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Seg, 27 Dezembro 2021 15:03

Entrevista Nota 10: Lis Paim e a subjetividade da montagem no Cinema

A professora do curso de Cinema e Audiovisual conta sobre os caminhos que a levaram a essa carreira e sobre como estar na Universidade requer alimentar a paixão


Lis Paim cursou a graduação em Jornalismo e, por meio do cineclubismo, iniciou o caminho que a levou ao Cinema (Foto: Luiz Alves)
Lis Paim cursou a graduação em Jornalismo e, por meio do cineclubismo, iniciou o caminho que a levou ao Cinema (Foto: Luiz Alves)

Chegar ao trabalho com Cinema não foi uma linha reta na trajetória da professora Lis Paim, do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz. Graduada em Jornalismo e com mestrado em Artes, Lis teve dúvidas sobre qual carreira escolher. “Então acabou que o Cinema me encontrou de toda maneira, mesmo eu não tendo coragem de seguir as artes como carreira profissional no começo”, explica.
 
Hoje atuando como montadora, ela decidiu também seguir  instigando reflexões e olhares curiosos entre os alunos. “Sou uma jovem professora, uma artista que assumiu a sala de aula e segue aprendendo todos os dias”, conta ela. Para Lis Paim, lecionar é “lidar diariamente com as sensibilidades dos estudantes, com o sonho”, compartilha. 
 
Os resultados dessa dedicação que se revela na prática e na teoria têm sido intensos,  sensíveis e surpreendentes. O filme “Chão de Fábrica”, no qual Lis atuou  como montadora, conquistou prêmios no Cine Ceará (melhor curta da Mostra Nacional e o Prêmio de Aquisição Canal Brasil) e no Festival de Brasília (melhores filme, direção, atriz, figurino e  montagem). Com exclusividade para a Entrevista Nota 10, a professora e montadora conta mais sobre quão subjetivo é atuar com Cinema. 
 
Entrevista Nota 10 - Lis, você é graduada em Comunicação Social - Jornalismo e mestra em Artes. Como essas áreas se relacionam e como surgiu o encontro com o Cinema?
 
Lis Paim -
Pra começar, eu fiz Comunicação depois de ter desistido, uma semana antes das inscrições do vestibular, de fazer Artes Cênicas, pois não havia um curso de Cinema na cidade onde eu morava: Salvador, minha terra natal. Teatro me parecia o mais próximo de uma carreira artística. Mas eu não passei no vestibular de primeira, foi um período conturbado para minha família nessa fase. Só entrei na federal na minha terceira tentativa, depois de um semestre cursado de Publicidade, duas mudanças de cidade e de ter sido aprovada duas vezes no vestibular para o curso de Música, sem nunca ter tido coragem de me matricular. Eu tocava violão e guitarra de forma amadora e tive bandinhas de playground na adolescência, mas nunca senti que tinha um talento para música que pudesse me fazer seguir uma carreira. Eu me senti insegura de seguir minhas paixões, essa é a verdade. Tinha a referência de meu pai, por exemplo, um músico amador muito talentoso e que enveredou pela arquitetura…
 
Em resumo, o meu pensamento foi racional: não vou segurar a barra de sobreviver nessa área, minha família não tem grana e eu não posso me dar ao luxo de não ter um emprego. Mudei então para o curso de Comunicação por achar que seria a área mais "tradicional" (imagina) e próxima das Artes que eu podia chegar, diante do que havia disponível àquela altura. Fiz Jornalismo porque gostava muito de escrever e de ver televisão, cresci obcecada por filmes, novelas e videogame desde muito cedo e esse era o meu escape imaginativo na infância e adolescência. Eu chorava ao final de novelas como Tieta, pra ter uma ideia. Sonhava com os personagens dos filmes, seguia reelaborando as histórias na minha mente mesmo depois que "terminavam".
 
Mas a ideia de que havia uma proximidade entre o curso de Comunicação e as Artes foi uma frustração, a princípio. Nunca esqueço que na minha primeira aula de Jornalismo Impresso um professor antigo da universidade disse para a turma que se estávamos ali por gostar de escrever, estávamos no lugar errado. "A escrita jornalística tem uma fórmula, o lead é assim-assado, tem que responder a essas perguntas, não é Literatura", dizia o professor. Ele não estava completamente errado, infelizmente, principalmente se pensarmos nesse mercado jornalístico mais imediato. Porém, minha tristeza juvenil foi tanta naquele dia que acabei por dedicar toda a trajetória do meu curso a tentar refutar essa ideia, escrevendo textos jornalísticos que pudessem fugir dos padrões e se aproximar de uma escrita mais livre e criativa. 
 
Sobre a relação entre Comunicação e Artes, essa é uma pergunta complexa, porque ambas as áreas são muito amplas, têm muitos desdobramentos e perspectivas. O Cinema está dentro do campo da Comunicação e das Artes ao mesmo tempo, por exemplo, e esse entre-lugar diz muita coisa sobre o que ele é e pode ser, assim como sobre a Comunicação; é um campo muito rico. Mas falando a grosso modo, sinto que há uma proximidade desses campos pela via do contato com o outro e do olhar atento ao mundo, de posicionamento, mesmo, de uma visão de mundo. Sobre o Jornalismo, não acredito em sua imparcialidade, por exemplo. A tão requerida imparcialidade jornalística me parece uma ficção perigosa e que acoberta muitas aberrações e distorções em seu nome, principalmente quando se trata de debates sociais fundamentais. Não é possível viver sem tomar uma posição e tudo que produzimos reflete essa posição, em maior ou menor grau e em qualquer campo, até mesmo (e principalmente) quando a posição é a do silêncio, a de ficar em cima do muro. Uma certa ideia de uma função social está na base de discussão dessas duas áreas também, ainda que a arte possa (e deva) sempre prescindir desse lugar, pois não é isso que a define, mesmo que esta seja uma arma social poderosa e que pode atuar de maneira muito mais efetiva, atemporal e inteligente que o jornalismo irresponsável que tenta nos dominar hoje no Brasil, por exemplo. Mas há jornalismos e jornalistas…
 
Mas sobre o meu encontro com o cinema, ele se deu justamente por este entre-lugar que este ocupa nas Artes e Comunicação. Havia uma disciplina eletiva no curso de jornalismo chamada "Fundamentos do Cinema", ministrada pelo professor e cineasta Almir Guilhermino na Universidade Federal de Alagoas, onde, por fim, me formei. Na primeira aula dessa matéria, Almir fez uma análise semiótica do filme "Atração Fatal" (1987), de Adrian Lyne, um filme bem hollywoodiano, feito no auge da epidemia do HIV no mundo e cheio de mensagens nesse sentido. E vê-lo sob outra perspectiva e como um campo de pesquisa, naquele momento, me deu a certeza de que eu queria fazer e pensar o cinema. 
 
Até ali nunca havia me dado conta de que o Cinema pudesse ser um campo de estudo e realização para pessoas comuns como eu, parecia algo muito distante mesmo. Então acabou que o Cinema me encontrou de toda maneira, mesmo eu não tendo coragem de seguir as artes como carreira profissional no começo. Por meio dessa disciplina, já no último ano do curso, realizei o meu primeiro curta-metragem a partir de uma adaptação de um conto chamado "Azul Turquesa", que havia escrito e ganho um prêmio literário anteriormente, num concurso local que tinha como tema o trabalho e a condição humana.
 
Mas, por ironia do destino, o filme nunca foi montado porque na época eu não tinha uma ilha de edição. A universidade também não tinha tal estrutura e uma produtora local que, a princípio, cederia a ilha para que eu trabalhasse, vivia cheia de projetos de publicidade e nunca tinha uma hora vaga nos computadores. Eu passava tardes inteiras esperando uma ilha vagar e não conseguia nunca mexer no filme. Isso me fez desistir de montá-lo naquele momento, mas outros encontros com o Cinema seguiram por outras vias, deixando esse primeiro exercício até hoje inacabado.
 
Entrevista Nota 10 - Você atua profissionalmente com Cinema desde 2006. De lá para cá, quais mudanças experienciou no campo da produção audiovisual?
 
Lis Paim -
Muita coisa mudou. Quando comecei, há 15 anos, eu morava em Maceió, uma capital mais desprivilegiada em termos de políticas públicas no Nordeste, e a geração que tinha condição de realizar filmes por lá era uma geração mais antiga do cinema, principalmente fruto do boom do super-8 nos anos 1980 ou do vídeo nos anos 1990. Era gente que tinha ou trabalhava em produtoras de publicidade e por isso ganhava o apoio delas com os equipamentos, além de conseguir verba pros filmes por uma política de balcão e conhecimentos na área. 
 
Eu comecei como cineclubista, que é um lugar mais democrático e que me atraiu, pois me dava o que eu sentia que precisava naquele momento: a formação do olhar crítico para o cinema, vendo muitos filmes e debatendo-os, fazendo curadoria das mostras, consumindo muita coisa que eu nunca tive acesso por não ter feito uma faculdade de cinema, por exemplo. Eu tinha a sensação, na época, de que não ter feito um curso de cinema era uma lacuna imensa na minha formação e vivia correndo atrás dos poucos cursos livres que apareciam na cidade e de ver muito filme em locadoras, pois não havia ainda esse fluxo de baixar filmes na internet que há hoje em dia, nem mesmo canais de streaming. Uma plataforma como o MUBI, por exemplo, era um sonho distante. Fazíamos um trabalho imenso de pesquisa em acervos para encontrar determinados títulos e lembro que eu chegava a alugar filmes em locadoras de outras cidades quando viajava, para ter acesso a certos objetos de desejo dessa cinefilia.
 
Fui me encontrando no cineclubismo também porque era um espaço de militância dentro do cinema, de democratização de uma arte que se tornou muito elitista ao longo da sua trajetória. Eu vinha do movimento estudantil, que foi um capítulo importante da minha passagem pela Universidade. Nos cineclubes Tela Tudo e Ideário, por exemplo, tínhamos uma proposta de guerrilha com os filmes e sentíamos, de fato, que estávamos fazendo alguma coisa contra essa realidade: levando cinema para cidades e periferias sem acesso ao cinema, promovendo debates, instigando a pensar sobre aquelas imagens e narrativas, estimulando gente a fazer filmes e a difundi-los com o que havia disponível, por meio de cursos curtos que ministramos. 
 
No campo do audiovisual, as coisas foram mudando para melhor, de certa forma, principalmente em relação ao acesso ao audiovisual, à verba e à tecnologia para produção. Quando penso que não montei o meu primeiro filme por falta de uma ilha de edição e hoje vejo minhas alunas realizando e montando filmes no celular, dá pra ter uma dimensão dessa mudança de cenário. Fiz parte da geração que participou ativamente das primeiras escritas de editais públicos voltados para a produção de filmes em Alagoas, por exemplo. Antes, a gente, que não tinha dinheiro, influência e nem contato, não sabia como fazer filme a sério, como conseguir equipamento mínimo para isso. 
 
Perto de 2010, começaram a chegar as primeiras câmeras DSLR (Digital Single Lens Reflex) para nós, e isso foi tornando mais possível fazer cinema com menos dinheiro e com equipamentos mais simples, mas com alguma qualidade de imagem. Tudo foi sendo revolucionado e começaram a sair os primeiros filmes que eram resultado, de fato, de uma política pública de fomento nessa área em Alagoas.
 
Se hoje vejo meus alunos ganhando editais de produção de curtas-metragens, não esqueço que tudo isso se deve a uma construção geracional de um conjunto de militâncias diversas, em vários lugares do Brasil, que abriu esses caminhos durante décadas para que o cenário se tornasse mais favorável hoje, pois a política pública dificilmente se estabelece sem reivindicação e pressão constante da sociedade. Tudo isso foi possível, também, porque tivemos um período áureo de governos de esquerda que tinham uma compreensão mais profunda do papel da cultura e do valor dos bens culturais do nosso país, diferente de hoje. Nesse período, explodiram cineclubes, salas de cinema e filmes por todos os cantos. Foi uma efervescência bonita de acompanhar e fazer parte. 
 
Mas, infelizmente, regredimos em pontos fundamentais com o atual governo e a onda facista de extrema direita que nos assombra desde 2013. Hoje o contexto do cinema brasileiro mais autoral é de crise. O que temos está ligado a uma produção de mercado dos canais de streaming, principalmente com as séries. Isso está em alta, mas é apenas uma parte do que pode ser a produção audiovisual e ainda falta muito investimento em formação e difusão.
 
Entrevista Nota 10 - Ser professora universitária em meio a essas mudanças é uma missão?
 
Lis Paim -
Eu não gosto muito da palavra missão, apesar de entender que ela naturalmente é incutida no trabalho do professor pelo potencial de transformação que essa profissão carrega. Prefiro a palavra tarefa, por enquanto, pois evoca a dimensão do trabalho. Digo "por enquanto" porque estou sempre revendo minha posição sobre o lugar do ensino, é algo que penso bastante e que muda a cada novo contexto e experiência. Ser professor é um desafio diário gigantesco e que cada vez mais eu tento encarar com menos romantismo, mas sem deixar de alimentar a paixão. Sou uma jovem professora, uma artista que assumiu a sala de aula e segue aprendendo todos os dias.
 
E as mudanças de cenário reafirmam esse desafio, em muitas medidas. Por um lado, ter mais acesso aos bens culturais e tecnologias torna a nossa tarefa mais rica e dinâmica, é possível pensar e praticar esse pensamento com o que se tem à mão. Por outro, a crise clássica da enxurrada de informação e de telas que nos invadem cotidianamente, tornando tudo banal e sem interesse, a nossa dificuldade atual de concentração e imersão em qualquer atividade que seja, de estabelecer outro tempo, são problemas importantes. O tempo é uma questão cara para o Cinema, de certa forma. Este é um jogo do tempo, em diversos sentidos. Então, o que pode o Cinema produzir de diferente nesse contexto de tantas imagens rápidas e excessivas que vivemos? Que lugar cabe ao Cinema hoje e que cinemas esses tempos podem produzir e nos propor como pensamento dos nossos modos de vida? O Cinema deve ir na contramão crítica dessa ditadura das imagens imediatas que vivemos hoje, deve render-se a isso ou encontrar um entre-lugar? Ou tudo isso? As questões são muitas.
 
Agora, claro, devia ser mais animador, por exemplo, dar aula num curso de Cinema num período mais favorável em termos de políticas públicas para a área, em que havia um horizonte mais diverso e palpável não só para quem está no eixo Rio-São Paulo, mas nas cidades menores, nas capitais menores, em regiões como o Nordeste, por exemplo, onde existe uma efervescência criativa imensa e uma irregularidade de investimentos. 
 
Ao mesmo tempo, diante da crise, a sala de aula é um espaço fundamental de reconstrução dos nossos mundos. Ser professor em tempos de crise dos horizontes nunca foi fácil, pois lidamos diariamente com as sensibilidades dos estudantes, com o sonho. E hoje há uma crise do sonho, que para mim parece ser a mais severa de todas. Os jovens estão deixando de sonhar e outro paradigma parece estar se estabelecendo para mover ou não a vida das pessoas para frente. Ainda não consigo definir o que é isso que está surgindo. 

Entrevista Nota 10 - Como avalia o estímulo à experimentação dos estudantes?
 
Lis Paim -
Sinto que a experimentação é um espaço potencialmente pouco aproveitado por muitos estudantes, justamente pelo que falava acima. Experimentação requer curiosidade, senso de investigação, interesse, tempo, disposição. Precisamos nos entregar a certa desorientação para chegar a alguns lugares mais distantes dos clichês, nos entregar a certo ócio criativo, desviar rotas já preestabelecidas, contestar determinados paradigmas, produzir tentativas. Mas como encontrar esse lugar num contexto de imagens prontas e excessivas, de dominação e captura cega do nosso senso estético e narrativo por modelos hegemônicos, de velocidade da informação, de imitação? Isso não é fácil. Sinto ser um desafio constante para todos nós, não só para os estudantes nas escolas.
 
Um ponto importante hoje é o acesso às inúmeras ferramentas tecnológicas e à internet das coisas, esse conceito de interconexão digital. Há uma potencialidade de experimentação de conexões e linguagem contida nesse universo que ainda estamos tateando um pouco no Cinema, me parece. Mas, ainda assim, no curso de Cinema temos visto surgir trabalhos interessantes, por exemplo, e que têm uma veia experimental desenvolvida, assim como esse diálogo com diferentes plataformas e tecnologias. Recentemente, tivemos dois TCCs que chamaram atenção nesse sentido: dos alunos Vitor Rennan e Vitão, que propuseram instalações virtuais e trabalhos híbridos em conexão, etc.
 
Entrevista Nota 10 - Sua produção artística está bastante ligada à montagem. Como funciona esse processo para o Cinema e quais são os principais desafios?
 
Lis Paim -
A montagem tem sido meu campo de pesquisa e trabalho, mas principalmente minha paixão desde a época da faculdade. É um campo de pensamento fundamental não só para o Cinema, mas para as Artes em geral e mesmo para a vida. É a capacidade de pôr as coisas em relação e em perspectiva, afinal. Sinto que no Cinema a montagem é uma espécie de caixa-preta como procedimento, pois as pessoas não entendem muito o que se passa numa ilha de edição até poder estar em uma e viver a profundidade do processo do início ao fim. De forma geral, há um senso comum de que na edição de um filme excluímos o que não funcionou e mantemos o resto, como se o filme estivesse pronto sem o que lhe parece, a princípio, destoante. Mas entre o que funciona ou não, há um mundo de perguntas. Cada corte feito ou não feito é uma pergunta e uma escolha que pode mudar o sentido de tudo. Montagem pede tempo e há a ideia equivocada de que podemos resolver as coisas rapidamente na ilha, principalmente nos jovens de hoje, pós-digital.
 
Damos muita importância ao momento do set de Cinema, quando o filme é gravado, como se ele fosse o mais crucial de todos. É natural, afinal as imagens e sons concretos surgem dali. Mas para chegar até ali, tanta coisa precisa acontecer antes e acontecerá depois... Os filmes estão sempre sendo reescritos e a montagem é uma dessas instâncias de (re)escritura, assim como o roteiro e o set de filmagem, mas também como tantos outros gestos do filme em outras áreas criativas. Se fala muito o quanto a montagem é a terceira direção de um filme, depois do roteiro e do set, direção entendida aqui como caminho, e eu acho bonito esse pressuposto, ainda que o pensamento de montagem já esteja desde o princípio, quando surge a ideia do filme.
 
Os filmes são pensados para a montagem (ou pelo menos deveriam ser). São pensados e construídos de forma fragmentária e relacional, onde o todo e as partes, o plano geral e o detalhe, a forma e o conteúdo, a cena e a sequência, o som e a imagem, o corpo e o cenário, a obra e o espectador estão em diálogo e em choque criativo constante. E o pensamento que mantém em coesão coisas que, de outro modo, vagariam sem relação, como diz Harun Farocki (um importante cineasta e montador alemão), é a montagem. É ela que produz essa liga, a partir de forças muitas vezes invisíveis. Uma liga que faz saltar de um gesto, um mundo inteiro. Dessa forma, o pensamento de montagem atravessa sempre todo o filme, da ideia até a sala de cinema. Ele é uma força transversal.
 
Desde que comecei a dar aulas de montagem, passei a achar este trabalho ainda mais complexo, principalmente ao ver os desafios de aprendizagem dos estudantes. Vivo me perguntando como é possível ensinar a montar, quando eu mesma não acredito às vezes que isto seja algo a ser ensinado. O que tento é estimular a pensar essas relações e a experimentar, praticar. Já percebi, por exemplo, que os alunos que têm mais dificuldade com a montagem são, muitas vezes, os que veem poucos filmes e que têm uma resistência anterior com a escrita e a interpretação de texto. Isso coloca em evidência a montagem como instância de organização do pensamento e de um discurso, mas também como construção de linguagem. Mas não é uma regra absoluta. Há estudantes que são muito intuitivos, pensam de fato por imagens e têm um senso plástico muito desenvolvido, algo fundamental também para montar. E há ainda outros que nunca realizaram nada parecido antes e quando sentam numa ilha se revelam montadores promissores, de repente, como um talento natural, quase musical.
 
No fim, pensando agora, talvez o maior desafio desse trabalho seja lidar com tal emaranhado de forças: lidar com o agenciamento de áreas muito distintas da construção de um discurso imagético e sonoro, com uma certa habilidade tecnológica, com uma evidência e economia das frases e também com a pontuação do seu mistério; lidar com as lacunas, com a falta, mas ao mesmo tempo com o excesso de material, com um senso rítmico e musical essencial, tudo isso às vezes em um único instante, onde se deve elencar ainda uma ordem de prioridades para a experiência. É a montagem como essa instância de convergência que torna o trabalho desafiante, talvez. Mas é deste mesmo lugar que surge também a dimensão do encantamento, de mover todas essas peças juntas e em diálogo, de resolver o quebra-cabeças. Montar está longe de ser uma tarefa definitiva, ao contrário do que se fala. Ela está mais para o lugar das possibilidades.
 
Entrevista Nota 10 - Podemos dizer que a montagem também é atravessada pela subjetividade?
 
Lis Paim -
Totalmente, assim como qualquer criação artística. Se você der um mesmo arquivo de imagens e sons para montadoras diferentes, um arquivo gravado a partir de um roteiro, e pedir que montem, isso vai resultar em filmes completamente distintos, sem dúvida alguma. Claro que isso se deve a uma série de fatores e questões que dariam uma longa discussão, mas a subjetividade com certeza está no centro. 
 
Cada criador apreende o material de uma forma e vai fazer escolhas muito subjetivas durante o processo, sobre o que o emociona ou tem a capacidade de emocionar o outro. Uma coisa interessante da montagem é que o montador precisa antever uma certa subjetividade do espectador, dentro de uma leitura sempre idealista, claro, mas ele joga com isso na construção de determinadas intenções. Há uma certa psicologia da edição e talvez essa seja um outro aspecto do desafio: não estamos montando o filme para o nosso entendimento ou experiência, mas para o outro, esse outro ideal que projetamos dentro de códigos mais universais de leitura, interpretação e narração. Mas, contraditoriamente, também somos, como montadoras, as primeiras espectadoras de um filme e esse é um filtro importante sobre o que funciona ou não.
 
Entrevista Nota 10 -  Recentemente, um filme no qual você trabalhou conquistou duas importantes premiações do Cine Ceará: Melhor Curta da Mostra Nacional e o Prêmio de Aquisição Canal Brasil com o filme “Chão de Fábrica”, dirigido por Nina Kopko, e que conta com sua assinatura na montagem. Também no Festival de Brasília, o filme ganhou mais cinco prêmios: melhor filme, direção (Nina Kopko), atriz (Joana Castro), figurino (Gabriela Marra) e melhor montagem para você. Qual a importância desse reconhecimento?
 
Lis Paim -
Fiquei muito feliz com os prêmios, principalmente porque vieram para esse trabalho realizado por uma equipe quase 100% feminina, composta por cerca de 35 mulheres e pessoas trans, artistas incríveis. O Cinema é muito masculino e branco, heterocentrado, e ter uma equipe com essa composição é um gesto político nesse cenário, onde pouquíssimas mulheres assumem as cabeças de equipe. Comemorei muito os prêmios de melhor filme, por exemplo, porque estes são um prêmio para o conjunto da produção, para essa junção de mulheres e o que resultou disso como filme, no fim das contas. Prêmios sempre chamam atenção para o filme e isso é o melhor de tudo, ter mais gente interessada em ver "Chão de Fábrica" e pensar sobre as questões que ele traz ou não. 
 
Também me animou muito o prêmio para Nina como diretora, particularmente, pois a considero extremamente talentosa e promissora e esse é o primeiro filme que ela faz uma direção solo. Ela fez ótimos trabalhos no Cinema, mas até então, por estar no lugar de uma diretora assistente, naturalmente não teve a visibilidade que merecia, ainda que sua contribuição fosse muito significativa, na minha opinião.
 
Sobre o prêmio de montagem, confesso que não esperava recebê-lo, pois sempre percebi que os prêmios de montagem iam, muitas vezes, para documentários, cinemas de arquivo ou filmes muito cortados e dinâmicos, ou seja, filmes em que a montagem grita. Mas não cortar é uma decisão tão difícil quanto cortar. Não é fácil julgar o trabalho de montagem, porque há muitos aspectos ocultos e nunca sabemos de qual material bruto o montador partiu. Além disso, é um trabalho que historicamente busca certa invisibilidade dos cortes em prol de uma fluência da experiência, o que faz com que, muitas vezes, ele passe despercebido. E sendo a montagem essa atividade transversal, que cria essa rede de conexões dentro do filme, muitos prêmios acabam por ser também prêmios de montagem por tabela, como o de melhor filme e prêmios para a atuação, por exemplo, pois a montagem também atua nessa instância de direção da performance dos atores. 
Estou grata pelo reconhecimento e por terem olhado para o meu trabalho, de que meu primeiro prêmio de montagem, após alguns anos estudando essa área, tenha vindo com o "Chão de Fábrica", um filme militante, de certa forma. É um filme que me orgulho de ter feito parte, da primeira parceria com Nina na direção e também onde eu pude experimentar mais numa construção sonora, que é algo que eu tenho um prazer imenso de trabalhar na montagem. Particularmente me dediquei muito no processo. Aprendi muito montando esse filme e foi uma imersão muito profunda na sua montagem, mais do que o normal, pois estávamos no auge do isolamento da pandemia, foi um período muito duro. Entrei no banheiro com aquelas mulheres e só sai quatro meses depois, pois os dias passavam e eu continuava naquele banheiro da fábrica: nos sonhos, nas horas de descanso, em outros trabalhos. Foi um projeto muito trabalhoso na pós-produção, mas talvez algumas pessoas não tenham essa dimensão quando o assistem. 
 
Entrevista Nota 10 - Para finalizar: atualmente está trabalhando em alguma produção? Poderia compartilhar conosco?

Lis Paim - Atualmente, estou montando um curta-metragem cearense chamado "Circuito", dirigido por dois diretores estreantes na ficção e ex-alunos meus do Curso de Cinema – Alan Sousa e Leão Neto. É um filme em que estive muito imersa como professora, durante o seu desenvolvimento, e que, depois, fora da Universidade, o seu projeto venceu o edital da Secretaria de Cultura do Estado, ganhando verba para produção. As atrizes cearenses Marta Aurélia e Ana Luisa Rios estão no elenco, assim como o ator Pedro Domingues. É um filme de investigação policial, de certa forma, atravessado pelo drama de duas mulheres muito distintas. Tenho muito carinho pelo projeto, por tê-lo visto nascer e ver a dedicação dos seus autores em materializar o sonho desse filme.