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Seg, 19 Abril 2021 11:02

Sobre as muitas idades que temos

Conheça histórias de avós e netos que compartilham o cotidiano e constroem relações de parceria 


A jornalista e escritora Celma Prata, formada pela Unifor, entra nas brincadeiras dos netos Lis e Theo (Foto: Arquivo pessoal)
A jornalista e escritora Celma Prata, formada pela Unifor, entra nas brincadeiras dos netos Lis e Theo (Foto: Arquivo pessoal)

​Um chega para lá no etarismo. A família contemporânea mudou e junto com ela as mais diferentes gerações vêm se livrando das amarras normativas e dos preconceitos que encerram cada fase da vida na caixinha aprisionadora da faixa etária ou no campo monocromático e previsível dos papéis sociais. Assim, o que era raro se tornou comum: avós e netos já não se entreolham como estranhos ou antagônicos. Ao contrário, interagem como cúmplices de um cotidiano deliberadamente compartilhado e percebem em suas diferenças o grande barato da troca de experiências.

Sintonia fina e insuspeitada que, na teoria, já inspirou a criação de um novo conceito: o termo “solidariedade intergeracional familiar” diz sobre o quanto a longevidade pode ser sinônimo de atividade e interação. Professora-doutora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, Aline Nogueira de Lira é quem esmiúça: “No Brasil, a expectativa de vida da população só aumenta e essa é uma das razões pelas quais envelhecer mudou de feição. Longe de ser passiva, a presença dos mais velhos tem sido fundamental para a solidez de ordem afetiva e muitas vezes econômica das famílias. Pais e mães precisam de uma rede de apoio para trabalhar full time e educar os filhos a um só tempo. Portanto, a interdependência entre sujeitos de diferentes gerações já não carrega o peso da obrigação, mas a leveza da colaboração, do diálogo, da abertura para o mútuo aprendizado entre aqueles que acumularam sabedoria e experiência e os mais novos em formação, transmissores das novidades”.

Aline Lira, professora do curso de Psicologia da Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

É que no século XXI os estilos de vida se emparelharam: o avô e a avó modernos trabalham a seu modo e em seu tempo, malham, estudam e têm vida social, indo na contramão da ideia de envelhecimento como declínio ou improdutividade. “Na contemporaneidade, o idoso é visto como alguém que pode contribuir e funciona como um ancoradouro emocional, sobretudo em momentos de crise como a pandemia da Covid-19. Não é à toa que vimos muitas famílias se mobilizando para proteger os seus idosos, isso diz da importância deles na sociedade, que já não está ligada a uma hierarquia geracional, mas a uma outra organização familiar baseada em flexibilidade e solidariedade – e não mais em autoridade e moralismos. É claro que nem sempre é fácil e que o ageismo existe fortemente no Brasil, mas isso tende cada vez mais a ser superado, sobretudo quando as novas gerações reconhecem e buscam a riqueza dessa troca afetiva e relacional com os idosos, onde todos saem ganhando”, conclui Aline.

A avó contadora de histórias

“Não busco ter autoridade nenhuma, quero compartilhar, a minha voz pode ser contestada, questionada... o que quero é continuar aprendendo, principalmente com as crianças”. A avó, escritora e jornalista Celma Prata pensa e faz diferente de seus avós: para ela, são os mais velhos que devem se adaptar aos novos tempos e aos modos de vida contemporâneos – e não o contrário. “Faço meu esforço para estar sempre atualizada e ser jovial, justamente para ter a possibilidade de enriquecer a troca com essa nova geração. Como avó, não vim para conflitar, contestar a educação que meus filhos queiram dar pros meus netos ou impor minha visão de mundo. Vim para harmonizar, somar, agregar, valorizar e curtir ao máximo cada oportunidade de convivência com o Theo, de 6 anos, e a Lis, de 3, ambos filhos da minha filha Camila, com quem também tenho uma relação maravilhosa de amizade, sem qualquer conflito de geração”, festeja Celma.

 Aos 64 anos, Celma é a avó vocacionada que preza pelo aconchego, o abraço, o beijo, o “botar para dormir” contando histórias. Um tipo presente que só a pandemia da Covid-19 conseguiu conter. Antes do isolamento social, era dela a tarefa semanal de buscar os netos na escola ou organizar as viagens de fim de semana com toda a família para a fazenda em Paracuru. Lá, foi em torno da mesa e do preparo de fartos cafés da manhã - com direito a tirar leite da vaca - que ela e o marido Antônio José, 68, teceram uma relação de afeto com as crianças pautada sobretudo pelo gosto comum à natureza e à vida rural. “Somos urbanos, mas temos amor pelo campo e passamos isso para a novíssima geração... com Theo e Lis andamos de charrete, brincamos, tomamos banho de piscina, preparamos comidinhas e ali é como se não existisse um tempo a nos separar - ou como se o tempo parasse e nos igualasse”, reflete Celma.

Celma Prata compartilha diversas experiências com os netos (Foto: Arquivo pessoal)

As próprias avós Celma não chegou a conhecer. E o avô paterno viu muito pouco, era uma vez ao ano, quando vinha da zona rural para Fortaleza.  “Não houve convívio assíduo e afetivo... quem sabe por isso eu quis construir uma relação tão próxima com meus netos, não só fisicamente como afetivamente, porque acho muito importante ter memórias das pessoas da sua família, da sua ancestralidade... isso enriquece muito a nossa caminhada”, acrescenta. Daí porque, para ela, ser avó aos 58 anos foi um marco e é também como dom e dádiva que vive intensamente a experiência. 

“A consciência de que o mundo é volátil e está em constante mudança me chegou bem mais forte depois que fui avó. Isso podia ter sido traumático, mas como veio através das crianças me trouxe esperança. Se você coloca um filho no mundo é porque acredita no amanhã e acha que vale a pena viver, apesar de tudo. Com criança por perto, nós, que tendemos a pensar no fim, voltamos aos recomeços e pensamos que tudo pode ficar melhor. Ser avó, portanto, é esperançar”, poetiza a escritora que sempre incentiva os netos a acrescentar palpites imaginativos às histórias que a avó conta. Assim, juntos, cada um a seu modo conta sobre a arte de conviver amorosamente sem o assombro do fantasma da idade. 

Um “avôlescente” transcendental

Aos 71 anos, o professor Tarcísio Mauri é a figura central da vida da neta Bianca, que chama de filha e o tem como pai, não sem razão. “Quando ela nasceu, a mãe, minha filha, era adolescente e não vivia com o namorado. Então já veio morar comigo e a avó, passando os cinco primeiros anos conosco. No convívio, ela sempre ouviu os tios e a própria mãe me chamar de pai, então o trato entre nós é “pai” e “filha”... ela só me apresenta como avô para os de fora. E essa nossa relação de muito amor e cumplicidade é algo, digamos assim, transcendental, porque o jovem casal chegou a cogitar a interrupção da gravidez. Minha filha era menor de idade e o garoto também. E fui eu quem disse: “de jeito nenhum”! E emendei: “se for para criar eu crio e se for para adotar eu adoto”. Sou espírita e não admitiria isso. Então a partir daquele momento comecei a ser pai da minha neta”, relata, orgulhoso e emocionado.

O avô não precisou adotar a neta, mas quando a filha se separou oficialmente do companheiro ele quis deliberadamente fazer o papel de pai duas vezes. “Fui me aproximando cada vez mais da minha neta, criando uma relação de proteção e confiança sólida, para suprir mesmo essa lacuna que ela pudesse vir a ter em relação à figura do pai. E acho que consegui, a ponto de todos da família, inclusive meus três filhos, com quem também tenho uma relação muito protetora e afetuosa, entenderem que Bianca é meu chamego. Com direito a piada interna: “Bianca, o que você pede mandando que seu avô não faz obedecendo?”.  É um pouco isso, mas sem abrir mão do lado racional e do equilíbrio exigidos para o desenvolvimento integral dela”, explica-se Tarcísio.

Tarcísio Mauri e a neta Bianca Carvalho (Foto: Arquivo pessoal)

Egressa do curso de Administração e hoje trabalhando como auxiliar administrativa do Centro de Ciências da Comunicação e Gestão (CCG) da Universidade de Fortaleza (Unifor),  Bianca Carvalho, 24, não só considera o avô mais do que um pai biológico, justamente porque ele a escolheu, como nutre por Tarcísio uma admiração sem par pela forma que encontrou de ser pai e avô ao mesmo tempo sem super protegê-la ou, ao contrário, cercear sua liberdade de pensamento e capacidade de fazer as próprias escolhas. “Sempre me senti muito à vontade para conversar sobre tudo com ele, seja sobre a nota baixa na escola ou os primeiros namoros. Isso porque nunca foi de impor nada, de censurar, pressionar ou de brigar. Tem sempre uma fala incentivadora, positiva, pra cima, de que tudo vai melhorar. É do tipo empolgado e sereno ao mesmo tempo, além de bem-humorado. Ele me diz, brincando, que é meu “pavô”, mistura de pai e avô ao mesmo tempo, mas também pode ser o meu “pavor”, se precisar”, conta, rindo-se, a neta-filha.

 O “pavô” também se vê como “avôlescente”, justamente por não abrir mão da vitalidade necessária para fazer valer os próprios planos ao mesmo tempo em que acompanha e incentiva a jornada pessoal e profissional dos filhos e da neta única. Por 43 anos, Tarcísio atuou como professor do curso de Administração da Unifor. Aposentando a contragosto, acabou de aceitar duas propostas para retornar à sala de aula e encarar novos ambientes acadêmicos, agora como docente-convidado, dono de uma bagagem rica em conhecimento aplicado e, por isso, única. A neta-coruja não esconde o orgulho. E confessa que foi justamente por admirar a dedicação e solidez da trajetória acadêmica do avô, bem como sua igualmente vitoriosa carreira corporativa, que acabou optando por seguir a mesma profissão, à revelia do sonho de infância de ser veterinária. 

Meu avô sempre administrou com tanta leveza e vitalidade a docência e o trabalho como administrador nas multinacionais pelas quais passou que isso se tornou naturalmente um estímulo para mim. Ele nunca me pediu para ser administradora ou docente, mas sempre se dedicou tão apaixonadamente a ambas as coisas que, intuitivamente, me pego seguindo o mesmo rumo. Está nos meus planos fazer uma pós-graduação e, quem sabe, vencer a timidez para também lecionar na Unifor. Só não sei se consigo ser uma professora empolgada e empolgante como ele”, derrete-se a neta que já ouviu do avô a história sobre o dia em que Edson Queiroz, criador da Unifor, em suas deambulações pelo campus, parou à porta da sala de aula onde o professor Tarcísio estava e, após alguns minutos de escuta, o chamou lá fora para um elogio de viva-voz pela empolgação e o brilho percebidos nele enquanto docente.     

Crônica

Sobre a autora: jornalista e escritora, membro da Academia Fortalezense de Letras*

Sou herdeira de avós que marcharam sobre solos trincados e silenciaram os próprios gritos ante lufadas que lhes ardiam as ventas e varriam a pouca esperança.

Enquanto minhas avós pariam em casa o primeiro dos sete, oito filhos, milhares de contemporâneas do outro lado do planeta se agrupavam em protestos reprimidos com truculência contra as péssimas condições de trabalho nas fábricas, com jornada diária superior a dezesseis horas, inclusive aos domingos.

Ambas de prenome Maria, minhas “privilegiadas” avós – pois brancas e possuidoras de algum torrão nesse mundo chamado Ceará – nasceram e viveram em vilarejos afastados das pequenas urbanidades. O cuidar rotineiro dos muitos filhos, do marido e da habitação rural não era menos extenuante que o daquelas operárias estadunidenses, alemãs ou russas. “Eu, rica? Ninguém come terra!”, dizia a realista avó Maria do lado materno.

Minhas avós não foram à escola, mas assentaram filhos e filhas nas carteiras duplas de madeira do grupo escolar da comunidade, tendo sido minha mãe a que voou mais alto: formou-se professora na capital para orgulho da família. Honrou o diploma pioneiro alfabetizando centenas de crianças e jovens durante 25 anos em escolas públicas de Fortaleza. Elegeu o lado profissional, retardando matrimônio e maternidade; casou-se tardiamente – aos 36 anos – para os padrões da década de 1950; foi mãe aos 38, repetiu a façanha aos quarenta, e fechou para sempre a fábrica de nenéns.

As mudanças entre as gerações das minhas avós e da minha mãe podem ser atestadas desde o parto: minha irmã e eu viemos ao mundo em hospitais-maternidade de Fortaleza e um pediatra acompanhou o nosso desenvolvimento físico. Nossa formação intelectual e autossuficiência – seja esta financeira ou pessoal –, eram prioridade para a nossa mãe, como se quisesse vingar toda a ancestralidade. Minha irmã graduou-se médica e eu pedagoga e jornalista.

No rastro do inconformismo latente, migrei temporariamente para Paris e Nova Iorque nos anos 1990, abraçada aos filhos ainda crianças, onde me espantei com manifestações de todo tipo. Uma delas, em um 8 de março, evocava a morte de mais de cem operárias nova-iorquinas após serem trancadas na fábrica e queimadas pelos patrões – com a cumplicidade das leis –, por reivindicarem melhores condições de trabalho, como redução da extensa jornada. Registrei as memórias de Nova Iorque no livro “Descascando a grande maçã”, minha estreia como escritora.

Cerca de duas décadas mais tarde, minha insistente peregrinação levou-me a outro março histórico. Eu me encontrava em Paris para o Salão do Livro, onde faria uma sessão de autógrafos do romance “O segredo da boneca russa”, quando fui surpreendida por um protesto que rebatizava simbolicamente as ruas do centro da cidade com nomes de bravas mulheres que foram caladas por suas resistências e ativismos. Cartazes cobriam as placas originais que homenageiam predominantemente os homens; em um deles lia-se o nome da vereadora brasileira Marielle Franco, assassinada aos 38 anos no Rio de Janeiro. Ao que consta, nenhuma autoridade francesa destruiu os cartazes, que permaneceram nas ruas até que as águas os transformassem.

Mais de cem anos depois das primeiras manifestações feministas, novos conceitos sociais, culturais e biológicos vieram enriquecer a causa, mas os desafios persistem. Hoje não se discute apenas os direitos da mulher, mas de todas as minorias invisibilizadas. Precisamos entender que o feminismo é uma bandeira coletiva que deve ser empunhada com urgência por todas as mãos. Nos crimes contra a mulher, o Brasil contabiliza diariamente três mortes por feminicídio, 180 estupros, e lesão corporal por violência doméstica a cada dois segundos, conforme dados oficiais recentes.

Guardo profundo respeito aos meus vínculos femininos. Minhas avós se manifestaram em sua época como puderam: cuidaram do seu chão e alimentaram seus filhos com comida e livros. Seus restos mortais repousam no mesmo solo em que marcharam amordaçadas e invisíveis. Minha mãe centenária continua firme, apesar da perda trágica da sua amada filha que brilhou na medicina até ladrilhar a eternidade. Quanto a mim, bem, resisto aqui na peleja das minhas escrituras. No último ano, o luto e a reclusão renderam “Confinados”, minha primeira incursão em narrativas ficcionais curtas.

Mil “Vivas!” às avós Maria, às mães Clélia e às irmãs Thereza, grandes exemplos feministas para todo o sempre, em todos os marços e nos outros meses também. Que a descendência siga louvando a todas elas.