação, também tem se tornado um empresário com maior responsabilidade social e atento à legislação ambiental. Além disso, o prazer em voltar a estudar o que gosta, ao contrário do que imaginava, o tem remoçado. “Hoje, quando entro no laboratório, volto a sentir aquela sensação da criança que adorava mexer com tubos de ensaio e sonhava em ser cientista. Ou seja, o curso reacendeu até a infância em mim. E isso me fez deixar de achar que estou ultrapassado. Ao contrário. Ainda estou no prazo de validade e pronto a sonhar mais alto: penso em fazer uma pós-graduação em Engenharia, algo relacionado agora à Segurança do Trabalho. Sempre gostei de buscar conhecimento, só que tinha esquecido isso... Agora não paro mais”, garante.   

A anatomia dos sonhos

Quando menina, a administradora de comércio exterior, Adriane Alencar, sonhava em ser médica pediatra. Mas sem saber explicar como ou por quê, a vida a fez empreendedora de destaque em Manaus, cidade natal. Lá, há cerca de 20 anos, foi dona de duas lojas de DVD depois de ter trabalhado para o poder público e a iniciativa privada. Nesse ínterim, casou, teve filhos e acabou se mudando para Fortaleza com a família, onde mora há 11 anos sem que se visse estimulada a encarar novamente o mercado de trabalho. Até que, em 2017, algo particularmente triste lhe despertou a vocação adormecida: uma grande amiga, vítima de AVC, precisava de cuidados.

“No hospital, fiquei acompanhando o tratamento de reabilitação sob orientação das profissionais e quando ela voltou para casa continuei a auxiliar em domicílio até que em determinado momento virei a 'perna' dela, manipulando a marcha. Era leiga, mas atuava com o coração. E naquele período decidi que queria continuar com o trabalho de ajudar pessoas em estado similar. Foi quando decidi cursar Fisioterapia e hoje estou no sétimo semestre, já atuando, sob orientação dos professores da Unifor, no hospital Waldemar Alcântara, junto a crianças, e no nosso querido NAMI. O sonho está acontecendo”, narra a futura fisioterapeuta que, aos 46 anos, já não tem dúvidas de que essa será a carreira profissional de sua vida.

A estudante que também sonhou em cuidar do pai quando ele teve um AVC, há dois anos, admite que queria ter 20 anos a menos. Não para parecer mais jovem, mas para ter mais tempo de cuidar das pessoas. “Não pude ajudar meu pai porque estava bem no início da graduação, mas é também por ele que me preparo com muito esmero para melhorar a vida dos meus pacientes. E sei que a cada procedimento os olhinhos dele vão estar brilhando, assim como os meus já brilham quando percebo o quanto a Fisioterapia impacta na saúde em geral e pode auxiliar nos mais variados tratamentos, dos edemas e traumas ósseos e musculares, até na hora do parto, quando o assoalho pélvico da mulher pede contração. Tudo é músculo e tem sido incrível conhecer a anatomia humana e perceber que anatomicamente somos todos iguais, portanto minha formação é válida em qualquer lugar ou tempo em que eu esteja”, regozija-se.

Um sonho dentro do outro: depois que se formar e colocar à prova todo o conhecimento adquirido em sua segunda graduação Adriane quer trabalhar fora do país. Canadá é o destino desejado. “Trata-se de um país com uma maioria de idosos, então há um vasto campo de trabalho, além do meu interesse em aprender outras línguas. Mas se esse sonho demorar a acontecer tenho outro complementar: uma pós-graduação em Administração Hospitalar, porque tenho interesse em entender o SUS por dentro e um desejo de ampliar o acesso para quem mais precisa. Isso me veio quando comecei a atuar como estudante de Fisioterapia nos hospitais, sobretudo nesse período da pandemia. Não era só tratar o paciente internado, mas dar continuidade ao tratamento no domicílio dele, levando em conta a situação financeira da família e trabalhando com os recursos disponíveis, próprios de cada realidade. Essa necessária aproximação entre a ciência e sua aplicabilidade na vida de cada usuário é algo que me faz sonhar ainda mais alto em busca de aprimoramento - e agora sem pausas”, pontua.   

Grávida de inquietações

O barrigão de oito meses de gravidez saltava aos olhos na festa de colação de grau do curso de graduação em Eventos da Universidade de Fortaleza (Unifor). Em 2016, com o primeiro diploma em mãos, a jovem produtora Myrella de Castro Gurgel já atuava profissionalmente na área. Mas logo após ser mãe o que lhe parecia a carreira dos sonhos de repente perdeu significado: “foi ficando difícil conciliar a rotina de uma bebê com o trabalho, mesmo sendo só freelancer. E aí me veio a lembrança de um sonho interrompido antes mesmo de me interessar por Eventos. Havia cursado em outra instituição, mas não cheguei a concluir porque fechou as portas. Quando minha filha foi crescendo senti que precisava encontrar um novo propósito profissional e foi aí que voltei para o início do jogo, lembrando que ainda criança eu já incrementava minhas roupas. Pensei: por que não recomeçar do zero?”.       

Para Myrella, a segunda graduação em Moda, agora com renovada e notória paixão, é também a afirmação do livre arbítrio, já que antes de ser mãe qualquer decisão que dissesse respeito ao futuro profissional prescindia de um consenso em família. Aos 28 anos, ela vibra porque pode, enfim, sonhar sem chancelas: “acho que minha filha veio para me libertar das amarras e também me aproximar ainda mais do que eu sou e quero para mim. Por isso, voltei a estudar Moda, mas agora numa perspectiva mais crítica e humanizada. Moda como ferramenta de linguagem e dispositivo de transformação social. Meu sonho agora é pensar e fazer moda para crianças, mas livre de estereótipos de gênero ou das tais tendências. Há de se ter afeto nas criações, a moda deve contar uma história, compartilhar conhecimentos. afirmar as liberdades e educar. Por isso, além de empreender, sonho com a docência, porque, sem dúvida, é na universidade que aprendemos a colocar em prática mudanças interiores e inquietações que vão dar em realizações apaixonadas”.