null Crise climática: Como o direito e a engenharia ambiental podem ajudar no combate aos efeitos do aquecimento global?

Seg, 20 Maio 2024 17:06

Crise climática: Como o direito e a engenharia ambiental podem ajudar no combate aos efeitos do aquecimento global?

Docentes da Universidade de Fortaleza explicam razões do caos ambiental e apontam estratégias de contenção e enfrentamento a danos


Cidade de Porto Alegre inundada pelas águas do lago Guaíba (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Cidade de Porto Alegre inundada pelas águas do lago Guaíba (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Chuvas acima da média, recordes de temperatura e inundações cada vez mais frequentes. As mudanças climáticas têm desencadeado uma série de impactos significativos em diversos ecossistemas e comunidades por todo o mundo. Inclusive no Brasil, onde, recentemente, várias cidades do Rio Grande do Sul foram devastadas por uma enchente de proporções históricas.

Essas mudanças, além dos prejuízos à natureza, são uma ameaça real à vida humana, uma vez que contribuem para a escassez de alimentos, problemas na saúde pública e crises na economia local e global. O país testemunha o exemplo de como a ação humana é capaz — seja por meio da devastação direta ou pela flexibilização de leis ambientais — de provocar danos graves ao equilíbrio ambiental.

Enfraquecimento da legislação ambiental

O descaso com a legislação ambiental, que muitas vezes passa por mudanças sem avaliação técnica adequada em prol da desburocratização e do desenvolvimento “a qualquer custo”, é um dos pontos mais cruciais dessa questão.

Segundo Sheila Pitombeira, docente do curso de Direito e pesquisadora da Universidade de Fortaleza — instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz —, a desregulamentação da legislação de proteção ambiental concorre fortemente para a produção de alagamentos e deslizamentos por conta da supressão da vegetação que protege os cursos d’água, morros, serras e montanhas.

A professora enfatiza ainda a contribuição disso para o agravamento de eventos climáticos severos. “Na grande maioria das vezes, [a desregulamentação] implica desmatamentos, ausência de controles estatais na implantação de atividades com potencialidades de degradação e poluição ambiental, monocultura, perda da biodiversidade, dentre outras ações degradadoras da qualidade ambiental”, destaca.


“Nosso arcabouço jurídico ambiental viabiliza uma série de medidas preventivas, regras para o licenciamento ambiental, sistema nacional de órgãos ambientais etc. Então, é o caso de indagar: Por que estamos vivenciando esse vexame ambiental no Rio Grande do Sul? Por que a maioria dessas leis foi e vem sendo desatendida lá e em outras regiões do país? Quando tivermos a estimativa dos custos relacionados ao valor total para a recuperação do RS, talvez possamos dimensionar o prejuízo sofrido pela natureza e por todos nós que vamos pagar essa conta”Sheila Pitombeira, professora de Direito Ambiental e pesquisadora da Unifor

Para a doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, as modificações promovidas na lei estadual 13.597/2010 — o Código Estadual do Meio Ambiente, com a edição da Lei 15.434 de 2020 — pelo governo estadual do Rio Grande do Sul, certamente contribuíram para o agravamento do desastre ambiental ocorrido.

“Daí a assertiva de que, na maioria das vezes, os eventos naturais, quando percebidos como desastres, estão relacionados às condutas e ações humanas”, observa Sheila. Dentre as modificações citadas pela professora estão:

  • Redução das medidas de proteção às unidades de conservação do Estado, dos bens tombados, das áreas de interesse ecológico, cultural, turístico e científico; 
  • Supressão da proteção nas áreas da reserva da biosfera no Rio Grande do Sul, das ilhas fluviais e lacustres; 
  • Supressão dos instrumentos e mecanismos financeiros institucionais destinados à proteção, à pesquisa e manutenção de ecossistemas; 
  • Flexibilização dos critérios para o licenciamento ambiental; 
  • Introdução da terceirização de pessoas físicas nos órgãos ambientais nas análises dos estudos ambientais; 
  • Revogação dos dispositivos legais de proteção às florestas nativas, bem como às de preservação permanente, inclusive a proibição de comercialização e venda de florestas nativas.

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Atividades sem licenciamento

A análise de Lamarka Lopes, professora do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Unifor, revela um problema crônico na maior parte dos processos de licenciamento no Brasil: o início de atividades sem o devido licenciamento. “Os empreendedores acabam por não cumprir nenhuma norma, na maioria das vezes, e iniciar seus trabalhos sem comunicação aos órgãos ambientais”, denuncia. 

Para ela, o ideal seria a presença de mais corpo técnico nos órgãos ambientais que pudessem agilizar o processo de licenciamento. Assim, as instalações seriam realizadas com embasamento técnico e legal e os empresários teriam a agilidade que buscam para a implantação de suas atividades.

A abordagem de ‘desburocratização’ não deve enfraquecer as proteções ambientais, mas sim melhorar a eficiência e a eficácia dos processos regulatórios, mantendo o compromisso com a sustentabilidade a longo prazo”, frisa a doutora em Ciência.

É possível evitar tragédias?

Membro do Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) de Fortaleza, Lamarka afirma que há uma série de medidas para evitar situações extremas, como as ocorridas no estado gaúcho. Entre elas estão:

  • Priorizar políticas de uso sustentável da terra (os municípios que ainda não possuem devem implementar o zoneamento ambiental e as regulamentações do uso do solo); 
  • Fortalecer a fiscalização ambiental para garantir o cumprimento das leis e prevenir atividades ilegais que levem à degradação ambiental;
  • Investir em agricultura sustentável, conservação de ecossistemas e educação ambiental para promover práticas responsáveis e conscientizar a população sobre a importância da conservação ambiental.

“Essas ações, quando implementadas de forma coordenada e eficaz, podem contribuir significativamente para a proteção dos recursos naturais, a promoção do desenvolvimento sustentável e a segurança da população”, enfatiza a especialista.


“A educação ambiental é fundamental, pois conscientiza as pessoas sobre os impactos das atividades humanas, promove comportamentos sustentáveis e engaja a comunidade em ações concretas. Além disso, capacita os cidadãos a participarem ativamente na defesa do meio ambiente e influencia mudanças institucionais, contribuindo para a construção de um futuro mais sustentável e resiliente para as gerações futuras”
Lamarka Lopes, professora do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Unifor

Mitigar, adaptar e reduzir danos

Diante das catástrofes que já alcançam o Brasil, é importante adotar estratégias para limitar o aquecimento global, se adaptar a ele e reduzir as consequências desastrosas. Nesse sentido, a professora Lamarka sugere medidas para cada uma das linhas de ação citadas.

Para mitigar os problemas ambientais, por exemplo, ela indica adotar uma abordagem multifacetada que inclua medidas de curto e longo prazo, como:

  • investimentos em tecnologias limpas e energias renováveis,
  • promoção de práticas agrícolas sustentáveis,
  • preservação de ecossistemas naturais,
  • implementação de políticas de redução de emissões de gases de efeito estufa,
  • promoção da conscientização e educação ambiental para incentivar mudanças comportamentais em direção a estilos de vida mais sustentáveis.

No que se refere à adaptação aos problemas ambientais, a mestre em Geologia acentua a importância de desenvolver uma infraestrutura resiliente e sistemas de alerta precoce para lidar com eventos extremos, como enchentes e secas. O que inclui investir em projetos de gestão de recursos hídricos, planejamento urbano sustentável e medidas de adaptação às mudanças climáticas.

“Além disso, é necessário promover a diversificação econômica e o desenvolvimento de capacidades locais para aumentar a resiliência das comunidades vulneráveis”, complementa.


A adoção de estratégias políticas, econômicas e sociais é uma forte aliada contra catástrofes ambientais causadas pelo aquecimento global (Foto: Getty Images)

Por fim, para reduzir os danos com os quais a população já convive, Lamarka considera essencial implementar medidas de recuperação e restauração de ecossistemas degradados, como reflorestamento, recuperação de áreas úmidas e projetos de conservação da biodiversidade.

Ela ressalta ainda a gestão sustentável dos recursos naturais, como água, solo e biodiversidade, por meio de políticas de conservação e uso racional dos recursos. “Ademais, é necessário promover a responsabilidade corporativa e a cooperação internacional para abordar os problemas ambientais em escala global”, acrescenta.

Pontes entre a ciência e governo

A partir da perspectiva de sua área de atuação, Lamarka identifica que a Engenharia Ambiental e Sanitária pode contribuir para políticas públicas de conservação socioambiental, atuando como ponte entre a ciência e a ação governamental.

Além de conhecimento técnico, engenheiros ambientais também podem colaborar com insights práticos para enfrentar os desafios ambientais, transcendendo o papel de implementar tecnologias sustentáveis e abraçando uma abordagem holística, que considera as complexidades dos sistemas naturais e sociais.

“Ao promover uma cultura de inovação e colaboração, os profissionais desta área não apenas respondem às demandas do presente, mas também moldam o futuro, criando soluções adaptativas e resilientes para as comunidades e o meio ambiente”, sintetiza a professora.


Assim como a engenharia ambiental, o direito é um grande aliado na luta pela conservação do meio ambiente (Foto: Getty Images)

Com relação à área jurídica, a professora Sheila Pitombeira ressalta que o Direito Ambiental busca disciplinar a relação do homem com a natureza. Faz isso por meio de institutos e instrumentos que, legitimados e amparados no texto da Constituição Federal, são (ou deveriam ser) as linhas norteadoras na elaboração das leis que podem contribuir na promoção dessas soluções para a crise climática.

No entanto, a docente alerta que o Direito e a Lei não viabilizarão soluções nesse disciplinamento se não houver a compreensão dessa realidade por todos os segmentos sociais: sociedade civil, governo e segmento empresarial. “Isto porque o cenário ambiental de hoje exige uma drástica redução à ‘caça’ aos recursos ambientais, às diversas fontes poluidoras e ao consumismo”, destaca.

Necessidades urgentes

Lamarka Lopes dá ênfase à necessidade de abordar as causas subjacentes dos problemas ambientais, ao mesmo tempo em que deve-se lidar com os efeitos imediatos. Assim, enfrentar questões como o consumo excessivo de recursos naturais e materiais, a poluição por falta de saneamento municipal e a degradação ambiental de forma mais conectada é, para a especialista, de suma importância.

“Acredito ser extremamente importante a cooperação entre os atores. O reconhecimento da interconexão entre os desafios ambientais e sociais pode criar soluções mais eficazes e justas para os problemas ambientais enfrentados pela sociedade, que hoje são tratados de forma desconexa, cada um fazendo de um lado ações pontuais”, analisa a docente.

Do ponto de vista de Sheila Pitombeira, é importante que todos tenham consciência de que as mudanças climáticas e os desastres ambientais têm a digital do homem. Por isso, para minimizar tais eventos climáticos, ela estimula a população a se envolver no debate.


A população também exerce papel importante na cobrança e conscientização sociopolítica na luta pelos direitos ambientais (Foto: Getty Images)

A professora de Direito Ambiental reitera que devemos cobrar políticas que privilegiem a proteção da natureza (vegetação, rios, serras etc), assim como rejeitar e protestar contra aquelas que ignoram a necessidade de redução de gases de efeito estufa na atmosfera.

Precisamos também reivindicar políticas ambientais relacionadas à prevenção de eventos climáticos extremos, exigir projetos relacionados ao saneamento ambiental (esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, coleta seletiva de resíduos e destinação adequada) e reduzir o consumo. Esse é um bom começo!”, conclui a advogada.