null Apaixonados por livros: professores narram como a leitura impacta e transforma suas próprias vidas

Qui, 1 Outubro 2020 17:32

Apaixonados por livros: professores narram como a leitura impacta e transforma suas próprias vidas

Entre gêneros e autores, docentes da Universidade de Fortaleza revelam como a leitura pode ser uma aliada dos sentimentos


O hábito da leitura é importante para o crescimento pessoal e pode ser um refúgio em momentos difíceis (Foto: Getty Images)
O hábito da leitura é importante para o crescimento pessoal e pode ser um refúgio em momentos difíceis (Foto: Getty Images)

O livro como extensão do próprio corpo. Um cacoete. Um terceiro olho. Um sexto sentido. Para a professora e assessora pedagógica do curso de Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição da Fundação Edson QueirozMarina Cartaxo, a leitura é movida a desejo, portanto, tem algo de incontrolável e, claro, apaixonante. Rendida ao mistério do prazer, ela termina um livro e já pega outro, atendendo prontamente à exigência do espírito, que precisa disso para se manter animado. “Meu pai sempre leu muito. Minha mãe também. Os dois arquitetos. Ela com uma leitura mais voltada à espiritualidade. Ele dono de uma biblioteca organizada por bibliotecária. Um quarto inteiro reservado para isso. Então, fui uma criança que ganhou muitos livros, no Natal, aniversário, era o que sempre pedia... Os primeiros foram os da Disney, que vinham com disquinho: As viagens de Gulliver, Ben-Hur... Depois veio a biblioteca do Colégio Santo Inácio, onde sempre se incentivou a leitura. Lembro da sensação de ir fazer a ficha, tirar os livros, levar para casa e ter o cuidado de devolver no prazo”, narra emocionada, como se por um instante encarnasse a protagonista do conto A Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.

 Adulta e em meio à graduação em Direito, foi na biblioteca da Unifor que se viu entre os primeiros “assombros”, colecionando leituras que iam bem além das disciplinas em curso. Na época, se deparou com Jane Austen (1775-1817), escritora inglesa à frente de seu tempo por preferir se enfronhar na intimidade dos dramas familiares a narrar simples aventuras. A autora de Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade, entre outros clássicos, impactou a ponto de levar a leitora a devorar ali boa parte da literatura inglesa do século XVIII. Mas Charles Dickens & Cia não demoraram a também competir com os clássicos brasileiros, caminhando lado a lado com Machado de Assis e José de Alencar, entre outros tantos e robustos escritores, agora lidos com outros olhos, por livre e espontânea vontade.  

“Muito rapidamente, ler passou a fazer parte não só da minha rotina, mas da minha constituição. Ser e estar no mundo sem livros seria impossível”, derrete-se a professora que ultimamente está relendo nada menos do que A Ilíada, de Homero, desejo que lhe veio após finalizar a leitura de A selvagem perdição: Erro e Ruína na Ilíada (Odysseus Editora), de André Malta, professor de Língua e Literatura Grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Ela que também alimenta o hábito de recorrer ao seu livreiro predileto, no caso o senhor Praciano, da Fort Livros, lojinha do campus da Unifor, para pedidos urgentes de “amores difíceis”, ou seja, livros de tiragem e distribuição limitadas. 

Assinante da TAG, maior clube de livros por assinatura do país, ela, no entanto, resistiu à tentação de compor o clube de leitura on line por já participar ativamente, dentro do próprio curso de Direito da Unifor, do projeto Quinta Literária, coordenado desde 2011 pela professora Ivanilda Sousa da Silva e hoje vinculado à Vice-reitoria de Extensão e Comunidade Universitária e a Pós-graduação em Direito Constitucional. Semanalmente, professores internos e convidados analisam uma obra literária à luz das Ciências Jurídicas, abrindo o debate não só à comunidade acadêmica como incorporando à audiência alunos do ensino médio de escolas públicas estaduais. Momento em que a roda de conversa aproxima professores apaixonados por livros a leitores em formação e em vias de se apaixonar. 

“Trata-se de um projeto muito interessante de inserção na literatura sob o olhar jurídico ampliado, claro, às questões sociais e humanas, já que também integra o programa Cidadania Ativa. Prefiro essa troca simbólica mais focada mesmo aos clubes de leitura com muitos participantes, como o da TAG. E durante a pandemia isso se intensificou e se confirmou junto a professoras e amigas leitoras da Unifor, como Lara Vieira e Maria das Graças... Quinzenalmente, pelo Google meet, é com elas que converso prazerosamente sobre literatura. Devemos inclusive ter nosso primeiro encontro presencial ao longo de outubro, para finalmente dizer sobre essa partilha de impressões e sensações causadas pelo nosso objeto do desejo comum: o livro, esse que nos abre outras perspectivas de leitura do mundo e nos leva a viver outras vidas através dos personagens, dando bem mais sentido e alívio à nossa, ainda que muitas vezes também nos tire do nosso lugar de conforto”, reflete Marina. 

Ler para ver melhor

É com uma biblioteca insondável e infinita guardada na cabeça que a curadora de arte Denise Mattar chegou ao campus da Universidade de Fortaleza (Unifor) para, mais recentemente, dar forma e conteúdo às exposições “Da Terra Brasilis à Aldeia Global” e  “Yolanda Vidal Queiroz - Momentos”, entre outras incursões suas em salas de aula como palestrante e facilitadora de cursos ligados à História da Arte. Agarrada aos livros desde criança, ela hoje se vê cada vez mais ‘afogada’ neles, o que, ao invés de lhe pesar ou “sufocar”, areja e oxigena a sua existência. É assim desde pelo menos os 5 anos de idade, quando o sonho infantil de maior importância já era entendido como tal, além de dito com todas as letras e reivindicado a plenos pulmões: aprender a ler.     

“Lembro que aos 4 anos ganhei uma mesinha com cadeira e ali fingia que estava escrevendo. Morávamos numa vila operária, meu pai engenheiro, e ali, convivendo junto aos operários e reunidos em torno de uma cooperativa, havia uma escola interna, com salas de pré-primário e primário. Eu transitava entre as duas turmas e um dia a diretora ligou para minha mãe avisando que ia me passar logo para o 1º ano. Tudo porque aprendi a ler muito rápido. Então, desde pequena meu presente preferido era livro, a família já sabia. E o primeiro impacto, sem dúvida, foi Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Fiquei tão fascinada com aquele mundo que, quando ganhei a coleção, passei a saber tudo praticamente de cor. Daí juntava todos os meus primos e contava as histórias: O Minotauro, Os Doze Trabalhos de Hércules, tudo de cabeça”, ri-se, recuperando no tom de voz a empolgação pueril.

Leitora contumaz, “daquelas sem solução”, Denise lê de tudo – e não só títulos referenciais para o trabalho de curadoria em artes plásticas. “Às vezes leio coisas que nem acho interessante, mas só por curiosidade já pego para ler, tentando entender a razão de certo frisson do momento. Por exemplo: fui ler A Saga Crepúsculo, que aliás achei uma chatice, mas li! Fiz o mesmo com Harry Porter, mas esse eu amei! A minha biblioteca é livro para todo lado, três estantes só no escritório, que se estendem pela sala e demais cômodos, sendo que até a mesa de cabeceira é apoiada numa pilha de livros, justamente porque não tenho mais espaço. E pior: tenho muita dificuldade de me afastar deles, mas tenho me trabalhado para doar o que compro de novo de literatura. Leio e logo depois vai para doação, mas ainda assim acabo ficando com os que acho que ainda posso querer reler”, diverte-se. 

Recentemente, em meio à pandemia, admitiu de volta, mas com todos os cuidados necessários, a diarista que facilita a retirada de poeira dos habitantes mais amados da casa. E riu muito quando lhe pediu para receber por ela uma encomenda no térreo do edifício onde mora. Ana, a ajudante, entregou o pacote em suas mãos entre pasmada e boquiaberta: “Dona Denise, dessa vez não é livro, acredita?”. “Como não rir da reação dela que já havia comentado que eu iria chegar ao ponto de não ter mais onde dormir? Mas não tem como ser diferente. Eu trabalho com livros o tempo todo, mesmo quando aparentemente eles não estão ali. Na curadoria, por exemplo, foi a literatura que me deu entendimento de como montar um roteiro para as exposições ou como contar uma história com obras de arte. Esse, aliás, é o grande diferencial das minhas curadorias: eu conto uma história ao invés de tentar desenvolver ali uma tese de doutorado”, ilustra Denise. 

É à literatura que a curadora também credita sua forma singular de produzir textos para exposições ou incorporar escritos dos próprios artistas entre obras expostas. “Nos cursos de artes que ministro o livro tem centralidade absoluta e na curadoria incorporo muito a poesia. Os artistas que escrevem muito bem, como Di Cavalcanti ou o pintor, desenhista e poeta Ismael Nery, por exemplo, são também os que mais dão asas à imaginação de quem irá conhecê-los. Estudei no Colégio Estadual de São Paulo, que era considerado o melhor do estado e do Brasil. Na época, tinha uma professora, dona Regina, que na aula de História fazia a gente ler texto de época. Isso nos transportava para essas realidades passadas e nos fazia vislumbrar mundos futuros também, inclusive mundos interiores, outros possíveis. Eis o poder incomparável de transcendência da literatura, algo que nos transporta, inexplicavelmente”, observa.

Ainda fresco na memória, Sapiens, uma breve história da Humanidade, de Yuval Harari, foi uma das melhores companhias para a leitora em isolamento social capaz de acessar e interpor temporalidades diversas através dos livros. “Passei um mês só falando desse livro, porque traz um outro entendimento sobre a evolução do ser humano, ao mesmo tempo em que, cruzado com outros escritos, como os que lemos nas tumbas egípcias, serve para constatarmos que estamos sempre voltando às questões constitutivas do humano e às emoções que nos dão base de sustentação para viver coletivamente. A literatura fala sobre nós mesmos e a inacabada aventura humana na Terra, até quando se trata de um livro científico como o Sapiens...”, destaca, enquanto também suspira pelas leituras recentes de Mia Couto e seu Cada homem é uma raça e Valter Hugo Mãe, a partir da obra Homens imprudentemente poéticos.

“Veja só que incrível a história que se passa no Japão antigo, tendo como protagonista um artesão de leques que tem um dom e uma maldição a um só tempo: ele que consegue prever o futuro, mas só quando mata algum ser vivo. E assim vive nesse dilema, um tanto amargo e dividido... Por meio da literatura, posso também dizer sobre a beleza da língua, que também permeia as letras de músicas dos poetas como Chico Buarque: 'me beija com boca de hortelã'. Então é transcendência, arte, reflexão, tudo junto em um só objeto que convida a questionar e dialogar, além de acessar outros mundos possíveis, furando nossas bolhas. Por isso não troco por nada: sou da literatura e dos livros”, encerra Denise.

Conheça mais histórias

Um elo de ligação entre o mundo racional e pragmático e aquilo que não vemos mas, simbolicamente, exerce uma força devastadora sobre o que nos tornamos e legamos ao mundo em termos de realizações. O livro, para o musicólogo e professor de artes e mitologia do Centro de Ciências da Gestão (CCG) da Universidade de Fortaleza (Unifor), Carlos Velázquez, é invenção, um dispositivo capaz de emprestar mais sentido à existência e nos dotar da capacidade de ver além da superfície das coisas e dos acontecimentos diários ou banais. Foi entre livros, portanto, que ele próprio fez suas primeiras incursões racionais e intuitivas entre ensinamentos práticos que jamais se dissociaram do despertar da sensibilidade – ou do uso dela para interferir no que se convencionou chamar de real.  

“Meus pais gostavam de ler, apesar de não serem pessoas do meio intelectual. Meu pai é comerciante, mas sempre gostou de se informar e acessar conhecimentos ligados à Medicina, principalmente. Eram muitos livros em casa e lembro que ele lia para mim e minha irmã. E havia nele um jeito particular de contar histórias, já que os mexicanos são muito protocolares. Então sentava cada um de um lado, ele lia em voz alta, alegre, expressivo, fazendo vozes diferentes a cada diálogo. Ficávamos encantados com a história. E além da interpretação apaixonada e a forma como se entregava à narração, perguntava se sabíamos o significado de uma ou outra palavra incomum. E assim dava aquela pausa para explicar, o que não agradava muito a audiência, mas, enfim, pode estar aí a razão pela qual vim a me interessar também pela etimologia das palavras”, recorda o professor. 

Junto aos livros, Velázquez também viaja até a casa da infância no México, país-natal, onde morou até os 15 anos de idade. “Na sala havia um móvel gigante só para os livros, que ia do chão até o teto. Aquilo, para uma criança de 5 anos, era arrebatador, algo imenso. E um dia cheguei da escola e estava meu pai com um vendedor de livros, negociando justamente um pacote de cinco coleções literárias, com aquele ar solene, próprio dos grandes negócios. Dentre os títulos adquiridos o que me marcou profundamente foi a coleção As Crianças Descobrindo o Mundo, com 12 livros que ensinavam desde receitas até como se fazer brinquedos descartáveis, disfarces e experiências químicas. E havia também duas enciclopédias, o acabou por desenvolver em mim um gosto paralelo, que desaguou na escola, em verificar dados, ir atrás de informações novas, unir um tema a outro, o saber enciclopédico. Por isso, os colegas da escola iam a nossa casa pesquisar conosco, o que era um prazer”, ri-se.

Se o conhecimento científico lhe chegou cedo através de leituras que faziam brincar e pensar, os livros também foram os primeiros brinquedos da imaginação, aqueles que, feito mágica, tocavam a dimensão do sensível e acionavam outros modos de ouvir as perguntas e buscar respostas para dar ao mundo. “Lembro que aos 8 anos de idade eu um dia subi o telhado de casa para ler Júlio Verne, Da Terra à Lua, e fiquei ali viajando. Comecei de manhã e não desci nem para comer, até que terminei, quando já era noite. Li a obra toda de Júlio Verne e aquilo, para mim, é um dicionário cientista que não arredou pé da fantasia. Ali, intuitivamente, eu já me aproximava das artes e quando saí de casa aos 15 anos para estudar prática e teoria musicais na Escola de Música de Guadalajara passei a ler cifras e partituras, acessando um outro livro misterioso que me fascina até hoje e diz sobre estrutura musical, harmonia e composição da Música Antiga, universo que deu vazão a leituras históricas e filosóficas complementares que não cessam”, recupera. 

De tanto ler e cruzar saberes, o musicista abraçou a docência, outra forma de continuar lendo o mundo. No percurso, optou por seguir o caminho de Verne, estruturando um pensamento racional e científico múltiplo, aberto à percepção dos sentidos e à afirmação do sensível. Assim, chegou à mitologia, privilegiando a reflexão crítica através de imagens e narrativas saídas do imaginário profundo, todo ele gerador de símbolos que, segundo o professor, interferem nos modos de ser, fazer, pensar e estar no mundo. “Em sala de aula venho desconstruindo junto com os alunos o senso comum que encara a mitologia como aquilo que não existe. Ela passa a ser entendida como força de transformação muito mais ativa do que aquilo que parece posto e acabado, ou seja, real. Não é porque você imagina que não é verdade. A realidade pragmática não explica e não abarca os aspectos mais profundos da existência. E é isso que me apaixona e está nos livros, sobretudo os que até hoje me aprisionam incondicionalmente, como Filosofia da Educação, de Friedrich Schiller, e Estética, de Gottlieb Alexander Von Baumgarten”, encerra.

Foi entre cores sem nome o primeiro “susto” literário da escritora e coordenadora do curso de Especialização em Escrita e Criação da Pós-Unifor, Socorro Acioli. É que Flicts, de Ziraldo, punha a tradição européia dos contos de fadas de cabeça para baixo quando, em 1969, veio à tona a tal história da cor diferente que não conseguia se encaixar nem no arco-íris nem na caixa de lápis ultracoloridos da criançada, causando com isso certo estranhamento. Por não saber sequer o seu nome e protagonizar o enredo mesmo sem ser gente é que o livro, como toda a obra do também autor de O Menino Maluquinho, até hoje impacta alguém como ela, que também se arvora a escrever livros infantis. “Ainda me espanto como alguém conseguiu tanto num texto infantil, portanto não foi um assombro superado - ou não foi impactante porque eu era criança. É o que penso do bom livro infantil: ele vai causar impacto de qualquer maneira e ficar marcado”, sustenta Socorro.

Quando criança, foi Monteiro Lobato, que lhe chegou sorrateiro através dos vendedores de porta em porta, quem primeiro levou a escritora pela mão até a biblioteca da casa do padrinho Ary Leite, em busca de outras possíveis “reinações” literárias. Lá encontrou mais: o êxtase, tão sem explicação como a cor de Ziraldo, do simples ato de ler. “Lembro de ouvir diferentes pessoas da família dizerem frases como: “ô beleza, está chovendo, depois do almoço vou me deitar e ler um livro. Esse lugar da leitura como prazer puro, sem estar atrelado à nada, estudo ou aprendizado, nada, conheci entre entes eles e muito cedo, felizmente”, recorda. 

De fase em fase, a leitora foi sendo construída, mas sem chancelas nem arreios. “O mais importante que acho e continuo preservando é a liberdade de ler qualquer coisa que eu queira, qualquer tipo de livro: desde os clássicos universais e brasileiros até o livro de um monge budista falando sobre a limpeza da casa. Não me proíbo de nada e nem me envergonho de nada. E é isso que falo inclusive na posição de professora-escritora: todos podem ler qualquer coisa que queiram e todo livro é legítimo e vai ter valor para alguém. Tanto sou livre como deixo as pessoas livres para ler, essa patrulha da leitura é contraproducente em um país que lê tão pouco”, aferra Socorro.

A leitora eclética avisa: apesar de ler muito por necessidade, dadas as aulas e os clubes de leituras que coordena, hoje não abre mão de ler e estar em dia com os contemporâneos. “Se sou uma autora contemporânea publicando no Brasil preciso ler os meus pares. Mas tem também os amigos e amigas que me indicam livros, são indicações acaloradas e sempre acertam, então os livros me vem de várias maneiras. Leio muito e leio rápido, tenho uma boa velocidade de leitura e quando sinto necessidade leio o livro mais de uma vez”, revela.

Os modos de uso do livro também são variados e livres numa rotina de vida e profissão há muito guiada pela literatura. “Leio um livro porque preciso resenhar, para dar uma aula ou para conduzir um clube de leitura, por exemplo. Mas nas minhas leituras pessoais hoje tenho buscado novas maneiras de narrar, principalmente a coragem de narrar, ou seja, um narrador de voz autêntica. Estou lendo a trilogia da canadense Rachel Cusk, os livros Esboço e Trânsitos. O que tem me impactado, portanto, são as narrativas feitas por mulheres, as argentinas estão escrevendo muito bem... e também as vozes silenciadas de outros países que estão começando a ser ouvidas e aparecer, apesar de. E, claro, me dou a chance de ler coisas que nunca ouvi falar, por isso assino a TAG Curadoria, onde todo mês recebo um livro mas não faço ideia do que vai vir. Em resumo, o que mais busco na literatura hoje é me surpreender”, sublinha.

No Clube de Leitura do próprio curso de especialização em Escrita e Criação da Unifor, Socorro tem conseguido se surpreender e também movimentar um circuito de afetos literários. “Já debatemos com Garcia Roza, Tony Beloto, Itamar Vieira Junior, Agualusa, Moreno Veloso e vamos em dezembro conversar com Mia Couto”, antecipa. Ao longo da pandemia, ela garante: os livros atuaram como verdadeiros salva-vidas.  “Foi uma forma que as pessoas encontraram para sobreviver melhor a essa loucura, ou seja, ler tem sido muito importante e temos lido mais, eu e os alunos da pós e do mestrado em Direito. Esses livros foram dando uma perspectiva de tempo, de compreensão de que estamos vivendo algo desesperador, mas que isso passa. É a compreensão de tempo histórico que os livros nos trazem. Através da literatura, olhamos para esse momento com certo distanciamento mas ao mesmo tempo estamos próximos à alma humana. Essa dicotomia entre interno e externo ajuda a superar”, reflete. 

Para ela, mais do que nunca, é tempo de ler. “A literatura nos leva a enxergar o mundo e o outro de forma mais ampla, ainda mais em tempos de polarização, intolerância a tudo o que é diferente. A literatura vem para jogar todas as diferenças na nossa cara, de forma direta ou metafórica. Um dos seus grandes e revolucionários poderes é promover o entendimento de que a realidade sobre a terra é muito dura e diferente em muitos lugares. Existe muito sofrimento, muita injustiça, angústia, muito erro na história e absurdos que não foram superados. O grande poder de transformação pessoal e social que vem da literatura vai ao encontro dessa realidade e gera incômodo até se transformar em movimento, impacto sobre as vidas”, conclui.

Para a doutora em Literatura Comparada e professora dos cursos de Cinema e Jornalismo da Universidade de Fortaleza (Unifor), Aíla Sampaio, livro não é só forma e conteúdo. Tem temperatura, cheiro, pulsão, consistência, sentido. Por isso, é por todos os poros que a leitura lhe invade o pensamento e mobiliza suas emoções. Sinestésica e sensorial, a experiência da leitura sempre lhe chegou assim, de forma intensa. “Criança ainda, a cada começo de ano, quando minha mãe comprava o material escolar, lembro que eu ficava cheirando os livros. Aquilo era uma paixão, tinha uma magia incrível. E não esqueço como fui marcada muito cedo pelos contos de Andersen, traduzidos por Monteiro Lobato. Devorei de trás para frente e aquilo povoou meu imaginário por muito tempo”, suspira.

Adulta, a cabeça deu voltas mirabolantes foi com Dom Casmurro, de Machado de Assis. “Eu devia ter 12, 13 anos quando li. E nunca aceitei que Capitu tivesse traído Bentinho, sempre achei que ele, Bentinho, tinha algum problema. Mesmo nessa idade queria provar que aquilo era delírio de uma cabeça doente. Muitos anos depois, eu reli e a minha ideia permaneceu a mesma. Esse livro permanece comigo até hoje, não superei essa leitura e continuo defendendo Capitu, mesmo conseguindo fazer mil outras leituras”, revela. Leitora visceral, Aíla é do tipo que se deixa devorar pelas histórias que lê, entregando-se de corpo e alma a elas.  “Se estou lendo Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, sou a Joana, se leio As Horas Nuas, da Lygia Fagundes Telles, sou Rosa Ambrósio... É verdade: essas personagens passam a me fazer companhia carne a carne e quando termino a leitura elas me fazem falta. Quando leio Dostoievski viajo pela Rússia e por São Petersburgo. Quando leio Alencar do século XIX viajo por aquele Rio de Janeiro que não conheci... A literatura é esse elogio à imaginação irresistível”, sustenta.

Livro como refúgio, aventura, fonte de questionamentos. “A literatura tem a função de nos tirar da apatia e de mexer intelectualmente conosco. Mas também nos ajuda a driblar a solidão, construir castelos, vislumbrar novas perspectivas de vida. A pessoa que lê raramente é alienada ou enganada, porque ela constrói um horizonte muito amplo. A cabeça talhada pelos livros é uma cabeça que sonha e realiza. Além do mais, é antídoto contra o tédio e a ignorância. Pessoas que lêem são mais críticas. E por tudo isso o livro pode ser um objeto muito perigoso em sociedades que querem as pessoas dependentes e alienadas”, destaca.

Não se trata, porém, de buscar respostas na literatura. Para Aíla, os livros na verdade ajudam a criar mais perguntas. Assim, conduzem a uma forma inventiva de vida. E, sobretudo em tempos sombrios, podem apontar outros possíveis. “Fico me perguntando o que seria de nós durante a pandemia, nesse estado de isolamento social, se não existissem as artes, a música, os filmes e livros. No meu caso, houve um reencontro com a leitura, onde resgatei o objeto livro. Enfim, voltei a fazer leituras para além da obrigação das aulas, li para mim, e passei a exigir mais dos alunos leituras de poemas e narrativas curtas nas aulas on line, discutindo essas leituras. Foi uma oportunidade de ressignificar o tempo para incluir nele, para além da leitura por obrigação, a leitura por prazer. Isso pra mim é fundamental e é fundamental que passe isso para meus alunos”, conclui.