null Foco na saúde mental

Seg, 27 Dezembro 2021 14:27

Foco na saúde mental

Psicólogos lembram que não há fórmula mágica ou receita pronta para o bem-estar. Escutar-se, ter compaixão consigo e perceber os próprios limites são caminhos a serem buscados


A pandemia de Covid-19 fez com que muitos tivessem de lidar com situações de luto em relação a projetos, empregos e entes queridos (Foto: Getty Images)
A pandemia de Covid-19 fez com que muitos tivessem de lidar com situações de luto em relação a projetos, empregos e entes queridos (Foto: Getty Images)

Um dia de divã após o outro. Virar a página do segundo ano de pandemia e vislumbrar dias melhores, ainda que em meio a dores, incertezas e convulsões sociais, é um chamado existencial do qual ninguém pode fugir. Portanto, que venha 2022, pisando leve e apontando caminhos possíveis para o cada vez mais necessário cuidado com a saúde mental. Assim pensa e deseja a psicóloga e professora do curso de graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, Karla Carneiro, para quem “frear” a vida, abrindo mão do controle absoluto do volante frente ao imponderável dos acontecimentos tem sido o maior dos exercícios propostos em terapias.  

Integrante do Laboratório de Psicopatologia e Clínica Humanista Fenomenológica (Apheto) da Unifor, a psicóloga alerta: “precisamos estar atentos aos nossos processos de autoconhecimento, conhecermos os nossos limites, porque a pandemia nos convidou a sair do piloto automático e nos fez lidar com situações de luto, seja em torno de projetos, empregos, pessoas queridas ou da população em geral. Isso mexe muito com a gente. E é hora de recalcular a rota da vida, definir novos planos, mas não só viver de planos – e sim do aqui e agora, do que é possível construir hoje. Pessoas ficam presas ao passado ou antecipando o futuro e isso não é o caminho da saúde mental. Eis o que a Psicologia tenta contemplar: viver o presente da melhor forma, sem essa perspectiva antecipatória, que pode gerar sofrimentos de toda ordem”.

 

A professora Karla Carneiro lembra que é hora de recalcular a rota da vida, definir novos planos, mas não só viver de planos (Foto: Ares Soares)

“É importante entender que nem tudo está sob nosso controle. Existem situações que só nos cabe acolher e refletir sobre o que podemos extrair de positivo”

Para Karla, não há fórmula mágica ou receita de bem-estar. Mas é preciso aprender a se escutar, se acolher, ter compaixão consigo e perceber os próprios limites, entendendo e prevenindo os excessos de carga. “Em meio a uma vida acelerada e que exige alta produtividade, os momentos de pausa no banco do passageiro para o autocuidado são essenciais. Tudo para entrarmos em contato com nossas necessidades, emoções, receios, dúvidas, revisitando processos de mudanças e adaptações. É importante entender que nem tudo está sob nosso controle. Existem situações que só nos cabe acolher e refletir sobre o que podemos extrair de positivo. Negar o que está acontecendo ou não reconhecer o que sinto diante de tudo isso é o que acaba por impossibilitar valiosas reflexões e aprendizados”, frisa. ⠀

E se há um trauma coletivo a ser encarado, que bom poder contar com a Psicologia. Para o psicólogo graduado pela Universidade de Fortaleza, Hugo Moraes, não é à toa que tal palavra já não sai mais de qualquer jeito da boca do povo. “Deixou de ser papo furado ou conselhos amigáveis e vem se tornando cada vez mais bem definida como um espaço e um tempo neutro onde você pode se colocar, se experimentar e crescer através do contato com um outro”, defende. Na esteira da pandemia, a importância de uma escuta qualificada cresce. “Lidar demasiadamente com o real atingiu em cheio nossa fantasia inconsciente de que tudo podemos e qualquer coisa pode ser produzida à nossa imagem e semelhança. E essa desidealização foi o começo de um movimento de identificação com a nossa própria falibilidade”, alerta o também integrante do corpo docente da formação em Psicologia Analítica pelo Labirinto (Unifor). 

Espelho, espelho meu 

Tempo de colar os caquinhos. Para além das feridas abertas pela pandemia da Covid-19, o psicólogo Hugo Moraes defende: “talvez, pela primeira vez, possamos ter nos encontrado, o que leva a crer que esse é também um momento de re-encontro, de avaliação de quem somos e para aonde vamos, de pensar e sentir o que queremos da vida e o que ela quer de nós. Acho importantíssimo escutar esse vazio e viver essa crise existencial porque a partir daí podemos nos preencher de uma forma condizente com nossa própria realidade, para depois sim ousar preencher o mundo ao redor”.

 

Egresso da Unifor, Hugo Moraes considera que a Psicologia pode ajudar a enxergar o nosso próprio caminhar, à revelia do olhar do outro ou dos outros (Foto: Arquivo Pessoal)

“A dor não é mais motivo de culpa ou vergonha, vem sendo entendida como um efeito natural em um período de mudanças incessantes. E bem sabemos: quando o alarme de algo dolorido soa e nada é feito esse trauma não é remendado, trazendo assim sequelas profundas ou longínquas”

Cabe à Psicologia, portanto, o chacoalhar das bases interiores, aquele solavanco capaz de nos ajudar a entender melhor o que conseguimos sustentar e o que não passa de ilusão. “A dor não é mais motivo de culpa ou vergonha, vem sendo entendida como um efeito natural em um período de mudanças incessantes. E bem sabemos: quando o alarme de algo dolorido soa e nada é feito esse trauma não é remendado, trazendo assim sequelas profundas ou longínquas. Vide os índices de transtornos mentais anteriores à pandemia, onde a depressão lidera o ranking”, destaca o também integrante do Mitho (Movimento Investigativo Transdisciplinar do Homem), grupo de pesquisa vinculado à Unifor.

Impressa na própria cultura, é essa espécie de “herança traumática” que, de acordo com Hugo, pode vir a desencadear uma dissociação entre o que que somos “na rua” - indivíduos de alta-performance - e o que somos em casa - solitários e cansados. “Acredito que muitos passaram a perceber a relação de causa e efeito sobre o que está acontecendo no mundo. É como se antes estivéssemos semiacordados fazendo algo sem um sentido pessoal. A Psicologia pode ajudar a enxergar o nosso próprio caminhar, à revelia do olhar do outro ou dos outros. Minha sugestão: não se esqueça do que você viveu, não normalize os altos e baixos, não banalize suas próprias memórias. Isso tudo pode servir como uma espécie de memento mori, um emblema para uma mudança de paradigmas, um chamado para apreciar e viver cada dia bem, aproveitando suas perdas e aquisições”, sublinha.

Para cuidar do tempo

Parada obrigatória, brusca, radical. Em 2020, com a chegada da pandemia da Covid-19, todas as configurações de tempo foram atualizadas. Dois anos depois, a ordem para recolher-se, trocar o convívio social pela vida entre quatro paredes e adaptar toda e qualquer rotina para o modo on line ainda põe em xeque a resiliência humana, como também a capacidade de reorganização do mundo. E se a vacinação em massa parece garantir que o pior já passou, ainda tem sido duro aceitar que nada será como antes, como também perceber o que de mais essencial insiste em não mudar, mesmo em períodos de crises e convulsões sociais. 


O psicólogo Clerton Martins coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre (Otium) (Foto: Ares Soares)

“Não é o tempo que está acelerado. Nós é que estamos no modo imediatista. Por que ir tão rápido? E o que perdemos quando não apreendemos o tempo? Vivemos imersos em um fazer tudo e na euforia generalizada em torno do que ainda pode ser feito…”

Para o psicólogo e coordenador do OTIUM/Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, professor Clerton Martins a “sociedade do desempenho”, cunhada e criticada pelo filósofo Byung-Chul Han, não se mostra preparada ou decidida a tirar partido da pausa. “Não é o tempo que está acelerado. Nós é que estamos no modo imediatista. Por que ir tão rápido? E o que perdemos quando não apreendemos o tempo? Vivemos imersos em um fazer tudo e na euforia generalizada em torno do que ainda pode ser feito... É esse admirável mundo de possibilidades que leva o sujeito contemporâneo a entrar na corrida desenfreada para atingir o máximo de produtividade. E não há dúvida de que estamos mais rápidos e produtivos. O problema é quando esse “poder fazer” se torna um “dever” internalizado, um imperativo que leva à exaustão e nos torna escravos da produção. É aí que passamos a reféns de um tempo atomizado, que só passa, mas não nos atravessa ou nos transforma – e muito menos nos liberta”, reforça em citação o também pesquisador.

Clerton lembra que repensar a qualidade e o valor do próprio tempo foi o convite explícito endereçado ao mundo no contexto de isolamento social. Quem aceitou passou a valorizar mais os pequenos acontecimentos, rituais e celebrações, aqueles que antes rapidamente caíam no esquecimento por serem rotina, mas que nesse momento de crise funcionaram como ancoradouros emocionais. Houve ainda, ele acrescenta, a chance para uma revisão de valores e estilos de vida, em que novos modos de uso do tempo favoreceriam a criatividade, a autonomia e o autoconhecimento, imprimindo mais sentido ao agora, já que a vida se mostrou ainda mais frágil.

“No interior dos lares tornados home office pensamos ser possível reinventar tempos e espaço, ou melhor, modos de ser e estar no mundo. Se, por um lado, tudo nos convocaria às obrigações - filhos, pais, colaboradores no mesmo espaço em meio a diversas atividades e necessidades - por outro o ócio nos convidaria à possibilidade da autonomia subjetiva em meio a tais rotinas. Poderia essa condição nos favorecer a um tempo mais livre? Pensamos inicialmente que sim, mas a falácia caiu por terra. Nosso próprio lugar de descanso acabou invadido por um tempo sem tempo. Estamos trabalhando até mais, justo porque o trabalho em casa convoca todo o tempo, comprometendo outros âmbitos existenciais. O tempo da tarefa e das obrigações, via valor econômico, continuou a ser o tempo dominante, como assim sempre foi. E nunca se trabalhou tanto na história da humanidade”, constata o pesquisador.


 

Segue o desafio, portanto. E Clerton volta a questionar: como “esticar” o tempo e fazê-lo parceiro na tomada de decisões capazes de trazer mais sentido e significado à própria vida?" O formato home office, reitera, não realizou a promessa da retomada da criatividade no uso do tempo. Tampouco o trabalho ficou mais divertido, tirando, ao contrário, a diversão da casa. “Na verdade, nada passou a ser nosso, a não ser a cobrança por resultados e a crença de que “já que estamos em casa”, devemos produzir ainda mais. Foi o que observei. E continua certo Byung-Chul Han: vivemos um cotidiano de tempos acelerados que nos conduzem a uma arritmia diante dos excessos na produção, no consumo e no estilo de vida contemporâneo. E na pandemia percebemos a exacerbação da centralização no tempo da produtividade em todos os âmbitos. Produzir, produzir e manter a ordem geral das coisas”, reflete o psicólogo que, mais do que nunca, defende o ócio como estratégia de reinvenção da vida e cuidado com a saúde mental.

Psicologia na rua

“Que a Ciência não nos cristalize enquanto lugar de saber único e que nosso fazer psicológico possa impactar além-muros da universidade, criando redes de apoio e proteção para quem mais precisa”. Eis o desejo e a luta que atravessam a formação da graduanda em Psicologia da Unifor e integrante do Laboratório de Estudos dos Sistemas Complexos: casais, famílias e comunidades (Lesplexos), Nicole Saboya. 
Ainda em 2020, logo no início da pandemia, ela decidiu experimentar na prática o arcabouço teórico captado com paixão em sala de aula, aceitando o convite do Coletivo ArRUAça para integrar a equipe de artistas, estudantes, pesquisadores e profissionais voluntários que uniram esforços naquele contexto de crise em prol da segurança alimentar de pessoas em situação de rua. Juntos e misturados, fortaleceram a Rede Rua, formada por diversos coletivos, projetos sociais, ONGs e instituições da sociedade civil que, na sede do Centro Espírita Casa da Sopa, centro da cidade, passaram a oferecer alimentos, banho, mudas de roupa e uma assistência mínima à saúde para a população em situação de rua.
Em meio a tanta falta e diante de um cenário de desamparo, luto e medo, a psicóloga em formação enxergou ali outras demandas essenciais. “Percebi com o tempo que a própria equipe de voluntários foi ficando adoecida e precisando de apoio psicológico. Também percebi em campo essa necessidade de escuta profissional. E foi aí que propus atrair psicólogos para a Rede Rua, a fim de que todos e todas pudessem contar com esses primeiros socorros terapêuticos, de forma presencial ou on line. A proposta foi prontamente acolhida e fez toda a diferença para nossa saúde mental e a sustentação daquela ação solidária que mexia muito com o nosso emocional”, recorda Nicole.
A estudante colou nos profissionais e o aprendizado saído daí transformou seu olhar e sua postura profissional. “Percebi que o compartilhamento de diversos saberes e a ação em rede seria o meu lugar de atuação como psicóloga. Estava vivenciando o modelo de ciência colaborativa e não competitiva que tanto debatemos no Lesplexos da Unifor. O fazer psicológico para além do poder individualizante, ou seja, um fazer agregador e transformador capaz de promover ações preventivas de saúde mental, criando redes de proteção e cuidado solidárias nos territórios mais vulneráveis, justamente para acolher e alertar sobre a saúde integral como um direito que, historicamente, vem sendo negado ou negligenciado pelo poder público”, destaca.


A estudante de Psicologia Nicole Saboya destaca que “a História já provou que em contextos de epidemias ou de guerras a saúde mental vai ruir” (Foto: Ares Soares)

Para Nicole, não é preciso esperar pelos estudos acadêmicos e avaliações científicas referentes ao impacto da pandemia sobre a saúde mental da população para começar a agir em prol de você mesmo ou do grupo social em que está inserido. 

A estudante considera que é necessário identificar, mapear e divulgar as redes de proteção e cuidado solidárias disponíveis, sejam elas profissionais ou remotas. “A História já provou que em contextos de epidemias ou guerras a saúde mental vai ruir e isso significa agravamento e aumento de casos de depressão, ansiedade, estresse pós-traumático... Então, cresce a importância da Psicologia, inclusive para manter a economia nos trilhos, já que o desafio também passa pela recuperação das capacidades humanas. Minha sugestão, portanto, é procurar todo o apoio possível: desde os canais de meditação disponíveis no Youtube até os atendimentos psicológicos gratuitos existentes em universidades, ONGs e setor público. Temos que nos reconectar com nossos corpos e cuidar desses sofrimentos que perduram para que eles não nos paralisem”, conclui.